Processo Tributário

Mandado de segurança: já é hora de superar as Súmulas 269 e 271 do STF

Autores

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Gabriel Saccomano Zoccoli

    é advogado em Piracicaba (SP) pós-graduando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

1 de outubro de 2023, 8h00

Os debates a respeito do direito à restituição de indébito tributário, mediante expedição de precatório em mandado de segurança, iniciaram há bom tempo e até hoje permanece atual, tendo esse tema, inclusive, já sido objeto de preciso texto nesse espaço [1].

O presente artigo, por sua vez, analisará essa controvérsia com especial enfoque acerca da necessidade de haver a expressa superação (overruling) da posição externada nas súmulas das 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal (STF), as quais ainda dão margem para uma indevida divergência jurisprudencial no âmbito da realização prática do direito. Em suma, haveria a necessidade de um sinal explícito quanto a existência de superação do posicionamento do STF para tal temática [2] [3].

Antes, todavia, de seguir adiante, insta destacar, ainda que sumariamente, que o overruling autoriza revisitar um entendimento consolidado na jurisprudência, visando sua superação quando há uma alteração (econômica, política, social e/ou jurídica) relevante no contexto em que o julgamento a ser superado foi formado [4], afinal, o Direito deve caminhar de forma sincrônica com a realidade que o circunda.

Feitas essas considerações preambulares, convém lembrar que as referidas súmulas 269 e 271 anunciam, respectivamente, que "o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança", e a "concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria".

Como bem destacam Daniel e Eduardo de Paiva Gomes [5], os mencionados enunciados sumulares foram editados (1) a partir de julgamentos que não versavam acerca de matéria tributária [6] e (2) e veiculados em 13/12/1963, isto é, muito antes do advento da nova ordem constitucional que alterou, substancialmente, o ordenamento jurídico pátrio, em especial após a emenda constitucional 45/2004, que trouxe institutos como a súmula vinculante, a repercussão geral e a repetitividade de recursos, sublinhando, portanto, a ideia de transubjetivação das lides e o efeito vinculante de certos tipos formais de manifestações jurisdicionais, dentre os quais destacam-se as súmulas [7]. Também nesse momento histórico ainda era praticamente inexistente a ideia de sincretismo processual, sendo a relação processual devidamente compartimentalizada em diferentes tipos estanques de processo (conhecimento, cautelar e execução), não considerando a existência de fases preponderantes dessa mesma relação processual.

Logo, as circunstâncias que levaram à edição desses verbetes dissonam do contexto normativo e jurisprudencial atual, o que já autorizaria o seu overruling.

Mas não é só. No julgamento do recurso extraordinário 889.173/MS que culminou na manifestação contida no Tema 831 de repercussão geral [8], o STF reafirmou sua atual jurisprudência para reconhecer o direito à restituição do indébito tributário, por meio de precatório em mandado de segurança, em relação ao período compreendido entre a data da impetração e efetiva implementação da ordem concessiva. O Tribunal Pleno, todavia, não enfrentou expressamente os enunciados sumulares sob comento — o que é tecnicamente questionável (fica o registro).

Parece-nos lícito concluir, entretanto, que ao menos a Súmula 269 teria sido tacitamente superada em matéria tributária, na medida em que restou autorizada expedição de precatório em mandado de segurança, afastando o óbice consubstanciado na utilização do mandamus como ação de cobrança.

Por sua vez, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também fornece elementos para a superação da Súmula 269 do STF.

Spacca
A 1ª Seção daquele tribunal já reconheceu, sob a sistemática dos recursos repetitivos, que (1) a sentença proferida em mandado de segurança, que reconhece o direito à restituição do indébito mediante compensação, possui natureza declaratória [9]; e (2) a sentença declaratória, natureza assumida por aquela proferida em um writ, representa título executivo [10]. Esse posicionamento culminou na edição da Súmula 461 desse Tribunal, que estabelece que "o contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória", o que só reforça a ideia de que a sentença veiculada em um mandado de segurança pode ser objeto de uma fase de cumprimento de sentença.

Inclusive, é essa a posição da Coordenação-Geral de Tributação que firmou o seguinte entendimento — vinculante no âmbito da Receita Federal [11] —, relativo ao indébito reconhecido por decisão proferida em mandado de segurança:

"O crédito tributário decorrente de ação judicial pode ser executado na própria ação judicial para pagamento, via precatório ou requisição de pequeno valor, ou ainda, por opção do sujeito passivo, ser objeto de compensação com débitos tributários próprios na via administrativa" [12].

A questão que remanesce tormentosa, portanto, diz respeito à superação da Súmula 271 do STF, já que, como visto acima, a atual linha jurisprudencial desse tribunal prevê um efeito patrimonial ao writ a partir da sua impetração, mas não para o lapso temporal que o antecede, o que, em matéria tributária, estaria circunscrito pelo prazo decadencial de cinco anos.

Ressaltando a celeuma em torno da Súmula 271 do STF, destaca-se, exemplarmente, a fundamentação adotada pelo STJ no âmbito do AgRg no REsp 1.466.607/RS. Nesse caso o contribuinte impetrou mandado de segurança preventivo e repressivo objetivando, (1) ver declarada prospectivamente a inexistência de relação jurídica tributária, o que também abrangeria reaver os valores pagos entre a impetração e o trânsito em julgado da decisão concessiva da ordem, bem como (2) restituir os valores pagos nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação. Com o objetivo de afastar o óbice da súmula 271 do STF, assim se manifestou o relator do caso, ministro Humberto Martins:

"No mais, a possibilidade de a sentença mandamental declarar o direito à compensação (ou creditamento), nos termos da Súmula 213/STJ, de créditos ainda não atingidos pela prescrição não implica concessão de efeitos patrimoniais pretéritos à impetração. O referido provimento mandamental, de natureza declaratória, tem efeitos exclusivamente prospectivos, o que afasta os preceitos da Súmula 271/STF."

