Opinião

O destino dos valores de ações civis públicas na ADPF 944 do STF

Autores

  • Hermes Zaneti Jr.

    é professor de Direito Processual Civil e Teoria do Processo na Universidade Federal do Espírito Santo líder do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo grupo fundador da ProcNet — Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo.

  • Edilson Santana Gonçalves Filho

    é defensor público federal membro e coordenador em exercício do Grupo Nacional de Trabalho da Defensoria Pública da União para Comunidades Tradicionais.

17 de novembro de 2023, 6h01

A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 944), recentemente conhecida pelo Supremo Tribunal Federal, levanta questionamentos relevantes sobre a constitucionalidade de decisões proferidas pela Justiça do Trabalho. Em foco está a prática de não encaminhar os valores de condenações por danos morais coletivos, em ações civis públicas, ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), conforme estabelecido pelo artigo 13 da Lei 7.347/1985.

A ADPF 944 levanta uma controvérsia essencial no âmbito da tutela coletiva, questionando se são válidas tais decisões ou se desviam-se dos preceitos normativos ao determinar destinações alternativas para os recursos provenientes de condenações por danos morais coletivos.

No cerne da questão está a discussão sobre a natureza da obrigação imposta nas condenações coletivas proferidas em ações civis públicas. A indagação central é se as regras orçamentárias previstas no ordenamento e o disposto no artigo 13 da Lei 7.347/1985 limitam-se à obrigação pecuniária ou se é legítimo impor uma obrigação de fazer. O debate não se restringe apenas à dicotomia entre a constitucionalidade e inconstitucionalidade das decisões, mas também se estende à efetividade da execução coletiva.

Uma análise mais aprofundada revela a complexidade das destinações alternativas propostas pelas decisões em questão. Ao destinar os recursos para fundações privadas, sujeitas à fiscalização exclusiva do Ministério Público do Trabalho, ou ao direcionar doações a órgãos públicos ou privados, incluindo equipamentos hospitalares, emerge uma diversidade de destinos que exigem avaliação crítica destas decisões. A inclusão do interesse institucional do autor coletivo, notadamente o Ministério Público do Trabalho, adiciona outra camada de complexidade à equação.

É relevante a necessidade de diferenciar as diversas hipóteses levadas à corte como um pacote único, como se fossem a mesma coisa. Com isto, pode-se evitar que qualquer obrigação assessória à destinação das verbas seja considerada inconstitucional, o que parece ocorrer quando seu direcionamento é feito por mero e exclusivo interesse do autor coletivo, mas não quando tem por objetivo tornar a decisão mais efetiva e atende ao interesse público. O interesse institucional do Ministério Público, constitucionalmente observado, é o mesmo interesse público defendido pela tutela coletiva. O que não se confunde com o interesse secundário da instituição. Há necessidade de dimensionar claramente essa questão para evitar o conflito de interesses decorrente da confusão entre o interesse tutelado e o interesse institucional. A destinação específica para garantia da efetiva proteção dos direitos difusos e coletivos é exigida pela própria ideia de acesso à justiça e efetividade que a Constituição assegura.

Essa diferenciação será crucial para garantir a efetividade da execução coletiva (artigos 6º; 77, IV; 536 CPC). Somente quando o objetivo claro da medida for melhor proteger os direitos ao meio ambiente, ao consumidor, ao trabalhador etc., não haverá conflito entre o interesse público primário e secundário. Portanto, a corte deve discernir entre as situações, preservando o artigo 13 da Lei de Ação Civil Pública (LACP) e o princípio da efetividade da tutela jurisdicional.

A execução das decisões coletivas, vale não olvidar, não raro se mostra dificultosa e, por vezes, conduz à ineficiência da tutela jurisdicional. Ademais, o contingenciamento dos recursos no FDD e as dificuldades geradas pela administração do fundo que acaba não atendendo sua finalidade de proteção dos direitos difusos e coletivos é conhecida. Não são raras ações coletivas nas quais há o deferimento do pedido, mas não há qualquer efeito na prática, mantendo-se o status anterior ao ajuizamento da ação.

Por outro lado, novas formas de recuperação e proteção dos direitos difusos e coletivos são permitidas pela própria fungibilidade das obrigações e atipicidade dos meios de execução (artigo 139, IV, CPC). A criação de entidades de infraestrutura específica (claim resolution facilities) e a destinação de equipamentos para um hospital ou escolas, por exemplo, pode ser medida válida e não encontra óbice na legislação — seja constitucional ou infralegal —, bastando que tenham como finalidade os escopos processuais ligados ao interesse público primário tutelado nas ações coletivas, o que não se confunde com o mero interesse do autor coletivo, quem quer que seja o colegitimado.

Encarar a lógica das condenações coletivas proferidas em ações civis públicas por uma perspectiva meramente monetária contraria o propósito constitucional e legal para o qual foram estabelecidas. Há uma representatividade econômica, que, todavia, não faz sentido desvinculada do impacto na vida das pessoas, que no mais das vezes não é alcançado apenas com o depósito da quantia no FDD. Esta é a uma questão central.

As condenações para o fundo de direito difusos têm uma finalidade. Não visam propriamente a reparação em dinheiro, que é uma sanção ao causador do dano e uma advertência contra as mesmas práticas no futuro, mas é, além disto, uma expectativa de mudança na realidade para a qual o valor depositado será meio. Portanto, o escopo precípuo é a modificação dos fatos e a melhoria nas condições de efetivação dos direitos. Neste contexto, o objetivo se aproxima de um “no money judgement“, de uma tutela específica de performance.

A conversão dessas condenações em obrigações de fazer, que implicam investimentos dos valores, não apenas não conflita, mas também atende ao ordenamento jurídico. Essa abordagem alinha-se ao propósito fundamental das ações civis públicas, que é, como já anotado, a busca pela transformação efetiva da realidade e pela promoção de condições que viabilizem a efetivação dos direitos coletivos.

Daí a importância de diferenciar claramente as hipóteses, evitando uma homogeneização que possa comprometer a efetividade da execução coletiva. Isto exigirá, diante da complexidade intrínseca ao caso, que o Supremo Tribunal Federal promova uma análise cuidadosa e ponderada, já que a decisão terá implicações significativas não apenas para a Justiça do Trabalho e formará precedente, vinculando o entendimento firmado (artigo 927, I, CPC).

Autores

  • é promotor de Justiça no Ministério Público do Espírito Santo e professor adjunto na Universidade Federal do Espírito Santo.

  • é defensor público federal. Foi defensor do estado do Maranhão. Coautor do livro Dicionário de Ministério Público e autor da obra A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais – sua vinculação às relações entre particulares. Especialista em Direito Processual.

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