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Centroavantes não sabem enterrar: BC, Iosco e criptoativos

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

22 de novembro de 2023, 8h00

Provavelmente, você acharia estranho ou curioso se a Fifa tivesse que editar normas sobre basquete ou outro esporte coletivo que não o futebol. Foi assim que me senti quando soube que a lei de ativos virtuais no Brasil seria regulada pelo Banco Central. Se criptoativos são utilizados quase que exclusivamente para fins de investimentos, qual seria o papel do regulador da estabilidade financeira e política monetária?

Spacca

A capacidade de regular a inovação financeira, desde os arranjos de pagamentos, passando pelas contas digitais até chegar ao Pix e ao open finance, juntamente com o projeto do real digital e os riscos prudencial e sistêmico das stablecoins podem ser mais do que suficientes para justificar o Banco Central o regulador natural da criptoeconomia em nosso país. Some-se a esses fatores o protagonismo usual da autarquia na criação de normas para prevenir lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

O Banco Central já anunciou que serão criados três atos normativos, sendo eles duas resoluções e uma instrução normativa, disciplinando o critério de incidência das normas, notadamente quais são os serviços de ativos virtuais cuja prestação requer autorização prévia e quais são os requisitos e o procedimento para essa autorização, bem como as regras gerais de fiscalização e punição.

Todavia, um exame detido dos riscos mais prováveis de materialização no setor sugere que o conteúdo ideal da regulação de ativos virtuais talvez não seja esse. O relatório “Policy Recommendations for Crypto and Digital Asset Markets”, publicado pela Iosco em 16/11 parece corroborar essa hipótese.

Muito provavelmente, as normas do Banco Central terão um conteúdo que não irá refletir as recomendações da Iosco, resultado de uma consulta pública em maio deste ano. Vejamos por quê.

Proteção ao Investidor e Regime de Informação

A incidência obrigatória do Código de Defesa do Consumidor é insuficiente para proteger investidores. As normas do mercado de capitais preconizam a exigência de um conjunto mínimo de informações para subsidiar a tomada de decisão — ainda que, na prática, muitos ignorem tudo isso e ajam irracionalmente. A norma toma como premissa investidores racionais que têm o direito de serem tolos, mas não o de serem feitos de tolos, recebendo informações falsas ou que os induzam em erro.

Nesse contexto, há três momentos importantes com requisitos específicos de transparência: na distribuição de um ativo (informações sobre ofertas públicas), na continuidade da atividade do emissor do ativo (informações periódicas e eventuais, incluindo fatos relevantes) e na negociação desses ativos em mercado secundário (transparência na formação de preços e na pós-negociação).

Sobre o tema, destaco algumas recomendações da Iosco, que detalharemos na sequência:

  1. Prestadores de serviços de negociação de criptoativos devem garantir transparência no processo de formação de preços e nos dados de pós-negociação de forma análoga ao exigido nos mercados tradicionais [1].
  2. As ordens dos clientes devem ser atendidas de forma isonômica e nas melhores condições que o mercado permita e, ainda, devem ser prontamente atendidas e gravadas [2].
  3. Se o prestador de serviços desempenha atividades que podem ter potenciais conflitos de interesses, estes devem ser identificados e gerenciados [3].
  4. Deve haver um padrão mínimo para a admissão de criptoativos a serem negociados em determinado ambiente e este padrão deve ser divulgado ao mercado [4].
  5. Deve haver regras para prevenir e reprimir abusos de mercado, tais como fraudes, manipulação de preços, insider trading [5].
  6. Os recursos dos clientes devem ser segregados dos recursos dos prestadores de serviços de criptoativos, com a devida transparência sobre como são geridos e o que pode ser feito com eles, sujeitando-se a auditoria independente [6].

Dever de melhor execução e suitability

Nos mercados tradicionais, uma corretora não pode executar livremente ordens de seus clientes contra sua carteira própria ou internalizar ordens, pois a regulação busca assegurar que o preço da operação deve ser o melhor possível nas condições de mercado. Essa é uma lógica difícil de transpor para a atuação das exchanges, pois estas são um híbrido entre corretora e bolsa, controlando o processo de formação de preços dentro de seu ambiente e contando com arbitradores para fazer com que esses preços convirjam para as cotações de outras exchanges.

Dificilmente o Banco Central irá exigir transparência das operações realizadas pela exchange contra seus clientes e mecanismos para evitar que suas ordens sejam preteridas ou executadas a preços menos favoráveis em benefício da própria exchange ou de terceiros.

Na prática, sem esses mecanismos, as cotações apresentadas e os preços nos quais as ordens são executadas não podem ser auditadas, resultando em uma assimetria informacional exacerbada, sem meios de inibir comportamentos oportunistas.

