A Derrota de Cronos: a contagem do prazo de prescrição intercorrente
24 de setembro de 2023, 8h00
Inseridos que estamos em uma cultura judaico-cristã, que estranheza pode causar a ideia de que o tempo, ele mesmo, é uma criação divina? O início do livro sagrado do Gênesis já nos conta que Deus, tendo criado a luz, separou-a das trevas que até então imperavam sobre a terra disforme, e a chamou Dia, enquanto às trevas denominou-a Noite. Por isso, houve tarde e manhã, o primeiro dia[1]. Manhãs, tardes, noites, dias, semanas, anos. Deus, o criador, assim os fez, e assim os tem sustentado, em um cosmo infinito e incontrastável.
Por sua origem divina, o tempo se impõe a nós, de uma forma tão implacável quanto o que pretende ser a própria explicação mítica sobre o seu surgimento. Não é à toa que, no dia a dia de todos nós, poucos são os que se interessam pela compreensão do que seja o tempo. É o que é. É o que tem sido. É o que sempre foi. É uma sequência em fluxo, contínua, avassaladora, imparável. É vida que segue. É simples assim.
Temos de convir que os gregos da Antiguidade Clássica foram bem mais inventivos na explicação sobre o surgimento do tempo. Com contornos de uma típica tragédia grega, conta-se que, na origem, não havia tempo. Havia Céu e Terra. Havia Urano e Gaia, permanentemente ligados um ao outro, a formar um só todo. E assim ficou até Cronos, a pedido de sua mãe Gaia, impingir sobre seu pai Urano o golpe mutilador necessário a separá-los [2], de modo a permitir que ele, Cronos, Deus do tempo e o rei dos titãs, instaurasse sobre Céu e Terra o reino da infalibilidade do seu próprio tempo, o tempo cronológico. Separados Terra e Céu, surgia o antes-e-depois implacável, contra o qual nem mesmo Zeus, filho de Cronos, foi capaz de destruí-lo, mesmo tendo derrotado seu pai, em cumprimento à maldição lançada por Urano a Cronos.
E não é que, passados milênios da origem mítica do tempo, eis que uma instituição judiciária brasileira impõe a Cronos uma nova derrota?
Pois sim, foi o que o Superior Tribunal de Justiça fez ao decidir o Recurso Especial 1.340.553 (Tema Repetitivo 566). Porém, com fulgor acachapante, que nem o próprio Zeus havia conseguido impingir a Cronos, já que, a pretexto de dar intepretação uniforme ao artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80), subverteu a cronologia do tempo, rebaixando-a a figurante de uma retroação lógica que, por vezes, será a nova reinante no mundo terreno das prateleiras deslizantes e dos escaninhos forenses em que se arquivavam as execuções fiscais [3].
Para bem se entender o que estou a dizer, penso ser necessário fazermos breve considerações sobre o recurso especial (REsp) 1.340.553. Afinal, convenhamos, se até a presunção de conhecimento da lei (artigo 3º, lei de introdução ao direito brasileiro) se revela autêntica ficção jurídica na maioria das vezes, que se dirá sobre o teor de um recurso especial X, a originar um tema repetitivo Y, sobre uma legislação Z.
Resumidamente, no referido REsp, o Superior Tribunal de Justiça viu-se às voltas de ter de fixar o marco temporal inicial do prazo de prescrição intercorrente previsto no artigo 40 da Lei de Execução Fiscal (LEF), dada a divergência jurisprudencial sobre a matéria. Ao fazê-lo, decidiu que o início da contagem do prazo prescricional não depende de um pedido formal feito pela Fazenda Pública, a requerer a suspensão da execução fiscal por um ano, como sugeria a literalidade do § 2º do artigo 40, LEF. Pelo contrário, decidiu que a prescrição intercorrente inicia automaticamente da data da ciência da Fazenda Pública acerca da não-localização do devedor ou da inexistência de bens penhoráveis em seu domicílio. E assim o fez, assumidamente, a partir de uma interpretação teleológica – voluntarista, talvez? – de que o espírito do artigo 40, LEF é o de que nenhuma execução fiscal poderá permanecer eternamente nos escaninhos do Poder Judiciário.
Abre parênteses: a concepção ponteana de que a incidência de uma regra jurídica é automática e infalível [4], ainda que os sujeitos descritos no consequente normativo não o saibam, não causa maiores estranhezas entre nós, por ser, de algum modo, prevalecente na formação jurídica brasileira. O que deveria causar estranheza, isto sim, é aparente singeleza da ideia de que um prazo prescricional se inicia automaticamente, quando a norma jurídica que o disciplina diz justamente o contrário [5]. Fecha parênteses. Sigamos.
Certa ou errada, a resposta que o Superior Tribunal de Justiça deu à questão submetida a julgamento – qual o pedido de suspensão por parte da Fazenda Pública que inaugura o prazo de 1 (um) anos previsto no art. 40, § 2º, da LEF? – era suficiente: inicia-se automaticamente da data em que a Fazenda Publica teve ciência da não-localização de bens ou do próprio devedor. Contudo, seja porque reputou-a incompleta, seja porque viu a oportunidade de traçar balizamentos laterais à questão, o tribunal não apenas apontou o termo inicial do prazo de prescrição intercorrente, como também definiu – criou? – causas de interrupção do prazo prescricional, as quais, salvo alguma leitura apressada de minha parte, nunca foram estabelecidas na legislação processual.
