Opinião

Gonzalez v. Google e Twitter v. Taamneh: lições da Scotus sobre responsabilizar plataformas

Autores

  • Daniel Becker

    é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

  • Humberto Chiesi Filho

    é advogado mestre em direito pela Escola Paulista de Direito doutorando pela Faculdade de Direito da Mackenzie diretor jurídico de dispute resolution no Mercado Livre - América Latina.

  • Luiza Pontes de Miranda Bretz

    é advogada sênior de contencioso e arbitragem do BBL Advogados com atuação em demandas cíveis em tribunais estaduais e federais em todas as instâncias e experiência como secretária administrativa de tribunais arbitrais sob as regras de diferentes instituições em casos envolvendo disputas contratuais construção fornecimento de energia e direito societário graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e LLM em Direito Societário e Mercado de Capitais na FGV-RJ.

21 de novembro de 2023, 15h18

A responsabilidade das plataformas tem sido pauta no Brasil e no mundo, e, neste ano, essa história ganhou mais um capítulo. Desde outubro de 2022, aguardava-se o julgamento, pela Suprema Corte dos Estados Unidos (Scotus), dos casos Gonzalez v. Google LLC e Twitter Inc. v. Taamneh. Em maio de 2023, a Scotus negou provimento aos pedidos indenizatórios formulados, com base no Anti-Terrorism Act (ATA), contra as empresas de tecnologia e, apesar da expectativa em torno do assunto, manteve a imunidade conferida pela Seção 230 do Communications Decency Act (CDA) às plataformas digitais, de modo que elas permanecem, para todos os efeitos, isentas de responsabilidade pelo conteúdo veiculado por terceiros.

Em linhas gerais, os requerentes dos dois casos defenderam que o YouTube e o Twitter, inclusive por meio de sua política de algoritmos, permitiriam o maior alcance de conteúdo terrorista a usuários que já seriam mais propensos ao consumo da matéria em questão. Ato contínuo, indivíduos com tendências extremistas teriam seus posicionamentos reforçados e encorajados por tais materiais, como fotos, textos e vídeos. Com efeito, de alguma forma, haveria nexo de causalidade entre a conduta das plataformas e o dano, isto é, a mortes dos familiares dos requerentes nos ataques terroristas de Paris de 2015 e da Turquia de 2017.

No caso que envolveu o Google, a família Gonzalez processou a empresa com base no Title 18 of the United States Code, §§ 2333(a) e (d)(2), que trata das medidas cíveis de reparação pelo cometimento de crime federal de terrorismo, sob o argumento de que a plataforma teria responsabilidade pelo assassinato de Nohemi Gonzalez por terroristas no Bataclan em Paris. No que tange aos pedidos de responsabilidade secundária, a família Gonzalez defendeu que o Google auxiliou, incentivou e conspirou com o ISIS para o atentado, uma vez que o YouTube, plataforma do Google, teria impulsionado a veiculação de material apto a recrutar membros para a referida organização terrorista.

Em primeira instância, decidiu-se que, embora tenha sido dada a oportunidade de emenda do pedido autoral, a família Gonzalez, por meio de seu advogado, falhou em formular e fundamentar um pleito indenizatório sobre a alegada responsabilidade direta do Google, ou seja, de que forma a plataforma poderia ter sido a responsável pelo ato terrorista em si. Ademais, definiu que os demais pedidos iriam de encontro à Seção 230 do CDA.

A Corte de Apelação do 9º Circuito confirmou o entendimento de primeira instância e, em uma decisão consolidada, também analisou o caso Twitter, tendo consignado que a maioria dos pleitos autorais seria igualmente barrada pela Seção 230 do CDA, exceto os pedidos de responsabilização da plataforma pelo alegado compartilhamento da receita proveniente da publicidade do ISIS, de modo que poderia ser considerada responsável por fornecer suporte material ao grupo terrorista e incorrer em responsabilidade secundária por assistência.

Após a concessão de certoriari, as questões foram levadas à Suprema Corte estadunidense, para que, em última análise, se decidisse acerca da responsabilização das plataformas digitais, considerando, inclusive, sua política da recomendação automática de conteúdos com base na análise do perfil dos usuários.