A leitura do sobredito excerto deixa claro que o ministro Humberto Martins confunde o efeito declaratório da sentença concedida por conta do caráter preventivo do mandamus, com o efeito condenatório desse mesmo ato decisório, mas agora decorrente da natureza repressiva desse writ.

Embora correta no resultado dado ao caso sob julgamento, a referida decisão se equivoca no que tange aos seus fundamentos, o que se deve, em especial, pela sua inação em enfrentar o teor da Súmula 271 do STF, para superá-la.

É exatamente a falta desse enfrentamento expresso do aludido verbete que faz com a jurisprudência do STJ continue vacilando quanto à possibilidade de expedição de precatório em mandado de segurança, com vistas à restituição dos valores indevidamente tributados nos cinco anos anteriores à impetração. As 1ª e 2ª Turmas [13] vêm entendendo, majoritariamente, que (1) não há autorização para a expedição de precatório em mandado de segurança, relativo ao período anterior à impetração, mas apenas posterior; e (2) o contribuinte poderia optar pela restituição administrativa do indébito, em relação ao período anterior e posterior à impetração.

Acontece que, no Tema 1.262 de repercussão geral, o entendimento do STJ resumido no item 2 acima foi superado. O Plenário do STF decidiu, por unanimidade, que "não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do art. 100 da Constituição Federal".

Assim, conjugando a sobredita posição do STF, com o entendimento do STJ de que não caberia uma fase de cumprimento de sentença em mandado de segurança, inviabilizando a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, só restaria ao contribuinte vencedor em um mandamus, para dar efetividade à tutela jurisdicional que lhe fora concedida, a realização de compensação administrativa, o que pressupõe (1) que o ente tributante devedor tenha lei vigente prevendo a compensação [14] e, ainda, no caso de pessoas jurídicas, (2) que o contribuinte esteja em plena atividade empresarial e (3) tenha dívida perante o fisco sucumbente. Do contrário, o impetrante, vencedor na relação processual estará diante de uma tutela jurisdicional sem qualquer efeito prático, ou seja, sem resultado útil.

O cenário acima detalhado só reforça a necessidade de nossos tribunais superiores efetivamente superarem as emboloradas Súmulas 269 e 271 do STF, de modo a dar plena efetividade às tutelas jurisdicionais, o que se pauta na ideia de que o processo não é um fim em si mesmo, mas sim um importante instrumento [15] à mercê do Direito para a substancial resolução de conflitos de interesses.

 


[1] Veja-se o seguinte artigo: ConJur – Mandado de segurança e efeitos patrimoniais pretéritos. Acesso em 06.09.2023.

[2] É em sintonia com a ideia de que a superação de um precedente demanda um sinal claro nesse sentido que, v.g., se observa o disposto no art. 489, § 1º, inciso VI do CPC. No mesmo diapasão é o disposto no art. 927, §4º do citado Codex.

[3] Criticando a possibilidade de superação tácita de precedentes (implied overruling): BRAGA, Paulo Sarno; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 494; NEVES, Marcelo. A "desrazão" sem diálogo com a "razão": teses provocatórias sobre o STF. Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-out-18/desrazao-dialogo-razao-teses-provocatorias-stf. Acesso em: 06.09.2023.

[4] Nesse sentido, ALVIM, José Manoel Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo: Processo de Conhecimento: Recursos: Precedentes. 20ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. p. 1.686.

[5] GOMES, Daniel de Paiva. GOMES, Eduardo de Paiva. Ainda sobre recuperação judicial do indébito tributário. https://www.conjur.com.br/2021-out-24/processo-tributario-ainda-recuperacao-judicial-indebito-tributario. Acesso em 11/08/2023.

[6] RMS 6.747; RMS 10.629; RMS 10.065; RMS 10.149; RMS 6.747; AI 26.672; RE 48.567.

[7] Em 1963, sob a égide do CPC de 1934, as súmulas tinham o papel prático de sintetizar a posição jurisprudencial de um determinado Tribunal para uma específica matéria, o que, por sua vez, ao mesmo tempo possuía um caráter informativo e persuasivo. No atual contexto normativo, a posição exarada em uma súmula do STF e/ou do STJ apresenta um caráter formalmente vinculante, nos termos do art. 927, inciso IV do CPC vigente.

[8] Oportunidade em que foi veiculada a seguinte tese:

O pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal.

[9] Recursos Especiais nºs 1.365.095/SP, 1.715.256/SP e 1.715.294/SP.

[10] Recursos Especiais nºs 1.324.152/SP e 1.114.404/MG.

[11] Art. 33, I da Instrução Normativa n. 2.058/2021.

[12] Solução de Consulta COSIT n. 164/2023.

[13] AgInt no REsp n. 1.965.710/SP; AgInt no REsp n. 1.947.110/RS; AgInt no REsp n. 1.981.962/RS; AgInt no REsp n. 2.028.861/MG; EREsp n. 1.770.495/RS; REsp n. 1.951.855/SC; REsp n. 1.642.350/SP.

[14] Na medida em que a instituição da compensação tributária é uma faculdade do ente tributante, inexistindo, portanto, um direito subjetivo correlato, o qual fica à mercê de previsão legal. Nesse sentido: SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 561-562; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 531.

[15] Tratando do caráter instrumental do processo e, mais particularmente, do processo tributário, destaca-se: ConJur – Paulo Conrado: Processo tributário e instrumentalidade. Acesso em 06.09.2023.

Autores

  • é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutor em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • é advogado em Piracicaba (SP), pós-graduando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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