Observatório Constitucional

A “desrazão” sem diálogo com a “razão”: teses provocatórias sobre o STF

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18 de outubro de 2014, 8h00

O título deste artigo tem como referência uma passagem de Jacques Derrida no ensaio Fazer Justiça a Freud, em que ele faz objeções às críticas de Michel Foucault à psicanálise freudiana. Derrida sustenta que, diferentemente de René Descartes e do iluminismo, Freud põe a “razão em diálogo com a desrazão”. É claro que não se trata, nesse contexto, de um diálogo no sentido da teoria do discurso ou da democracia deliberativa, orientado contrafactualmente para o consenso ou para a busca do melhor argumento. Trata-se de reconhecer a precariedade da “razão”, pronta para aprender com a sua contraparte, a desrazão, em processo paradoxal de reconstruções ou ressignificações permanentes. Uma “razão” sem “diálogo” com a “desrazão” seria opressora e excludente. A ironia expressa no título supõe a seguinte questão: e quando a “desrazão” for incapaz de “dialogar” com a “razão”? A resistência ao diálogo impede, nesse caso, qualquer aprendizado, reconstrução ou ressignificação transformadora na direção da autonomia.

No plano jurídico, parece-me que essa é a situação do Supremo Tribunal Federal. No entanto, a esse respeito, antes da referência à “desrazão” ou “razão” em um sentido abarcante, cabe falar de irracionalidade sistêmica do ponto vista jurídico, fechada ao aprendizado com argumentos de consistência jurídica e adequação social do direito. Essa situação importa um desempenho limitado no sentido da institucionalização constitucional, apesar da retórica constitucionalista excessiva dos ministros e doutrinadores. Em breve exposição, apresentarei alguns aspectos da “desrazão” jurídica e constitucional do Supremo Tribunal Federal, fechada ao aprendizado transformador.

Na perspectiva do desenho institucional formal, o fato de que cada voto é elaborado separadamente e constitui parte do acórdão torna altamente improvável qualquer aprendizado colegiado. A esse respeito, o que conta é o dispositivo. Em casos de alta relevância constitucional, a decisão é tomada por unanimidade, mas os fundamentos são diversos e, às vezes, contraditórios. Não há ratio decidendi comum. Configura-se um decisionismo em relação à maioria convergente em torno do dispositivo. Em matéria de declaração de inconstitucionalidade, que exige maioria absoluta do pleno, é comum alcançar-se essa maioria quanto ao dispositivo, sem que isso ocorra em relação aos fundamentos. Nesse sentido, a construção de precedentes fica prejudicada e, portanto, o aprendizado constitucional bloqueado. Muitas vezes, a própria ementa não consegue expressar o fundamento e resultado da decisão, dadas as incongruências argumentativas no procedimento decisório.

Do ponto de vista da prática institucional, chama a atenção o acesso unilateral de advogados a audiências fechadas como os ministros, sem que a parte adversa seja convidada nem sequer informada. Nesse particular, viola-se o princípio constitucional do contraditório. Normalmente, as partes e os advogados que têm acesso são aqueles mais poderosos, seja do ponto de vista econômico, político ou relacional. As partes e advogados menos influentes dificilmente conseguem audiência, que depende do arbítrio do respectivo ministro. Um caso interessante diz respeito a um advogado americano que veio para atuar em uma ação contra o uso do amianto. Ao entrar no salão branco do STF para ter uma audiência com o ministro, ele perguntou à jovem advogada brasileira que o acompanhava: ‘onde está o representante da outra parte?’ A advogada brasileira respondeu: ‘em regra, não se convida a outra parte para essas audiências’. O ingênuo advogado americano perguntou: ‘Isso não pode levar à nulidade?’. A advogada brasileira riu e disse: ‘não’. Na linguagem vulgar do meio jurídico, esses são os “embargos auriculares”, muitas vezes bem mais eficazes do que os atos processuais formais e públicos.

Sob a ótica da carga de trabalho, a impossibilidade de selecionar os casos constitucionalmente relevantes, aliada ao incremento excessivo de competências, torna a própria capacidade decisória do Tribunal muito limitada. Onze ministros sobrecarregados, cada um deles com dezenas de milhares de processos para decidir anualmente, sendo setenta por cento agravos de instrumento, delegam para um número enorme de assessores e analistas a competência para “decidir”, sem que haja condições práticas para rever as respectivas “decisões”. Os ministros reduzem-se, em grande parte das decisões, a carimbadores de documentos. A propósito, a Emenda Constitucional 45/2004, suspostamente destinada a reduzir a sobrecarga processual do Supremo Tribunal Federal, parece ter viabilizado o acesso mais amplo ao STF. A Súmula Vinculante permite que reclamações contra qualquer autoridade administrativa ou judiciária que a desrespeite seja levada imediatamente ao Supremo. Como as súmulas, analogamente às chamadas “leis interpretativas”, precisam ser interpretadas, a possiblidade de questionamento perante o STF multiplicou-se. Da mesma maneira, a exigência da repercussão geral em recurso extraordinário é controversa quanto ao efeito de diminuir a carga de trabalho do Tribunal. A possibilidade recursal de questionar a decisão do juízo a quo perante a Suprema Corte leva a que uma avalanche de processos seja submetida a esse Tribunal. A Emenda Constitucional nº 45/2004, por fim, transferiu competências do Superior Tribunal de Justiça para o STF, expandindo ainda mais seu campo de atuação. Nesse contexto, portanto, a irracionalidade funcional resulta de que o aumento da demanda relaciona-se com o declínio da capacidade decisória do próprio Supremo Tribunal Federal.

