Opinião

Conflito territorial entre Venezuela e Guiana: novidades à luz da convocação ao referendo

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

17 de novembro de 2023, 17h14

A recente convocação de um referendo pelo governo da Venezuela em relação ao reivindicado território de Essequibo — disputado com a Guiana — adiciona uma nova camada de juridicidade à controvérsia territorial entre os dois estados latino-americanos. Trata-se de antiga disputa que surgiu como resultado da alegação venezuelana de nulidade do Laudo Arbitral de 3 de outubro de 1899, que determina a fronteira atual entre as duas partes em virtude de “uma transação política realizada às escondidas da Venezuela e sacrificando seus direitos legítimos”.

À época, a arbitragem ocorreu entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela,que disputavam uma larga porção de terra (rica em recursos naturais) entre os rios Oniroco e Essequibo. Um tribunal arbitral composto por cinco juristas (dois americanos, dois ingleses e um russo) foi composto para delimitar pacificamente a fronteira em questão. Na atualidade, uma modificação de tal fronteira poderia também ter impacto nos recursos marítimos e energéticos de ambos os países. O presente ensaio analisa o conflito territorial à luz dos procedimentos judiciais perante a Corte Internacional de Justiça, em particular diante do requerimento de medidas provisórias solicitado pela Guiana no fim de outubro diante da  convocação do referendo.

Conflitos territoriais perante a Corte da Haia
Conflitos resolvendo controvérsias territoriais e marítimas não são raros perante a Corte Internacional de Justiça [1]. Em verdade, existe uma longa e constante jurisprudência que assenta este tribunal como o órgão por excelência para resolver conflitos desta natureza que são, como se sabe, extremamente complexos, e não raramente envolvem profundos sentimentos nacionais de relação com o território. Apesar de pode se afirmar que nos últimos tempos a jurisprudência da Corte ter variado substancialmente, incorporando temáticas como direito ambiental internacional ou direitos humanos, é também possível notar que a Corte não deixou de ser o órgão judicial ao qual Estados recorrem para solucionar conflitos em relação à soberania sobre territórios disputados, também relativos a zonas marítimas.

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Exemplos recentes nesse sentido são os casos da Delimitação da Plataforma Continental entre Nicarágua e Colômbia (2023), a Delimitação Marítima entre Somália e Quênia (2021), entre Peru e Chile (2014) ou entre Burkina Faso e Niger (2013). Desde que a Corte sedimentou a doutrina jurídica do uti possidetis iuris [2] em 1983 no célebre caso entre a Burkina Faso e a República do Mali há um profundo interesse dos Estados em utilizar meios judiciais para verificar quem possui as melhores teses jurídicas para comprovar a soberania sobre um determinado território.

A tensão de fundo em todas essas controvérsias territoriais reside no fato de que as regras estabelecidas no direito internacional para resolvê-las são essencialmente frutos de pretensões contestadas e decisões arbitrais ou judiciais avaliando tais pretensões. Não existem, obviamente, tratados internacionais que determinam regras para delimitações territoriais. Estas se dão exatamente pelo fruto da troca e de negociações de Estados por suas fronteiras — muitas vezes definidas, no passad,o como resultado de conflitos armados. Se por um lado, o princípio da integridade territorial, decorrente da soberania dos Estados, parece ser um valor jurídico de grande força normativa que tende ao status quo e à inamovibilidade e à estabilidade das fronteiras, há também novas situações jurídicas que permitem, raramente, a contestação de fronteiras internacionais.

A controvérsia entre Venezuela e Guiana não parece ser excepcional na abordagem caso a caso que o direito internacional adota para resolver essas questões. Suas origens são antigas e por mais que possam eventualmente ser aquecidas à luz de ações políticas, constitui um caso que merece entendimento exatamente porquanto possui implicações também na política interna e externa dos Estados — e seus vizinhos.

As decisões da Corte Internacional de Justiça no caso Guiana e Venezuela
Se o laudo arbitral emitido em 1899 pacificou temporariamente as relações entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela, é possível verificar a existência de uma controvérsia entre os Estados durante o período de descolonização da Guiana. Em 1962, a Venezuela informou o então Secretário-Geral da ONU sobre a existência de uma controvérsia entre Reino Unido e Venezuela “referente à demarcação da fronteira entre a Venezuela e a Guiana Britânica”, alegando que o Laudo de 1899 havia sido fruto de um conluio,  e que, portanto, não poderia reconhecer o Laudo. Peritos de ambas as partes examinaram o laudo e chegaram a conclusões diferentes. Em 1966, após a independência da Guiana, a questão continuava pendente entre as partes e um tratado foi assinado reconhecendo a controvérsia — o Acordo de Genebra, que outorgava autoridade ao Secretário-Geral da ONU para auxiliar na solução da questão. Uma das perguntas do referendo convocado pela Venezuela diz respeito, justamente à legitimidade do Tratado de Genebra como fonte da resolução da controvérsia.

