Opinião

Referendo venezuelano não é ilegal, mas ação militar na Guiana fere direito internacional

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • João Vitor Ferreira

    é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (GEPDI/CNPq) vinculado à Universidade Federal de Uberlândia onde é bacharelando em relações internacionais.

  • Augusto Guimarães Carrijo

    é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (Gepdi/CNPq) vinculado à Universidade Federal de Uberlândia atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

4 de dezembro de 2023, 15h10

O dia 3 de dezembro marca a grande consequência do Tratado de Washington de 2 de fevereiro de 1897: um referendo na Venezuela que anuiu [1] a criação de um novo estado na região de Essequibo, a concessão de cidadania venezuelana àqueles que lá habitam (em torno de 125 mil pessoas) e a sua incorporação ao território venezuelano — resultado esse que acirrará ainda mais as tensões entre Venezuela e Guiana, a qual, hoje, administra a região formada por um território de 159,500 km², com mais de 300 km de costa, que é parte do bioma amazônico e é rico em minerais como ouro, cobre, diamante, ferro, bauxita e alumínio, além de gás e petróleo, cujas reservas são estimadas em 11 bilhões de barris [2][3].

A disputa retoma o período colonial dos dois estados, mais especificamente na transferência da administração da Guiana dos holandeses para os britânicos, e da transição do governo espanhol da Capitania Geral da Venezuela para Estados Unidos da Venezuela [4]. A região pouco habitada do Essequibo, porém, sempre foi um ponto de debate entre Reino Unido e Venezuela. Em função disso, os países submeteram a questão à uma arbitragem em 1899.

Reprodução

Os Estados Unidos representaram a Venezuela (que havia cortado relações diplomáticas com o Reino Unido) perante um painel de cinco juízes — dois americanos, dois britânicos, e um russo como voto de minerva presumidamente neutro [5]. Na sua decisão de 3 de outubro de 1899 o tribunal, sediado em Paris, decidiu em favor do Reino Unido, estabelecendo a fronteira sobre o rio Wenamu em vez do Cuyuni, logo, dando controle aos britânicos sobre quase toda a região do Essequibo e todos os seus recursos minerais [6].

Contudo, a Venezuela não concordou com o veredito. Em vista disso, em 1958 o país, à época liderado por Marcos Pérez Jiménez, planejou a invasão da região, sendo ultimamente interrompido por um coup d’etat no mesmo ano [7].

Depois, em 1962, o ministro venezuelano Marcos Falcón Briceño questionou o domínio da região pelos britânicos perante as Nações Unidas (ONU), culminando na assinatura de um acordo em 17 de fevereiro de 1966, em Genebra [8]. Nele, haja vista a Guiana ainda não der independente (o que ocorreria apenas em 26 de maio daquele ano), o Reino Unido concordou com a Venezuela que o laudo arbitral deveria ser anulado e que deveria ser formada uma Comissão Mista para chegar a uma conclusão sobre a “propriedade” do território.

Caso isso não fosse possível, um dos mecanismos de solução pacífica de disputas previsto no artigo 33 da Carta da ONU deveria ser usado, e caso ainda ocorresse desacordo sobre qual mecanismo utilizar, o Secretário Geral da ONU deveria ser acionado [9].Nos anos seguintes à conclusão do Acordo de Genebra de 1966, a Comissão Mista por ele prevista foi colocada em prática, mas um desacordo quanto ao escopo de seu mandato fez com que em 1970 ela terminasse sem atingir nenhuma solução. [10] Após um período de 12 anos em que o acordo ficou suspenso, em 1982 Venezuela e Guiana — já independente — iniciaram o procedimento estabelecido pelo artigo IV, sob o qual tentariam decidir qual meio de solução pacífica dentre aqueles previstos pelo citado artigo 33 seria utilizado [11]. Como não chegaram a uma conclusão, as partes prosseguiram para solicitar ao Secretário-Geral que então escolhesse o meio de solução pacífica a ser utilizado pelos países, conforme previsto pelo artigo IV do Acordo. [12]

Em 1990, o secretário-geral da ONU, utilizando dos bons ofícios, indicou que as partes deveriam resolver a disputa amigavelmente, e assim se sucedeu, ano após ano, sem que nenhuma conclusão fosse atingida até 2017. [13] Neste ano, o atual Secretário-Geral António Guterres, diante do pedido de seu predecessor, Ban Ki-Moon, determinou que a controvérsia deveria ser submetida para a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em razão da falta de progresso atingida pelos bons-ofícios. [14]

Alguns meses depois, a Guiana submeteu uma petição inicial à CIJ a fim de iniciar o caso perante o órgão judicial. Embora a Venezuela não tenha participado dos procedimentos relativos à fase de jurisdição do caso perante a CIJ, o país protestou a utilização da CIJ enquanto foro competente para resolver a disputa e enviou uma correspondência e um Memorandum atestando e explicando sua posição de que a Corte não possuía jurisdição para analisar os méritos do caso. [15]

Em sentença relativa à fase preliminar que discutiu sua jurisdição [16] emitida em 2020, a Corte primeiro determinou que a controvérsia relacionada ao Acordo de Genebra se referia primordialmente à disputa que nasceu a partir da posição Venezuelana de que a decisão de 1899 era nula e sem efeitos legais e as implicações disso para a linha fronteiriça entre Guiana e Venezuela. Após tal determinação, a CIJ precisou encarar o principal desafio jurisdicional que era determinar quais as consequências legais da escolha do Secretário-Geral em referir a controvérsia para a Corte. As principais perguntas a serem respondidas eram se tal escolha vinculava as partes; se recurso a um órgão de resolução judicial era previsto pelo artigo IV do Acordo de Genebra; e se seria necessário um consentimento das partes em relação à jurisdição deste órgão judicial, para além do seu aceite do Acordo de Genebra de 1966.