Eis que, em 18.05.2023, a Suprema Corte devolveu, por meio de uma decisão per curiam, o caso Google para a Corte de Apelação do 9º Circuito. Essa decisão foi baseada no entendimento das instâncias inferiores de que a família Gonzalez não demonstrou a responsabilidade direta do Google com base no mencionado §2333(a). Para a devolução do caso, a SCOTUS se pautou, ainda, na decisão proferida, na mesma data, no caso Twitter, na qual decidiu que os pedidos de indenização feitos contra a plataforma não eram admitidos sob o ATA, e que não abordaram devidamente a Seção 230 e seus regramentos.

No que tange ao caso Twitter, a SCOTUS pontuou que, ao decidir pelo prosseguimento dos pedidos de responsabilização da plataforma pelo alegado compartilhamento da receita proveniente da publicidade do ISIS, a instância inferior pautou-se apenas no uso do Twitter pelo grupo terrorista. Definiu que, na verdade, a instância inferior deveria ter analisado a eventual associação dolosa do Twitter ao ISIS para o cometimento do atentado de 2017, e, em última análise, a associação da plataforma a qualquer ataque terrorista cometido pelo grupo terrorista.

Nesse cenário, a Suprema Corte esclareceu que o cerne da discussão no caso Twitter era o que configuraria “aid and abet” exigidos pelo ATA para a configuração da responsabilização pelos danos advindos do cometimento de ato terrorista. Pontuou, contudo, que a discussão não faria diferença, uma vez que o ATA limita a configuração da responsabilidade à comprovação de que o Twitter, substancial e conscientemente, auxiliou e incentivou ISIS, muito embora não seja necessária uma relação direta entre a assistência e o ato.

Fazendo menção ao caso Halberstam v. Welch, 705 F. 2d 472, a SCOTUS pontuou que, por mais que possa haver certa flexibilidade, é necessária, à configuração da responsabilidade secundária, a participação concreta, consciente e dolosa em um ato ilícito, visando ao êxito do referido ato.

Os requerentes afirmaram que o Isis cometeu ato terrorista, e que o Twitter, por meio de sua plataforma, política de algoritmos e suposta inércia, saberia que, de certa forma, era partícipe da postagem e da divulgação de conteúdo terrorista a usuários que já seriam mais propensos ao possível recrutamento virtual. Sobre este ponto, a Suprema Corte consignou que os requerentes não demonstraram a assistência dolosa, consciente e substancial da plataforma ao planejamento e ao ataque terrorista cometido pelo ISIS na boate turca, em 2017. Aduziu, inclusive, que sequer foi demonstrado o uso da plataforma, pelo grupo terrorista, para o planejamento, recrutamento e divulgação do atentado. 

A Scotus ressaltou que a mera criação de plataformas de conteúdo por empresas de tecnologia não é mais culpável, nem difere em níveis de responsabilização da criação de e-mails, celulares, ou da internet em geral. Pontuou, ainda, que os algoritmos apenas fazem parte da política e da estruturação da plataforma para que o conteúdo disponibilizado aos usuários seja filtrado, sem capacidade de diferenciar, discernir ou dar tratamento especial a nenhum conteúdo ou usuário. Nesse contexto, decidiu que não restou demonstrada a assistência e incentivo do Twitter e, consequentemente, sua responsabilidade.

A Suprema Corte abordou outro ponto importante em sua decisão no caso Twitter. Destacou que os pleitos de indenização se basearam principalmente na alegada omissão da plataforma quanto ao conteúdo divulgado. Definiu, contudo, que essa alegação não foi comprovada e não poderia configurar a assistência consciente e substancial exigida pela lei. Caso contrário, as plataformas digitais passariam a ser responsabilizadas por auxiliar e instigar qualquer ato terrorista do Isis em qualquer lugar do mundo, o que iria de encontro aos limites da responsabilidade solidária.

A SCOTUS também ponderou que os requerentes não comprovaram como a divulgação de informações e conteúdo pelo Twitter a usuários, que antes interagiam por correio, telefone, ou em espaços públicos, configuraria a sua responsabilidade pelos atos terroristas.