E foi desse modo, exatamente assim, que o STJ subverteu o tempo de Cronos, optando por um tempo não linear, assemelhado ao tempo lógico lacaniano [6]. Assim agiu quando estabeleceu – legislou? – que são a efetiva constrição patrimonial e a efetiva citação aquelas que, em ocorrendo no mundo dos fatos, têm aptidão para interromper o fluxo implacável da temporalidade prescricional. E para não abrir margem a dúvidas, asseverou: não bastando para tal o mero peticionamento em juízo, requerendo, v. g., a feitura da penhora sobre ativos financeiros ou sobre outros bens. Aqui, precisamente aqui, Cronos foi derrotado.
Mas, por quê? Por uma razão consideravelmente simples: até o julgamento do REsp 1.340.553, a prescrição intercorrente era necessariamente apriorística. A Fazenda Pública, ao postular providências em juízo, poderia – ou deveria (artigo 53, Lei nº 11.941/09 [7]) – saber de antemão que os fatos ocorridos antes de sua manifestação já se enquadravam na hipótese de incidência da prescrição intercorrente, nos moldes do artigo 40, LEF. Ou seja, ao ser intimada a se manifestar em termos de prosseguimento, tinha a Fazenda condições de averiguar se sua inércia havia sido tal a implicar a extinção do crédito tributário pela prescrição intercorrente. Após o julgamento do REsp 1.340.553, não. É perfeitamente possível que a Fazenda Pública postule providências que julgue eficazes à penhora de bens e, depois, veja-se na contingência de não só permanecer destituída da possibilidade satisfação de seu crédito via hasta pública, como também na de ser reputada inerte a posteriori, como se nada tivesse feito, ou como se não tivesse agido diligentemente nos limites de sua atribuição legal, que até aqui – a decisão do STF na ADI 5.886 não me deixa mentir [8] – não se conferiu poderes de constrição patrimonial na seara administrativa.
A ineficácia de uma medida constritiva é sempre aferível a posteriori. É, nas palavras kantianas, um conhecimento empírico [9], que demanda a experiência para que, com ela, atribua-se significado ao que já passou. Já a prescrição, pelo menos na esfera cível, sempre se apresentou como um conhecimento apriorístico, isto é, que independe da ocorrência de um fato futuro para que, com ele, valorem-se fatos passados.
Isto foi subvertido pelo STJ, pois, com o entendimento do REsp 1.340.553, também a prescrição – no caso, a intercorrente – e a consequente punição pela inércia da Fazenda Pública, tornou-se um juízo valorativo que se exerce a posteriori, deixando de estar submetida ao tempo cronológico dos fatos. Assemelhou-se à prescrição penal que, até o trânsito em julgado para a acusação, rege-se pela pena in abstrato, e que, após, regula-se pela pena in concreto, produzindo efeitos retroativos sobre o processo penal, nos casos em que a pena aplicada é menor que a máxima prevista em lei. Só que, diversamente do que ocorre com o processo penal, em que a distinção entre Estado-juiz e Estado-acusação é inebriada pelo ideal de proteção à liberdade individual face à demora estatal, a distinção entre Fazenda Pública e Poder Judiciário é bem delimitada, não só pela lei, mas também pela jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça. Basta nos lembrarmos da consagrada súmula STJ 106 (sugiro incluir em nota de rodapé o teor, nem sempre o leitor ou leitora tem afinidade com o conteúdo de súmulas e temas), inúmeras vezes invocada pela Fazenda Pública para afastar a prescrição por uma inércia que não foi sua.
Não é possível saber se o STJ tinha em mente o tamanho da inversão que estava por realizar. Deliberado ou não, o atual estado da arte é este: mais eficiência, menos segurança. Mais consequencialismo, menos interpretação da lei. Mais prescrição intercorrente, menos saneamento processual. Mais tempo lógico, menos tempo cronológico. Enfim, mais Lacan, menos Cronos. Nem mesmo Zeus havia sido capaz de tal façanha.
[1] Livro do Gênesis 1:5
[2] HESÍODO, Teogonia: a origem dos deuses, São Paulo, Editora Iluminuras, 2007, p. 109
[3] Ou nos esconderijos algorítmicos dos PJe(s) e dos eSAJ(s) da contemporaneidade digital.
[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante, Incidência e aplicação da lei, Revista da Ordem dos Advogados de Pernambuco, ano 1, nº. 1, 1956, p. 53.
[5] Os juízos mandatórios contidos no caput do art. 40 (O juiz suspenderá…) e no § 2º do mesmo artigo (… o juiz ordenará o arquivamento dos autos) parecem ir na contramão de uma pretensa automaticidade infalível de uma prescrição intercorrente que independeria da enunciação da suspensão processual e de seu arquivamento.
[6] LACAN, Jacques, Escritos, Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1998, p. 909.
[7] Art. 53. A prescrição dos créditos tributários pode ser reconhecida de ofício pela autoridade administrativa.
[8] O art. 20-B, inciso II, Lei nº. 10.522/02, que previra à Fazenda Nacional a prerrogativa administrativa de averbar a CDA nos órgãos de registro de bens, de modo a torna-los indisponíveis, foi declarado inconstitucional, uma vez que, segundo o Supremo Tribunal Federal, a indisponibilidade deve respeitar a reserva de jurisdição, o contraditório e a ampla defesa, por se trata de forte intervenção no direito de propriedade.
[9] KANT, Immanuel, Crítica da razão pura, 4ª ed., Bragança Paulista, Editora Vozes, 2015, p. 46.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!