Opinião

Quem tem medo da transcendência no recurso de revista?

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24 de novembro de 2023, 6h02

Foi-se o tempo em que o medo dos advogados era o prequestionamento, tema que inspirou o título do célebre artigo de Cassio Scarpinella Bueno [1], de quem agora tomo de empréstimo. Desde que a reforma trabalhista deu vida à transcendência no recurso de revista, o bicho-papão daquela época tomou outra forma e ganhou outro nome. Se é verdade, por um lado, que de lá para cá a experiência jurisprudencial dos tribunais superiores contribuiu para dar contornos mais precisos ao prequestionamento, deixando mais claro o seu funcionamento e diminuindo a angústia dos advogados, por outro lado, a esperança de que a transcendência se aproximasse de um mecanismo de produção de precedentes vinculantes foi se esvaindo com o passar dos anos.

À medida que se acumulavam decisões monocráticas apreciando a transcendência de modo individualizado em cada caso concreto, sobretudo quando  divergiam sobre o preenchimento do requisito em relação a uma mesma matéria, eu me perguntava: qual a finalidade de se criar mais um obstáculo processual entre tantos existentes? Requisitos intrínsecos de admissibilidade, súmulas processuais, entendimentos jurisprudenciais defensivos e instruções normativas do TST já tinham o objetivo de servir de barreira para a enxurrada de recursos de revista sem relevância que atolava o tribunal. Não havia, portanto, lógica na criação de algo que fosse apenas um novo requisito de admissibilidade do recurso de revista.

Me consolou, em parte, o fato de que a inquietação não era só minha. O ministro Aloysio Corrêa da Veiga, em julgamento da SDI-1 (Ag-E-RR-7-94.2017.5.17.0002), demonstrou sua irresignação com a situação em voto vencido:

“(…) Uma turma diz que há transcendência em relação a um tema — outra turma diz que não há transcendência quanto ao mesmo tema. Qual decisão deve prevalecer? Simplesmente afirmar a irrecorribilidade das decisões, é deixar de dar interpretação conforme à Constituição Federal para questões que são reiteradas nas Turmas e que, não hoje, mas em algum momento, pode retirar totalmente o papel da Corte Superior de órgão uniformizador da jurisprudência.” [2].

Percebam a perplexidade: a Subseção I de Dissídios Individuais, com atribuição de uniformização no TST, entendeu que ela própria não pode uniformizar, ainda que remanesça controvérsia entre turmas que divirjam em relação à existência de transcendência em determinada matéria. Pereniza-se, portanto, a controvérsia. E não saímos do lugar. A situação me faz lembrar Lenio Streck criticando o modo solipsista de julgamento, com a ironia que lhe é peculiar: “ao que consta, não se vai ao judiciário pedir a opinião pessoal do magistrado” [3]. Queremos, acima de tudo, certa ou errada, a posição do tribunal, e não do ministro ou da turma.

Já estamos convencidos, na atual quadra histórica, de que um tribunal superior não deve julgar tudo. Primeiro porque seria humanamente impossível. Segundo porque desvirtuaria a sua função maior de pacificador de divergências. Cabe, portanto, ao tribunal superior escolher as matérias relevantes que quer julgar para fazê-lo com qualidade. Sim, “escolher”. E não há qualquer problema nisso. Muitas cortes superiores mundo afora assim o fazem, com êxito, e sem maiores questionamentos da comunidade jurídica.

O problema não é o poder político de escolher o que aprecia; é a ausência de um procedimento de formação de precedentes vinculantes no âmbito da corte superior. É nesse vácuo sistêmico que se multiplicam os óbices processuais para, de maneira improdutiva e desvirtuada, tentar cumprir a tarefa de barrar, não raro sem critérios objetivos, recursos com matérias de menor importância sob o ponto de vista de um sistema de precedentes vinculantes.

