Opinião

A inconstitucionalidade do teto de precatórios da União

Autor

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

23 de novembro de 2023, 6h36

  1. Regime especial de pagamentos dos precatórios da União

A Emenda Constitucional nº 114/2021 criou um teto para o pagamento dos precatórios da União, que durará até o fim de 2026 (artigo 107-A, caput, ADCT). Os valores pagos com precatórios e requisições de pequeno valor vinham crescendo ano a ano, aumentando continuamente seu percentual no PIB. Se, em 2010, o valor foi de quase R$ 14,5 bilhões, em 2022, atingiu mais de R$ 89 bilhões [1].

O tema voltou a ter destaque no meio jurídico porque o próprio governo federal vem defendendo a sua inconstitucionalidade nas ADIs 7.047 e 7.064 [2].

Um dos fundamentos para a criação da PEC foi a de estabilizar os pagamentos anuais decorrentes de decisões judiciais, com a criação de um teto. Esse teto é fixado em relação aos valores pagos em 2016, nos mesmos moldes do que ocorreu para a delimitação dos demais gastos da União, com a criação do teto de gastos (EC 95/2016). Como o teto de gastos limita o crescimento das despesas e os precatórios não tinham limites para o seu crescimento, aumentando para além do IPCA (utilizado para atualizar o teto de gastos), ocorria uma compressão das demais despesas primárias.

No teto de gastos de precatórios não importa se o valor a ser pago por precatórios aumentar demasiadamente de um ano para o outro: haverá mera atualização monetária e não alocação suficiente para pagamento de todo o valor. O teto para os gastos com precatórios estabelecido foi o equivalente ao “valor da despesa paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos”, havendo apenas a atualização monetária do valor nos termos do artigo 107, §1º, do ADCT (artigo 107-A, caput, ADCT).

O cálculo da dívida decorrente de precatórios real continuará sendo realizado. No entanto, a sua utilidade será a de identificar o valor a ser destinado a seu efetivo pagamento e sua diferença para o valor real, no que é denominado de espaço fiscal. Essa diferença será destinada ao Bolsa Família, bem como à seguridade social, da Constituição (artigo 107-A, caput, ADCT).

Algumas despesas são excluídas do teto constitucional.

A primeira delas consiste nos créditos de precatórios que sejam utilizados nos moldes previstos do art. 100, §11, da CF, de acordo com a previsão do artigo 107-A, §5º, do ADCT. Significa, por exemplo, que, se um credor de precatório se utilizar do seu crédito para adquirir um imóvel da União, esse valor não será contabilizado como pago com o orçamento dos precatórios. Dessa forma, haverá um valor maior para o pagamento de precatórios naquele ano.

A segunda consiste no precatório que ultrapasse o valor superior a quinze por cento do montante dos precatórios apresentados em um dado ano, nos termos do artigo 100, §20, da CF (artigo 107-A, §5º, do ADCT). Essa exclusão só deve ocorrer se o valor for parcelado ou houver acordo.

A terceira está relacionada com os créditos de precatórios dos quais sejam detentores entes públicos e que tenham por objetivo a utilização desses créditos para amortizar dívidas, vencidas ou vincendas, como permite o artigo 100, §21, CF (artigo 107-A, §5º, do ADCT).

A quarta exclusão abrange precatórios que não sejam pagos no prazo tradicional, por conta do estabelecimento do teto de gastos com precatórios. Por exemplo, se um dado crédito é inscrito até 2 de abril de 2022, deveria ser pago até 31 de dezembro de 2023. Não sendo pago, tem-se a incidência do artigo 107-A, §3º, do ADCT, que permite a esse credor optar pelo recebimento, desde que haja renúncia de 40% do valor desse crédito.

A quinta exclusão refere-se à atualização monetária dos precatórios inscritos naquele exercício (art. 107-A, §5º, do ADCT). Por fim, tem-se a exclusão dos precatórios decorrentes de demandas relativas ao Fundef.

