Opinião

IOF no STF: distinção entre mútuo e conta corrente

Autores

28 de novembro de 2023, 19h30

Em outubro deste ano, o Supremo Tribunal Federal julgou o Tema de Repercussão Geral nº 104 [1], em que se debatia o alcance da hipótese de incidência do Imposto sobre Operações Financeiras. Em linha com seu entendimento pretérito externado no caso das factorings [2], a unanimidade do Plenário do STF declarou, seguindo a relatoria do ministro Cristiano Zanin, a constitucionalidade da incidência do IOF sobre operações de mútuo celebradas entre instituições não financeiras (ou entre pessoa física e empresa não qualificada como instituição financeira). Tal raciocínio levou à convalidação do disposto no artigo 13 da Lei nº 9.779/1999 [3], eis que há ampla autorização constitucional para tributação pelo imposto [4], de resto não restringida pelo Código Tributário Nacional [5].

No leading case, o contribuinte (recorrente) questionava a exigência de IOF nos contratos de mútuo entre empresas pertencentes ao mesmo grupo empresarial. Defendia o recorrente que o artigo 13 da Lei nº 9.779/1999 seria inconstitucional, porquanto o mútuo entre instituições não financeiras estaria fora do escopo constitucional do IOF, que possui função regulatória do mercado financeiro — o que impediria sua incidência fora daquele ambiente.

Como dito, os argumentos do contribuinte foram rechaçados. Além de sustentar que o mútuo seria uma operação de crédito, afastou-se o argumento de que o IOF teria função regulatória do mercado financeiro, o que vedaria sua cobrança em outras searas da vida empresarial. Nos termos do voto do ministro relator, o caráter arrecadatório do imposto se sobreporia à pretensão de exclusividade da função regulatória [6].

Foi então fixada a seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional a incidência do IOF sobre operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física, não se restringindo às operações realizadas por instituições financeiras”.

Contudo, ainda que o STF tenha declarado constitucional a incidência de IOF sobre mútuo entre pessoas jurídicas não financeiras, fato é que as operações de conta corrente permanecem fora do alcance do imposto federal.

A esse ensejo, o ministro relator teve a cautela de delimitar o alcance da tese que, naquele momento, se fixava. Em seu voto, fez referência aos argumentos levados pelos amici curiae — dentre os quais a Associação Brasileira de Advocacia Tributária — no sentido de que “o IOF não poderia incidir sobre contratos de conta corrente entre empresas de um mesmo grupo econômico, mediante a reunião de seus caixas individuais em um caixa único”. Afinal, a existência de conta corrente, práxis usual nos grupos econômicos, difere de operações nas quais as partes correm o risco de emprestar valores e não recebê-los. Deixando claro que não emitia juízo de valor sobre o tema – mas, ao mesmo tempo, tampouco o incluía dentre a matéria abarcada pelo julgado — o relator afirmou que o enquadramento do contrato de conta corrente como operação de mútuo “compete às instâncias ordinárias, à luz das cláusulas contratuais e das provas, e em face da legislação infraconstitucional”.

A ressalva foi correta. De fato, o IOF não incide sobre o contrato de conta corrente pois este não se amolda à figura jurídica do mútuo. Como já escrevemos no passado, o contrato de conta corrente possui características próprias que devem ser observadas pelo grupo econômico. A conta corrente é fruto de um acordo — que pode ser expresso ou tácito — entre sociedades integrantes de um mesmo grupo econômico. Sua finalidade é a de viabilizar o trânsito de valores entre as diversas pessoas jurídicas sob o mesmo controle acionário. Tal acordo unifica a gestão financeira em uma única empresa do grupo, facilitando as operações com o dinheiro que, ao fim do dia, retornará à entidade controladora ou aos seus acionistas, que são os mesmos em todas as pessoas jurídicas.

A conta onde se registram os valores fica em constante movimento, contendo a demonstração de débitos e créditos, sem qualquer compensação entre eles. Em tal situação não há mútuo, mas uma sucessão de escriturações de créditos e débitos, em um fluxo contínuo, sendo que apenas com o encerramento da conta se faz a apuração da eventual diferença. A colaboração entre empresas do mesmo grupo econômico, além de lógica, possui fundamento na Lei das S/A (Lei nº 6.404/1976), que prevê a possibilidade de constituição de grupo de sociedades para auxílio recíproco (artigo 265).

Diferentemente do contrato de conta corrente, o contrato de mútuo, sobre o qual o STF validou a cobrança do IOF, pressupõe o empréstimo de bem fungível, gerando ao mutuário a obrigação de restituição do bem de mesma espécie, qualidade e quantidade, nos termos do artigo 586 do Código Civil. Mútuo é empréstimo com valor, prazo e índice de correção previamente pactuados.

Em síntese, a existência de saldo devedor escriturado na conta corrente não torna uma sociedade do mesmo grupo credora da outra, já que é da natureza dessa espécie contratual a modificação dos polos credor/devedor de modo constante, somente sendo possível falar em eventual dívida quando do encerramento do contrato. Já no mútuo, o objetivo da contratação é exatamente a operação de crédito, com todos os seus elementos característicos à luz do Código Civil — que se fazem ausentes na conta corrente empresarial.

Dessarte, embora não tenha versado sobre o mérito da questão, a ressalva do ministro Cristiano Zanin ao relatar o Tema-RG nº 104 denota a procedência da distinção entre mútuo e conta corrente. Ambos não se configuram uma só e a mesma coisa. Ao revés, são institutos que possuem ratio essendi e fundamentos jurídicos distintos. Em não sendo operação de crédito, não há como submeter o contrato de conta corrente empresarial à incidência do IOF.


[1] Tema 104 – Incidência de IOF em contratos de mútuo em que não participam instituições financeiras.

[2] A matéria constitucional de fundo – possibilidade de cobrança do IOF de contribuintes fora analisada no seguinte julgado: STF, Pleno, ADI nº 1.763/DF,

[3] Lei nº 9.779/1999:

“Art. 13.  As operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física sujeitam-se à incidência do IOF segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras.”

[4] O art. 153, V da CR/1988 dispõe que o imposto pode incidir sobre “operações de crédito” (dentre outras), sem restrições quanto à natureza do contribuinte.

 [5] O CTN define o momento de ocorrência da operação de crédito quando da “entrega total ou parcial do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado” (art. 63, I) — sem qualquer restrição quanto ao contribuinte da exação, que é definido como “qualquer das partes na operação tributada” (art. 66).

[6] Debate análogo sobre a possibilidade de se usar tributos extrafiscais para arrecadar chegou ao STF quando se questionou a incidência do Imposto de Exportação sobre petróleo, instituído temporariamente para fins arrecadatórios. Contudo, a ADI nº 7.359/DF, que veiculava o debate, perdeu seu objeto pela não conversão em lei da medida provisória que instituíra a tributação.

Autores

Tags:  

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!