Há mais de seis anos, antes mesmo da regulamentação da transcendência pela reforma trabalhista, publiquei artigo nesta Conjur [4] com o sugestivo título “a repercussão geral no recurso de revista”. Nele, eu apontava a direção que deveria seguir o instituto: o caminho do bem-sucedido regime de submissão de temas para apreciação pelo STF. Na ocasião, demonstrei meu receio de que o TST continuasse mergulhado num “imenso varejo de miudezas” caso não delineasse da forma adequada o seu filtro recursal.

Passados todos esses anos desde a criação do filtro processual trabalhista, ainda estamos, embora atrasados, em tempo de aproveitar, à toda evidência, a oportunidade histórica surgida em 2017 para que o TST possa aprimorar seu regime de fixação de teses vinculantes. Há que se deixar de lado, de uma vez por todas, a pobre tarefa de usar a transcendência como mais um instrumento discricionário para se perder em meio ao emaranhado de óbices processuais já utilizados pela corte superior trabalhista.

Os que militam na área trabalhista vão naturalmente se lembrar que já existe o Incidente de Recursos de Revista Repetitivo (IRR), o que representou significativo avanço. Mas você, leitor, sabe quantos temas foram submetidos e jugados pelo Incidente do TST desde sua criação? Apenas 21 (sendo 18 julgados). Para fins de comparação, o STJ já submeteu 1168 temas ao seu regime de repetitivos e, só durante o ano passado, julgou 40 recursos na referida sistemática. O STF, por sua vez, submeteu 1.247 temas ao regime de repercussão geral, apreciando, no ano passado, 11 recursos extraordinários com repercussão geral.

Aplicar a transcendência como deveria ser (técnica de julgamento vinculante) — e não como está sendo (caso a caso, de modo individualizado) — servirá de caminho para que o TST escolha legitimamente os temas que quer julgar, deixando claro aos jurisdicionados quais matérias eles podem e quais não podem fazer subir à corte superior trabalhista.

O procedimento é simples. Uma vez distribuído o recurso de revista ao relator na turma ou ao presidente do tribunal, se o ministro entender que a matéria é digna de transcendência, submete à SDI-1, no regime do IRR, preferencialmente de forma virtual, para decidir se aquela matéria deve merecer julgamento meritório do tribunal. Reconhecida a existência ou inexistência da transcendência, a decisão do tribunal superior valerá para todos os demais tribunais trabalhistas. Ato contínuo, os tribunais regionais estarão obrigados a admitir ou barrar, na origem, os recursos de revista a depender de se tratar de matéria com ou sem transcendência, respectivamente. O sistema judiciário sai ganhando.

O desembargador do Trabalho José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza, hoje convocado para atuar no TST, escreveu em 2011 [5], após entrevistar vários ministros do TST, que a transcendência ainda não havia sido regulamentada após dez anos de sua previsão na CLT em razão de divergências entre os próprios Ministros quanto ao modelo de funcionamento do instituto e quanto à discricionariedade judicial na sua aplicação. Seis anos após a sua regulamentação e diante da prática exitosa da repercussão geral, não há mais razões para temores com relação ao que a transcendência deve ser. Nos ensina o ditado popular que o medo nunca é bom conselheiro. Basta, portanto, deixá-lo de lado e querer avançar para um sistema que já funciona bem logo ali ao lado na Praça dos Três Poderes.


[1] Faz-se alusão ao clássico artigo escrito pelo professor Cassio Scarpinella Bueno intitulado: “Quem tem medo do prequestionamento?” disponível em http://www.scarpinellabueno.com/images/textos-pdf/023.pdf.

[2] O ministro ainda defende em seu voto que seja dada interpretação conforme à Constituição ao artigo 896-A, §4º da CLT o qual prevê a irrecorribilidade da decisão turmária que reconhece a ausência de transcendência.

[3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-08/senso-incomum-naufragio-juridico-quem-tubaroes-comerao-primeiro-criterios.

[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-abr-07/nader-repercussao-geral-recurso-revista-requer-regulamentacao/

[5] Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2138/tde-31052012-154840/pt-br.php.

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