As conversas entre os Estados sobre o tema continuaram sob os bons ofícios do Secretário-Geral da ONU até 2014. Em 2017, Antônio Guterres decidiu que, após ter “cuidadosamente analisado” os processos de bons ofícios em 2017, e não tendo as partes chegado a uma solução, ele optaria por conduzir a disputa “à Corte Internacional de Justiça como o meio a ser utilizado agora para utilizado para sua solução” com base no Acordo de Genebra de 1966. Em 29 de março de 2018 a República da Guiana iniciou um procedimento perante a Corte Internacional de Justiça buscando reconhecer a validade do Laudo Arbitral, e, portanto, a intangibilidade de sua fronteira e território.

Até o momento, a Corte Internacional de Justiça emitiu duas decisões.

A primeira delas diz respeito à própria jurisdição da Corte que, segundo as regras essenciais do direito internacional, deve ser baseada sobre o consentimento de ambas as partes para poder decidir uma disputa. Em decisão de dezembro de 2020, procedimento no qual a Venezuela decidiu não participar, a Corte Internacional de Justiça, por 12 votos a 4, entendeu possuir jurisdição sobre o caso em virtude do Acordo de Genebra de 1977 e pela decisão do Secretário-Geral.

A Venezuela então mudou sua atitude em relação ao processo e resolveu apresentar suas defesas — isto é, objeções preliminares à jurisdição da Corte – afirmando ser o pedido da Guiana inadmissível em virtude da ausência de uma terceira parte diretamente interessada na controvérsia: o Reino Unido. Trata-se da assim chamada doutrina do Ouro Monetário pela primeira vez aplicado no caso Monetary Gold Removed from Rome in 1943 (Italy v. France, United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and United States of America). A doutrina exige que a Corte se abstenha de decidir uma controvérsia quando os interesses jurídicos de um terceiro estado que não ofereceu seu consentimento e que constituem “o próprio objeto” do caso, ou quando o Tribunal não pode decidir o caso a ele submetido sem antes julgar a responsabilidade internacional (ou os direitos) de um terceiro Estado. No caso, e em síntese, a tese venezuelana seria de que

a declaração de nulidade do laudo de 1899 acabaria por se manifestar sobre um eventual comportamento do Reino Unido, potência colonizadora à época, e, portanto, faltaria um elemento essencial à controvérsia, que deveria ser dispensada.

Embora tenha declarado admissível a objeção da Venezuela, a Corte não deu a ela razão. Em decisão de abril de 2023, a Corte Internacional de Justiça entendeu que “a prática das partes do Acordo de Genebra demonstra sua concordância de que a disputa poderia ser resolvida sem o envolvimento do Reino Unido”. De uma maneira tangencial, a Corte da Haia entendeu que o princípio do ouro monetário não se aplicava ao caso porque os interesses do Reino Unido durante todo o processo da formulação da disputa não estavam em jogo. Embora aqui não seja o espaço, pode-se processualmente, duvidar desse entendimento limitado da aplicação do princípio e se questionar sobre as razões pelas quais a Corte preferiu adotá-lo. Fato é que, como conclusão, a decisão de 2023 fez com que a controvérsia entre Guiana e Venezuela avançasse rumo ao mérito, até que a convocação de um referendo adicionasse uma nova  fase processual à disputa.

A convocação do referendo e as medidas cautelares
A estratégia da Venezuela de convocar um referendo com cinco perguntas em relação à controvérsia da Guiana Essequiba é uma tentativa de inserir um novo elemento na complexa questão que envolve os dois Estados. O elemento da autodeterminação dos povos3, quando aplicável efetivamente, é particularmente relevante em controvérsias territoriais. De maneira sucinta, a consulta ao povo venezuelano tem cinco objetivos: 1. Rechaçar o laudo arbitral de 1899; 2. Contestar o Acordo de Genebra como instrumento-fonte da solução; 3. Não reconhecer a jurisdição da Corte Internacional de Justiça; 4. Opor-se à pretensão da Guiana de explorar a zona marítima; 5. Criar um novo estado federal da Guiana Essequiba como parte da Venezuela.