Ainda, no tocante à proteção de investidores — especialmente os de varejo [7] — penso ser pouco provável que as primeiras normas expedidas pelo Banco Central irão exigir que os prestadores de serviços de ativos virtuais façam uma análise do perfil de risco de seus clientes, a fim de determinar se compreendem exatamente as operações que irão realizar e os riscos associados.

Conflitos de interesses

A regulação do mercado de capitais considera que o interesse do investidor deve vir em primeiro lugar. A concretização desse princípio resulta na obrigatoriedade de segregação de atividades, implementação de regras, procedimentos e controles internos e geração de dados para facilitar a fiscalização pelas autoridades e a análise de riscos pelos investidores.

Sem entrar no mérito sobre tais normas serem mera burocracia que impõe custos de observância ou se são mecanismos substantivos de proteção a investidores, a Iosco traz alguns exemplos de situações problemáticas:

  1. Uma exchange pode vir a competir com seus próprios clientes por melhores preços quando também atua como formador de mercado.
  2. Uma exchange pode tentar manipular preços em favor de um ativo de sua emissão ou no qual tenha um interesse específicos.
  3. As condições para financiamento de operações e controle de garantias podem favorecer certos clientes em detrimento de outros.
  4. Serviços de recomendação de investimentos podem omitir interesses que são contrários à recomendação fornecida ou que são deliberadamente enviesados.

Temos, assim, mais um risco da prestação de serviços de ativos virtuais que pode não ser devidamente endereçado pelas normas do Banco Central.

Requisitos de listagem

De todas as recomendações trazidas pela Iosco, penso que esta é a que se encontra mais distante da realidade das exchanges de criptoativos. Para a Iosco, deve haver regras formais e materiais para selecionar os criptoativos que serão negociados em determinado ambiente – algo que ocorre na Diretoria de Emissores da B3 no mercado regulado, por exemplo. Atualmente, se determinado criptoativo ganha volume de mercado, é comum que as exchanges o ofereçam sem maiores reflexões sobre seu conteúdo e riscos, como é o caso das meme coins.

Fraude, manipulação e insider trading

No mercado de capitais, manipulação de preços e insider trading são tanto infrações administrativas (Resoluções CVM nº 44/2021 e 62/2022) como tipos penais (Lei nº 6.385/1976). Quando essas condutas forem praticadas com ativos virtuais, se não houver regras específicas na regulação infralegal, não serão passíveis de punição administrativa. Ainda, na ausência de normas sobre o tema, não será exigido dos prestadores de serviços que tenham rotinas de supervisão para prevenir essas práticas [8].

Afinal, qual é o problema com o Banco Central?

Na verdade, não há nenhum problema com o Banco Central em si e sua competência regulatória (em sentido formal e material do termo competência) para disciplinar os serviços de ativos virtuais. O problema está no fato de que os principais riscos associados aos investimentos fortemente especulativos em criptoativos e às assimetrias informacionais na sua negociação não fazem parte da tradição regulatória do Banco Central.

Para validar o meu ponto, quando forem publicadas as minutas da regulação infralegal do tema em consulta pública, convido você a contrastar as regras com as recomendações da Iosco.

Muito provavelmente encontraremos regras sobre prevenção à lavagem de dinheiro, gerenciamento de risco operacional [9], segurança da informação e segurança cibernética. Infelizmente, a segregação patrimonial (recomendada pela Iosco) pode ficar de fora, em razão do processo de alteração da Lei nº 14.478;/2022 para inserir esta previsão em nível legal.

No mais, os temas descritos nesse texto – tão ou mais importantes que os indicados no parágrafo anterior – provavelmente ficarão de fora. Como poderemos ter um mercado transparente e equitativo de criptoativos? Qual será a real eficácia da regulação em comento?

Regular a inovação financeira requer mecanismos adequados aos riscos específicos. E, assim como a Fifa não tem o mindset adequado à dinâmica do basquete, o Banco Central não costuma lidar com a proteção a investidores na distribuição e negociação de ativos. Centroavantes não sabem enterrar.


[1] Recommendation 5 – (Market Operation Requirements).

[2] Recommendation 4 – (Client Order Handling).

[3] Recommendation 2 – (Organizational Governance).

[4] Recommendation 6 – (Admission to Trading).

[5] Recommendation 8 – (Fraud and Market Abuse), Recommendation 10 (Management of Material Non-Public Information).

[6] Recommendation 13 – (Segregation and Handling of Client Monies and Assets),

Recommendation 14 – (Disclosure of Custody and Safekeeping Arrangements), Recommendation 15 – (Client Asset Reconciliation and Independent Assurance), Recommendation 16: (Securing client money and assets).

[7] Recommendation 18 – (Retail Client Appropriateness and Disclosure).

[8] Recommendation 9 (Market Surveillance).

[9] Recommendation 17 – (Management and disclosure of Operational and Technological Risks).

Autores

  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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