2. Inconstitucionalidade do regime especial de pagamento da União?
2.1. Regimes especiais anteriores e inconstitucionalidades

A EC 62/2009 criou mais um regime especial de precatórios, julgado inconstitucional pelo STF na ADI 4.425. Naquele regime, existia a possibilidade de escolha dos entes. Uma primeira possibilidade ocorria por meio do depósito de 1/12 do valor calculado percentualmente sobre as receitas correntes líquidas, durando enquanto o valor dos precatórios fosse superior ao valor dos recursos depositados na conta especial. A segunda seria a criação de um prazo de 15 anos, no qual o valor anual a ser depositado corresponderia ao saldo total dos precatórios devidos, divididos pelo número de anos restantes.

Nos dois modelos, havia a possibilidade de quitação dos precatórios por meio de leilão na modalidade de deságio, pagamento à vista, em ordem única e crescente de valor por precatório, dos débitos não quitados com os recursos da conta especial ou por acordo direito com os credores, nos termos da lei do ente.

Prevaleceu na corte a inconstitucionalidade do regime especial. Para o relator originário, ministro Ayres Britto, havia violação do estado de direito, do devido processo legal, do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, e da razoável duração do processo. A alegação de violação ao núcleo de garantia do eficaz acesso ao Poder Judiciário, advém por meio do embaraço à execução, pelos riscos de eternização do procedimento de pagamento. Destacou que a primeira hipótese, sem prazo, seria ainda mais grave, pela probabilidade de que a dívida apenas aumentasse, gerando uma “emenda do calote”. O ministro Fux ainda destacou que a situação poderia ser pior, dada a permissão de que “A natureza abusiva da presente moratória constitucional é ainda mais evidente quando considerado o fato de que precatórios já anteriormente parcelados pelos artigo 33 e 78 do ADCT também poderão ser incluídos na nova prorrogação de prazo, ex vi do artigo 97, §15, do ADCT”.

2.2. As inconstitucionalidades do regime especial de pagamentos de precatórios da União
Em seu parecer, o primeiro argumento da AGU é o de que a emenda constitucional viola a duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, CF). O regime impõe uma duração injustificada do cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública de forma injustificável. Acrescenta-se a probabilidade da necessidade de criação de novos prazos em 2027, diante do tamanho do represamento da despesa. Pelos mesmos argumentos, haveria violação à efetividade da prestação jurisdicional e do acesso à justiça.

Também seria violada a moralidade administrativa (artigo 37, CF), pela quebra da legítima expectativa dos particulares de receberem os valores reconhecidos por sentença judicial. Há violação ao princípio da publicidade (artigo 37, CF), sob o argumento de que há um descompasso entre a justificativa oficial e a criação, logo depois, de despesas obrigatórias com custo adicional de R$ 41 bilhões ao ano.

Há também utilização de argumentos extrajurídicos. Afirma-se que a emenda constitucional gera os seguintes danos à União:

1. Danos fiscais diretos ocasionados pela criação de despesas de caráter continuado com lastro no espaço temporário gerado pelo não pagamento de obrigações já existentes;

2. Danos fiscais causados pelo aumento abrupto nas taxas de juros reais exigidas para financiamento da dívida pública brasileira, decorrente da elevação da percepção de risco em função das referidas PECs;

3. Danos decorrentes da elevação do prêmio de risco embutido nas contratações públicas, em virtude do risco de calote de obrigações contratuais;

4. Danos à transparência das contas públicas, dada a ocultação dos indicadores da dívida pública bruta e liquida; e

5. Danos econômicos decorrentes da aversão ao risco de se investir no Brasil.

Edilson Nobre também aponta a inconstitucionalidade da emenda constitucional. Afirma que há violação à garantia do acesso à tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF), ao direito adquirido e à coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, CF) e à separação de poderes (artigo 2º). A justificativa é a de que o regime especial retira integralmente a eficácia das decisões judiciais e do direito adquirido ao recebimento dos créditos. Afirma, em continuação, que há violação ao direito de propriedade (artigo 5º, XXII, CF) na previsão de recebimento adiantado dos precatórios mediante o deságio de 40% do valor correspondente [3].

Um primeiro grave problema do novo regime é a ausência de previsão que imponha, em algum momento do tempo, a quitação total dos precatórios. Supostamente, o regime especial terminará em 2026 e, a partir de 2027, o regime tradicional voltará a ser aplicado, com obrigação de pagamento de todo o passivo até o exercício subsequente.