Vale mencionar que a jurisdição da CIJ é regida com base no Princípio do Consentimento, inexistindo jurisdição compulsória que permita com que a Corte julgue um Estado sem que este tenha de alguma forma consentido com tal previamente. Em específico, na petição inicial da Guiana, o Estado mencionou o artigo 36.1 do Estatuto da CIJ e o artigo IV do Acordo de Genebra como a base legal para estabelecer a jurisdição no caso. O artigo 36.1 prevê que: “[a] Competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetem, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e em convenções em vigor[17].

Desta maneira, a Guiana, sucessora do Reino Unido no Acordo de 1966, buscava demonstrar que o consentimento Venezuelano havia sido concedido quando este país concordou com o artigo IV do aludido documento, que seria um tratado em vigor entre os dois, nos termos do artigo 36.1. Ocorre que as partes discordaram quanto a se o artigo IV possibilitaria que o Secretário-Geral escolhesse a CIJ para solucionar a controvérsia objeto do Acordo. Diferentemente da Guiana, a Venezuela, é contrária. Até mesmo, uma das perguntas feitas no referendo do dia 3 de dezembro foi justamente se a população venezuelana concorda com o não reconhecimento da jurisdição da ICJ por parte do país.

Em resposta aos argumentos colocados pelos estados, a Corte entendeu que a referência ao artigo 33 da Carta da ONU feita pelo Artigo IV permitiria sim o recurso à solução judicial. [18] Ademais, a CIJ entendeu que a decisão tomada pelo Secretário-Geral sob a autoridade que a ele foi conferida não seria efetiva se ela dependesse de um novo consentimento das partes em relação ao aceite da jurisdição da Corte. Portanto, tal decisão, à luz do propósito e do objeto do Acordo de 1966, seria suficientemente vinculante e final, não sendo necessário que as partes concordassem a posteriori com a jurisdição da Corte. [19]

Assim, a CIJ entendeu que ela teria jurisdição para analisar o caso. [20] Em especial, determinou que o escopo material do exercício jurisdicional se limitaria a analisar a validade da decisão de 1899 sobre a fronteira entre a Guiana Britânica e a Venezuela, como forma de dar uma solução definitiva à disputa da fronteira terrestre entre os dois países. [21] Inclusive, em tese, ela poderá até mesmo não decidir sobre a “propriedade” da região, apenas apontando se aquele resultado arbitral foi validamente obtido ou não.

De toda sorte, agora, 65 anos depois da última tentativa de anexação da região, o parlamento majoritariamente chavista, com Maduro à frente, avança novamente a pauta nos momentos que antecedem as eleições presidenciais de 2024, fazendo com que a Guiana tenha que se voltar à CIJ novamente para evitar uma piora da controvérsia existente entre os dois. Em razão disso, solicitou medidas provisórias à CIJ para que ela ordenasse a Venezuela a não prosseguir com o referendo, e em particular, para evitar questões que serão decididas no mérito do caso, assim como não tomasse nenhuma ação com a intenção de preparação ou exercício de soberania/controle de facto sobre a região de Essequibo.

A CIJ, portanto, emitiu uma ordem em 1 de dezembro de 2023, estabelecendo dois pontos: inicialmente, decidiu que o direito à soberania da Guiana sobre a região é plausível e que, existe, de fato, risco de dano irreparável e urgência na situação [22]. Logo, ordenou, sem seguir diretamente os pedidos da Guiana, que a Venezuela deveria“abster-se de tomar qualquer ação que possa modificar essa situação”, e que ambos os Estados deveriam “abster-se de qualquer ação que possa agravar ou ampliar a disputa perante a Corte ou torná-la mais difícil de resolver[23]. Até mesmo porque, o ponto central da concessão de medidas provisórias é justamente “evitar que se frustre a execução de uma eventual sentença de mérito futura”. [24]

Nesse giro, apesar de o referendo realizado em 3 de outubro não ter sido diretamente rechaçado pela CIJ, ela apontou que, se isso puder agravar a situação, tornando eventual sentença inexequível, ele não deveria ser conduzido. Todavia, a Venezuela o realizou da mesma forma, alegando ser parte do seu domaine réservé, muito embora seus efeitos possam eventualmente atingir a terceiros e, nesse ponto, ser questionada [25].

