Opinião

Resolução nº 344/2022 do TCU não pode ter sua finalidade deturpada

Autor

  • João Pedro Riff Goulart

    é sócio do escritório David & Athayde Advogados pós-graduando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em Direito Econômico e Regulatório e consultor em Direito Administrativo Regulatório integridade corporativa licitações e contratos administrativos.

23 de novembro de 2023, 15h21

O Tribunal de Contas da União (TCU) editou a Resolução nº 344/2022 a fim de reconhecer a eficácia do Tema de Repercussão Geral nº 899 do STF, o qual definiu que é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de corte de contas.

Desse modo, a partir da nova norma, após anos de instabilidade na jurisprudência do TCU, que oscilou entre a imprescritibilidade e a prescrição decenal do Código Civil (artigo 205[1]), a corte passou a ter uma regulamentação básica para que a prescrição fosse reconhecida em processos em curso e futuros, aparentemente, de forma uniforme e razoável.

Entretanto, embora o prazo prescricional seja de apenas cinco anos (artigo 2º[2]), há alguns termos iniciais de contagem da prescrição (artigo 4º[3]) e muitos marcos interruptivos (artigo 5º[4]) e, dependendo do caso concreto, a norma que deveria servir à segurança jurídica e reduzir o número de condenações pode causar ainda mais polêmica no dia a dia da corte, caso seja aplicada sem tecnicidade.

Isto é, o artigo 1º[5] e o artigo 18[6] da Resolução nº 344/2022 deixam claro que a norma se aplica aos processos em curso, mas não há qualquer regime de transição entre o novo entendimento e o anterior que vinha sendo aplicado pelo TCU desde meados de 2016. E isso, certamente, demandará da corte interpretação conforme.

Ora, há inúmeros processos no TCU que apuram supostos danos ao erário cometidos há duas décadas e que estariam prescritos pela regra do Código Civil, mas que, a partir da Resolução nº 344/2022, teriam tratamento totalmente diverso, sobretudo porque o entendimento anterior do TCU era de que havia um único marco interruptivo da prescrição: a citação válida realizada pela própria corte (acórdão nº 1.441/2016, do plenário do TCU[7]).

Logo, caso a Resolução nº 344/2022 seja aplicada a esses casos antigos do TCU sem qualquer ponderação, o Brasil inaugurará a inédita imprescritibilidade retroativa para malefício de muitas empresas, cujos administradores nem sequer podem ter a sua conduta analisada detidamente em sede de tomadas de contas especial (RE n.º 636886, STF[8]).

Tal retroatividade maléfica, inegavelmente, seria deletéria para o desenvolvimento econômico do país e, certamente, seria prejudicial para a administração pública, visto que a iniciativa privada incluiria essas virtuais condenações (até então descartadas) em seus futuros preços e, obviamente, esse excesso de cobrança recairia sobre a população em geral.

Ademais, tal entendimento é perigoso porque deturpa o que a ordem jurídica [9] posta pensa acerca da ilegalidade da aplicação retroativa de orientações gerais prejudiciais aos auditados, como se depreende, sobretudo, dos artigos 6º [10], 23 [11] e 24 [12], da Lindb, e dos artigos 5º [13] e 6º [14], do Decreto nº 9.830/2019).

Ou seja, espera-se que as prescrições já consolidadas pela regra do Código Civil e ainda não declaradas pelos ministros do TCU em processos em curso não sejam analisadas pela corte com base na Resolução nº 344/2022, porque representariam verdadeira imprescritibilidade retroativa maléfica para os auditados, que, provavelmente, já arguiram a existência de prescrição por muitos anos e tal mudança abrupta de orientação prejudicaria a segurança jurídica e deturparia a finalidade da norma.


[1] Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

[2] Art. 2º Prescrevem em cinco anos as pretensões punitiva e de ressarcimento, contados dos termos iniciais indicados no artigo 4°, conforme cada caso.

[3] Art. 4° O prazo de prescrição será contado: I – da data em que as contas deveriam ter sido prestadas, no caso de omissão de prestação de contas; II – da data da apresentação da prestação de contas ao órgão competente para a sua análise inicial; III – do recebimento da denúncia ou da representação pelo Tribunal ou pelos órgãos de controle interno, quanto às apurações decorrentes de processos dessas naturezas; IV – da data do conhecimento da irregularidade ou do dano, quando constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal, pelos órgãos de controle interno ou pelo próprio órgão ou entidade da Administração Pública onde ocorrer a irregularidade; V – do dia em que tiver cessado a permanência ou a continuidade, no caso de irregularidade permanente ou continuada.

[4] Art. 5º A prescrição se interrompe: I – pela notificação, oitiva, citação ou audiência do responsável, inclusive por edital; II – por qualquer ato inequívoco de apuração do fato; III – por qualquer ato inequívoco de tentativa de solução conciliatória; IV – pela decisão condenatória recorrível.

[5] Art. 1º A prescrição nos processos de controle externo, em curso no Tribunal de Contas da União, exceto os de apreciação, para fins de registro, da legalidade dos atos de admissão de pessoal ou de concessão de aposentadorias, reformas e pensões, observará o disposto na Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999, na forma aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, em especial a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.509, e regulamentada por esta resolução.

[6] Art. 18. O disposto nesta resolução aplica-se somente aos processos nos quais não tenha ocorrido o trânsito em julgado no TCU até a data de publicação desta norma.

[7] Adoto, portanto, o prazo de prescrição decenal, contado da prática do ato e interrompido uma única vez na citação/audiência válida realizada pelo Tribunal, em conformidade com o art. 37, § 5º, da CF/88, c/c os arts. 205 e 189 do Código Civil e 219, caput, do Código de Processo Civil, e em consonância com jurisprudência pacífica do Tribunal no sentido de que a citação válida e exigível é apenas aquela realizada pelo TCU.

[8] […] A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento. […] (RE 636886, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-157 DIVULG 23-06-2020 PUBLIC 24-06-2020).

[9] Inclusive, é possível identificar esse mesmo racional no art. 5º, XL, da CRFB: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[10] Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.   

[11] Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

[12] Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

[13] Art. 5º  A decisão que determinar a revisão quanto à validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos cuja produção de efeitos esteja em curso ou que tenha sido concluída levará em consideração as orientações gerais da época. § 1º  É vedado declarar inválida situação plenamente constituída devido à mudança posterior de orientação geral. § 2º  O disposto no § 1º não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futuros de relação em curso. § 3º  Para fins do disposto neste artigo, consideram-se orientações gerais as interpretações e as especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária e as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. § 4º  A decisão a que se refere o caput será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º.

[14] Art. 6º  A decisão administrativa que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado e impuser novo dever ou novo condicionamento de direito, preverá regime de transição, quando indispensável para que o novo dever ou o novo condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. § 1º  A instituição do regime de transição será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º. § 2º  A motivação considerará as condições e o tempo necessário para o cumprimento proporcional, equânime e eficiente do novo dever ou do novo condicionamento de direito e os eventuais prejuízos aos interesses gerais. § 3º  Considera-se nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento anterior consolidado.

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  • é sócio do escritório David & Athayde Advogados, pós-graduando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em Direito Econômico e Regulatório e consultor em Direito Administrativo, Regulatório, Integridade Corporativa, Licitações e Contratos Administrativos.

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