Diante de tal convocatória, e a fim de proteger os direitos pendentes na lide perante a Corte da Haia, a República da Guiana realizou um pedido de medidas cautelares perante a Corte. O célere pedido da Guiana não busca apenas a não-realização do referendo, mas também uma ordem da Corte que exija que nenhuma atitude seja tomada para exercer controle de fato sobre a região — antecipando os rumores de que a área seria alvo de algum tipo de operação militar de controle. Nos próximos meses, a Corte terá de se debruçar sobre os requisitos essenciais de seu próprio processo em relação à plausibilidade dos direitos a serem violados, o risco de dano ao objeto principal da lide e poderá, efetivamente, decidir que o referendo  afeta o objeto da disputa. Nesse caso, poder-se-ia conjecturar que a Corte da Haia teria poderes para delimitar a ação do referendo. Naturalmente, uma decisão do gênero não seria muito bem recebida em Caracas, sobretudo ao se considerar que, historicamente, a Venezuela mostra alguma reticência em relação ao uso da Corte para a solução da questão.

Qual o futuro da controvérsia?
Controvérsias internacionais que tocam o território dos Estados, recursos naturais e fortes sentimentos nacionais nem sempre encontram seu deslinde último numa decisão judicial. A Corte Internacional de Justiça muitas vezes emitiu decisões significativamente importantes no interior de um processo político-jurídico maior. A decisão sobre medidas cautelares, passível de afetar algum modo o referendo conclamado, pode ter impactos políticos significativos, especialmente num contexto de chamamento de eleições, de renegociação de sanções, e de reestruturação geoenergética da região. Esses elementos extrajudiciais não aparecem com frequência no raciocínio jurídico da Corte Internacional de Justiça, que deverá ponderar, em concreto, os limites de seus poderes e de sua jurisdição sobre a disputa da nulidade do laudo e os novos episódios relativos à querela das partes.

Pode-se questionar se a reabertura e rediscussão de laudos arbitrais emitidos há décadas é uma boa política para a estabilidade das fronteiras da região. No Brasil, a questão do Pirara e o laudo do rei Vittorio Emmanuele 3º é exemplo disso. É doutrina comumente repetida que uma das forças políticas do Brasil no cenário internacional é a ausência de controvérsias territoriais com seus vizinhos. No caso venezuelano, por outro lado, existe uma consistente alegação de corrupção do laudo que é sustentada há mais de sessenta anos.

Talvez a maior lição que, nesse momento, a controvérsia possa oferecer não é apenas a complexidade do direito dos povos ao seu território ou as tensões políticas que emergem com esse tipo de controvérsia. O caso demonstra que existe uma linguagem possível de discussão das questões jurídicas que abdica da força e repudia ações de violência para resolver controvérsias internacionais. Há ainda instituições internacionais que podem oferecer uma contribuição significativa, com base na linguagem do direito internacional, que pode evitar as posições políticas polarizadas. Conhecer as controvérsias, os argumentos que as cingem, e os limites das instituições que podem atuar em sua resolução é um benefício não trivial que ainda é oferecido pelo direito internacional.


[1] Sobre o tema, ver JENNINGS, R.Y. The Acquisition of Territory in International Law. Manchester, 2017. KOHEN, Marcelo; HÉBIÉ, Mamadou. (orgs) Research Handbook on Territorial Disputes in International Law. Elgar Publisher, 2018; BONAFÉ, Beatrice I. Territory and Conflicts: Is International Law the Problem? In: Nicolini, Palermo, Milano (orgs). Law, Territory and Conflict Resolution: Law as a Problem and Law as a Solution, 2016; LANDO, Massimo. Maritime Delimitation as a Judicial Process. Cambridge: 2019.

[2] Sobre o tema, o caso e suas implicações, ver LIMA, Lucas Carlos. Uti possidetis juris e o papel do direito colonial na solução de controvérsias territoriais internacionais. Sequência, v. 38, n. 77, 2017, pp. 122- 147.

[3] Sobre o tema, ver o clássico CASSESE, Antonio. Self-Determination of Peoples: a legal reappraisal. Cambridge: 1998. Ver também SUEDI, Yusra. Self-determination in territorial disputes before the International Court of Justice: From rhetoric to reality? Leiden Journal of International Law, Vol. 36, 2022, pp. 161-177 e ainda, no caso Chagos, LIMA, Lucas Carlos. A opinião sobre o arquipélago de Chagos: a jurisdição consultiva da Corte Internacional de Justiça e a noção de controvérsia. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, nº 75, 2019, pp. 281-302.

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Autores

  • é professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da diretoria do ramo brasileiro da International Law Association.

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