Ou seja, a Venezuela não violou diretamente às medidas outorgadas em 1 de dezembro ao fazer o referendo; porém, deve-se observar os próximos passos deste país para que essa situação de ‘legalidade’ não se altere. Afinal, a mera realização de um referendo, a priori, não é ilegal [26] e tampouco significa, em si, a criação do estado de Essequibo, na Venezuela, ou mesmo a sua anexação. Vale dizer que qualquer ato militar nesse sentido seria ilegal de acordo com o Direito Internacional, que proíbe o uso da força desde 1945 para esse fim, como bem se pode recordar da tentativa iraquiana em anexar o Kuwait em meados dos anos 1990, a qual fora rechaçada pela ONU, culminando na Guerra do Golfo.


[1] “[F]oram contabilizados 10.554.320 votos no referendo, sem contar os votos emitidos durante a prorrogação de duas horas da votação”. A votação contemplou eleitores a partir de 12 anos de idade. ELEITORES da Venezuela aprovam em referendo criação de um novo estado em Essequibo, na Guiana, G1. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/12/04/venezuela-guiana-referendo.ghtml

[2] BASIL, Ince A. “The Venezuela-Guyana Boundary Dispute in the United Nations.” Caribbean Studies, vol. 9, no. 4, 1970, pp. 5–26; G1. Essequibo: 5 pontos para entender o polêmico referendo na Venezuela sobre anexar parte da Guiana, G1. Disponível em: https://g1.globo.com/noticia/2023/12/01/essequibo-5-pontos-para-entender-o-polemico-referendo-na-venezuela-sobre-anexar-parte-da-guiana.ghtml; PAREDES, Norberto. Essequibo: 5 pontos para entender o polêmico referendo na Venezuela sobre anexar parte da Guiana, BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2zzr17lgmo

[3] Sobre os interesses de outros países na região, como Rússia e China, cf. TOGNOZZI, Macerlo. Essequibo: o tamanho da encrenca, Poder 3060. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/essequibo-o-tamanho-da-encrenca/

[4] BASIL, op cit, p. 5–26; PADDEU, F.; PLANT, B. The Dispute between Guyana and Venezuela over the Essequibo Region, EJIL:Talk!, 11/04/2018.

[5] BASIL, op cit, p. 5–26.

[6] Idem; PADDEU, F.; PLANT, B. The Dispute between Guyana and Venezuela over the Essequibo Region, UJIL:Talk!, 11/04/2018; HOPKINS, Jack W. Latin America and Caribbean Contemporary Record: 1982-1983, v. 2. Holmes & Meier Publishers, 1984.

[7] HOPKINS, op. cit.; BASIL, op cit, p. 5–26.

[8] HOPKINS, op. cit.; BASIL, op cit, p. 5–26.

[9] Agreement to resolve the controversy over the frontier between Venezuela and British Guiana. Genebra, 17/02/1966.

[10] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Arbitral Award of 3 October 1899 (Guyana v. Venezuela), Judgment of 18 December 2020. Para. 45-47.

[11] Idem. Para. 48-50.

[12] Idem. Para. 51-53.

[13] Idem. Para. 54-56.

[14] Idem. Para. 57-60.

[15] Idem. Para. 22.

[16] Vale ressaltar que em Abril de 2023 a Corte emitiu nova sentença sobre uma objeção preliminar Venezuela que discutia a admissibilidade do caso à luz do Princípio do Ouro Monetário (Terceira-Parte Indispensável). A Corte precisou decidir se a ausência do Reino Unido enquanto parte do caso seria suficiente para que ela não analisasse os méritos, tendo em vista sua suposta caracterização enquanto uma terceira-parte indispensável. A Corte negou a objeção preliminar.

[17] ONU. Estatuto da Corte Internacional de Justiça, 1945. Art 36.1.

[18] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op cit. (2020). Para. 82-84.

[19] Idem. Para. 110-115.

[20] Idem. Para. 138.

[21] Idem. Para. 135-137.

[22] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Arbitral Award of 3 October 1899 (Guyana v. Venezuela), Order of 01/12/2023.

[23] Idem, pp.12-13.

[24] GAPSA, Molosz. Guyana v Venezuela: Intriguing Pleadings in an (In)conspicuous Case, EJIL:Talk!, 30/11/2023.

[25] Sobre o tema cf. CORTE PERMANENTE DE JUSTIÇA INTERNACIONAL. Nationality Decrees Issued in Tunis and Morocco. Ad. Opinion of 7 February 1923; e CORTE PERMANENTE DE JUSTIÇA INTERNACIONAL. S.S. “Wimbledon”. Judgment of 17 Aug 1923.

[26] A realização de referendos é uma prática comum no Direito Internacional especialmente para debater questões relativas à autodeterminação dos povos, apontando para a independência ou não de certas regiões. Veja-se como exemplo o rechaço das Malvinas, em 2013, por meio de referendo, para se tornar independente, escolhendo permanecer vinculada ao Reino Unido.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

  • é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (GEPDI/CNPq), vinculado à Universidade Federal de Uberlândia, onde é bacharelando em relações internacionais.

  • é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (GEPDI/CNPq), vinculado à Universidade Federal de Uberlândia, atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

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