É evidente que isso não ocorreria. A União, em 2022, pagou menos da metade do saldo devedor, não sendo provável que essa situação melhore nos anos subsequentes [4]. Não é difícil prever que, até 2027, haverá o acúmulo de centenas de bilhões de reais, com previsões alcançando mais de setecentos bilhões.

Em outros termos, o novo regime de pagamentos não prevê prazo para pagamento do saldo devedor e cria uma situação insustentável, que tende a piorar a partir de 2027. Há, tal como reconhecido na ADI 4.425, violação ao núcleo de garantia do eficaz acesso ao Poder Judiciário, por meio do embaraço à execução, com riscos de eternização do procedimento de pagamento. Podem ser inseridos outros argumentos, a exemplo da violação à razoável duração do processo, utilizado na ADI 4.425, porque o pagamento pode ser dilatado para muitos anos depois. E a duração razoável do processo deve abranger não só a fase de conhecimento, mas também o tempo de cumprimento da obrigação.

A menção, pela AGU, à moralidade administrativa e ao princípio da publicidade não parecem ter, por si só, força para levar ao juízo de constitucionalidade. Não há tamanha violação à publicidade das contas públicas geradas propriamente pela alteração constitucional. A moralidade administrativa não é violada pela alteração em si, mas talvez possa vir de reforço quando acompanhada da argumentação de que o argumento de suposta incapacidade de pagamento dos créditos veio acompanhada, logo depois, de gastos de altíssimo valor.

Argumentos de ordem extrajurídica podem ser utilizados a título de reforço. A própria AGU destaca diversos tipos de danos gerados pela emenda constitucional. O argumento principal para a criação do regime foi o de que havia um teto de gastos que seria atualizado com a inflação e que os gastos com precatórios estariam subindo acima do patamar inflacionário.

Ocorre que os gastos com precatórios decorrem de violações ao direito pelo poder público. E que, muitas vezes, são previsíveis, até porque o crescimento anormal desses gastos decorre de processos repetitivos que geram enxurradas de ações, com o mesmo resultado. Cabe ao poder público se planejar para eventuais novos gastos com precatórios, remanejando o orçamento ou ir, com o tempo, alterando sua conduta para diminuir gastos com pagamentos de precatórios. Não se pode ignorar os gastos bilionários com as emendas secretas e a chamada Pec Kamikaze, que criou artificialmente um estado de emergência para furar o teto de gastos, destacados pela AGU e por Edilson Pereira Nobre.

Por fim, em relação ao regime especial, embora seja possível vislumbrar inconstitucionalidade, há um desafio prático. De acordo com o artigo 107-A, caput, do ADCT, “o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal”. O programa previsto no parágrafo único é o direito a uma renda básica familiar (Bolsa Família).

Se o STF reconhece a inconstitucionalidade do regime especial de precatórios, desaparece o espaço fiscal para o Bolsa Família. Trata-se de uma consequência trágica, trazendo para a Corte a “responsabilidade” por retirar o orçamento do programa. Será necessária a abertura de espaço no orçamento para manutenção de programas sociais.

Um eventual caminho pode ser extraído da decisão do STF no MI 7.300 [5]. Foi admitido que, se o espaço já deixado pela diferença entre o teto de pagamentos e o valor dos precatórios expedidos não for suficiente para custar o bolsa família, seria possível a abertura de crédito extraordinário, nos termos do artigo 167, §3º, da Constituição. A urgência para sustentar a abertura do crédito seria advinda do “agravamento da situação da população em circunstâncias de vulnerabilidade socioeconômica”.


[1] CARVALHO JR., Antônio d’Ávila et al. Nota técnica n. 50/2021 – subsídios à apreciação da PEC 23/2021 (Precatórios) – aspectos orçamentários e fiscais. Brasília: 2021, p. 13-15.

[2] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/governo-federal-pede-a-agu-que-defenda-a-inconstitucionalidade-da-emenda-dos-precatorios

[3] O Supremo Tribunal Federal e o instituto do precatório: subsídios para interpretação das ECS 113 e 114. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, v. 26, 2023, jul./set.-2023, versão digital, item V.

[4] RODRIGUES, Thaynara Teixeira. Calote dos precatórios e o ano difícil para os credores da União. Revista Consultor Jurídico, 1/11/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-16/thaynara-rodrigues-precatorios-ano-credores-uniao, acesso em 03/11/2023.

[5] Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 09/01/2023.

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