Especificamente sobre os pleitos autorais de suposta participação da plataforma no compartilhamento da receita advinda da divulgação e publicidade do conteúdo terrorista, a Suprema Corte decidiu que as alegações não foram suficientemente comprovadas, uma vez que não se demonstrou o financiamento, o número de contas aprovadas para compartilhamento de receita, nem o conteúdo dos vídeos que teriam sido aprovados. Assim, a política de compartilhamento de receita não poderia ser considerada assistência substancial e concreta, conforme exigido pela lei, para o ataque terrorista mencionado no processo.

Embora a Scotus não tenha tratado, especificamente, sobre a imunidade conferida às plataformas digitais no tocante ao conteúdo postado por terceiros, a decisão (ou a falta dela) influencia as discussões travadas no Brasil acerca do tema, sobretudo diante dos recentes e inflamados debates sobre a PL da Fake News, regulamentação suplementar, e a eventual modificação do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

No Supremo Tribunal Federal, após a realização da audiência pública de março de 2023, ainda se aguarda o julgamento do Recurso Extraordinário 1.037.396/SP, interposto pelo Facebook Serviços Online do Brasil Ltda., e do Recurso Extraordinário 1.057.258/MG, interposto pelo Google Brasil Internet — Temas 987 e 533 da Repercussão Geral, respectivamente, nos quais se discute, sob o Marco Civil da Internet, o regime de responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de internet por conteúdo gerado pelos seus usuários, e a possibilidade de remoção de conteúdos, a partir de notificação extrajudicial, que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas.

O julgamento das referidas ações, depois de entrar na pauta do Supremo Tribunal Federal nos idos de maio, foi adiado para junho deste ano. Coincidentemente, em maio, também se adiou a apreciação definitiva do texto do Projeto de Lei nº 2630/2020 (PL das Fake News), que pretende criar medidas de combate à propagação de conteúdo falso nas redes sociais e nos serviços de mensagens privadas, excluindo-se serviços de uso corporativo e e-mail, e estabelecendo sanções para o descumprimento da lei.

E a pergunta que fica é: de qual modelo o Brasil se aproximará para regulamentação das redes e plataformas digitais? Do liberalismo norte-americano, ou do modelo alemão que, inclusive, inspirou a PL das Fake News? Com a recente decisão da Scotus, os Estados Unidos caminham para a manutenção da autorregulação do ambiente digital, confirmando a imunidade das plataformas digitais no tocante ao conteúdo postado por seus usuários e, em última análise, de um viés mais contido no que tange às obrigações e à responsabilização das plataformas. Por outro lado, a moderação das redes sociais marcada pelo Network Enforcement Act tem sido um importante referencial para demais ordenamentos jurídicos, tanto para países da própria União Europeia, quanto para países de fora do bloco, com o acesso facilitado para notificação das plataformas, a exigência de remoção do conteúdo em um curto prazo, a elaboração de relatórios, e a possibilidade de sanções por meio de multas administrativas.

De uma forma ou de outra, é importante que as decisões do STF e sobretudo a eventual promulgação da Lei das Fake News aguardem debates mais profundos e ponderados, além de preservar os pilares do Marco Civil da Internet que é uma lei internacionalmente reconhecida e que foi amplamente discutida por diversos setores da sociedade brasileira antes da edição de seu texto final, isso de forma a garantir a segurança jurídica à internet, e a proteção do direito à liberdade de expressão, que será diretamente afetado quanto mais rígida a regulamentação for, seja quanto ao prazo para remoção de conteúdo, seja para aplicação de sanções.

Autores

  • é sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias no BBL - Becker Bruzzi Lameirão Advogados, diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind, O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind, vol. 2,Regulação 4.0, vol. I e II e Litigation 4.0.

  • é advogado, mestre em direito pela Escola Paulista de Direito, doutorando pela Faculdade de Direito da Mackenzie, diretor jurídico de dispute resolution no Mercado Livre - América Latina.

  • é advogada sênior de contencioso e arbitragem do BBL Advogados, com atuação em demandas cíveis em tribunais estaduais e federais, em todas as instâncias, e experiência como secretária administrativa de tribunais arbitrais sob as regras de diferentes instituições, em casos envolvendo disputas contratuais, construção, fornecimento de energia e direito societário, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e LLM em Direito Societário e Mercado de Capitais na FGV-RJ.

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