Quanto ao aspecto técnico-jurídico, destaca-se a falta manifesta de coerência e consistência da cadeia decisória. Proliferam decisões que se incompatibilizam entre si, muitas vezes em curtíssimo período de tempo. Neste contexto, destaca-se o abuso do que seria o overruling ou o distinguishing implícito, sem que o Tribunal explicite ou justifique a mudança de posição ou o enquadramento jurídico diferente do novo suporte fático concreto. Esse problema se agrava tendo em vista o déficit institucional referido acima, envolvendo decisões internamente inconsistentes. Também é relevante a esse respeito a carga de trabalho discutida no parágrafo anterior, importando incongruências na cadeia decisória de um mesmo ministro, submetido às idiossincrasias decisórias de uma multiplicidade de assessores e analistas. Essa não é propriamente uma questão de incerteza do direito, inerente a qualquer ordem jurídica moderna, mas sim um problema que pode levar a grave insegurança jurídica.

Sob o aspecto da adequação social, desenvolve-se a ilusão, fortificada por doutrinadores, cientistas políticos e sociólogos, de que a judicialização, em si mesma, resulta na observância, execução e realização da Constituição, ou, em termos da linguagem jurídica brasileira, à efetividade da Constituição. Nessa perspectiva, a judicialização significaria o enquadramento das instituições ao marco jurídico-constitucional. Mas nem sempre judicialização significa juridificação, muito menos constitucionalização. A atuação do Poder Judiciário pode promover decisões que levam a práticas de difícil compatibilidade com o modelo constitucional. Às vezes, como se observa na área de saúde, o julgamento favorável a pagamento milionário para tratamento de certos indivíduos — quase sempre socialmente privilegiados —, como se o direito à saúde fosse ilimitado, bloqueia políticas de saúde pública universal. Nesse contexto, não se observa que a efetivação constitucional depende da atuação de outras esferas estatais, inclusive o Executivo, assim como de condições sociais, não se restringindo a decisões judiciais espetaculares e pontuais. O cotidiano das instituições estatais, especialmente da polícia e das penitenciárias, mas também de outras instâncias do Executivo, Judiciário e Legislativo, desenvolve-se, em grande parte, à margem da Constituição e da legalidade. Mas essa não é simplesmente uma questão de incapacidade institucional do Judiciário, pois envolve uma postura seletiva e discriminatória que, estruturalmente, beneficia os setores socialmente mais fortes em detrimento dos mais fracos na estrutura da estratificação social.

Relacionado a essa postura seletiva negativa, verifica-se, do ponto de vista da autonomia sistêmica, que preferências e imperativos econômicos, políticos e relacionais sobrepõem-se diretamente à jurisdição constitucional, em detrimento de uma argumentação jurídico-constitucional apropriada e consistente. Nesse caso, não se pode totalmente excluir a “corrupção” sistêmica no nível da jurisdição constitucional, na medida em que particularismos políticos, econômicos e relacionais podem estar vinculados a decisões ancoradas em argumentos retóricos ad hoc manifestamente insustentáveis do ponto de vista jurídico-constitucional, em favor de privilégios incompatíveis com a Constituição. Às vezes, liminares monocráticas, concedidas às pressas, podem ser vistas como indícios da sobreposição de preferências externas (corporativas, econômicas, político-partidárias, relacionais etc.) aos critérios jurídicos que deveriam ser aplicados, fugindo de qualquer baliza razoável da argumentação jurídica. Talvez seja possível enquadrar nessa hipótese as recentes decisões que concederam o auxílio moradia a praticamente todos os magistrados brasileiros.

Um aspecto que se aponta como positivo consiste na publicidade e transparência que decorreria da transmissão televisiva das sessões do pleno por meio da TV Justiça. Em princípio, não caberia nenhuma restrição a essa opção, pois ela teria a finalidade de abrir o STF à esfera pública. Parece-me, porém, que a transmissão ao vivo dessas sessões, na forma atual, serve menos à transparência do que à espetacularização. Além disso, a prática institucional de votos longuíssimos lidos perante as câmeras televisivas sobrecarrega temporalmente um órgão já exposto a uma extrema pressão temporal. Não se trata de uma sessão de trabalho produtiva e eficiente, mas antes de uma boa diversão para o público. Por fim, o próprio custo da TV-Justiça como um todo deveria ser questionado em um país com amplas demandas em áreas carentes de recurso.

Essa situação de um decisionismo ad hoc do Supremo Tribunal Federal, marcado por forte teor de irracionalidade, é tanto mais forte na medida em que a doutrina jurídica não se apresenta como um contraponto crítico relevante. Faltam irritações ao Supremo Tribunal Federal pela doutrina jurídica. Ocupada na maior parte por advogados, magistrados e membros do Ministério Público envolvidos regularmente nas contendas judiciais de natureza constitucional, as faculdades de direito tendem a reproduzir as decisões do STF em um tipo de dogmática ingênua, transformada em “casuística” à brasileira: soma de decisões sem análise da cadeia decisória, como se houvesse uma racionalidade evidente na solução dos casos. A construção de uma doutrina jurídica mais crítica em relação ao desempenho do Supremo Tribunal Federal não levará à superação de irracionalidades decisórias sedimentadas historicamente, mas pode servir como “irritações” que forcem, em certa medida, à abertura da “desrazão” à “razão”.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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