Ambiente Jurídico

Som, ruído, poluição sonora e proteção legal

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11 de novembro de 2023, 10h17

Em 4/9/2021 fiz algumas anotações sobre as cidades sustentáveis [1] e os desafios que a urbanização traz à natureza, ao ecossistema e aos humanos. Um desses desafios é a poluição sonora, presente nas cidades grandes, médias e nas pequenas. É um desafio de difícil definição que justifica uma incursão nos detalhes não jurídicos.”

Spacca

Os sons são ondas elásticas que exigem um meio — sólido, líquido ou gasoso — para se propagar. Mesmo em uma sala fechada podem ser ouvidos os sons gerados no exterior pois estes, ao incidirem sobre as paredes, põem-nas em vibração; as paredes transmitem essas vibrações ao ar contido no recinto, o que é percebido como ruído. As vibrações podem também ser transmitidas às paredes, ou diretamente ao ambiente, por contato direto, isto é, por oscilações causadas por peças móveis (máquinas, motores) com as quais estejam em contato; também se propaga pelo ar e coloca as paredes em vibração, levando ao isolamento das máquinas sobre apoios flexíveis e ao revestimento de paredes com materiais flexíveis que absorvem as vibrações. Paredes de concreto são mais suscetíveis que paredes de tijolos, pois a elasticidade da argamassa que une os tijolos contribui para uma absorção mais rápida; já em estruturas metálicas rígidas, como o casco de um navio, é difícil, senão impossível, evitar que as vibrações e sons emitidos por seus motores se propaguem por todo o barco [3].

A poluição sonora ocorre quando os sons ultrapassam os níveis considerados normais para os limites da audição e constitui uma ameaça à saúde humana. Somos submetidos a estímulos sonoros do tráfego, dos utensílios e equipamentos, de obras, dos celulares, de músicas, de conversas, da própria natureza; a intensidade desses ruídos define o nível seguro de audição. Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que cerca de 500 milhões de pessoas possuem surdez moderada e/ou severa com previsão de algum grau de perda auditiva para 900 milhões de pessoas até 2050 [4]. A exposição a barulhos a partir de 60 decibéis, como uma máquina de lavar roupa, já é uma ameaça e ruídos a partir de 70 decibéis, como o uso de fones de ouvido por mais tempo em volume elevado, pode causar dano. Não encontrei artigos indicando o reflexo do som na fauna silvestre, mas são mais sensíveis que os humanos e com certeza sofrem mais do que nós.

Poluição sonora é todo ruído que pode causar danos à saúde humana ou animal; a possibilidade de causar dano diferencia a poluição sonora do desconforto acústico. Uma música agradável, se ouvida em volume excessivo, pode ser classificada dessa forma e representar um dano à saúde. É uma poluição que traz diferentes reflexos jurídicos.

A LF nº 6.938/81 da 31/8/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, cuida da preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida e seus princípios (artigo 2º) referem o equilíbrio ecológico, a racionalização do uso do solo, subsolo, água e ar; o uso dos recursos ambientais, a recuperação dos ecossistemas e a recuperação das áreas degradadas; e define poluição (artigo 3º, inciso III, alíneas “a” e “d”) a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população, ou afetem as condições sanitárias do meio ambiente; pode ainda ser enquadrado na alínea “e”, que enquadra na poluição o lançamento de energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. Não há uma referência expressa ao som. O som é uma onda que dissipa e desaparece sem deixar vestígio no ambiente ou no ecossistema [5]; é uma poluição que causa danos aos humanos, uma questão de saúde pública, mais que uma degradação ambiental ou ecossistêmica. É uma poluição causada por humanos que degrada a vida humana, enquanto é produzida.

Essa constatação traz algumas considerações. O som, o ruído a que nos referimos, é produzido pelos humanos para os humanos e sua qualificação envolve um aspecto subjetivo e cultural; são mais ou menos agradáveis, são musicais, ruídos ou barulhos conforme a percepção e o momento de quem os ouve. A intensidade tem um aspecto cultural; é maior em determinados eventos (shows de música, casas noturnas, reunião de jovens, oitiva de certas músicas e momentos) que em outros, contando assim com a anuência e a vontade de ao menos parte das pessoas a ela submetida.

A produção de sons e ruídos submete-se ao regulamento ambiental e depende de prévia licença. A emissão de ruídos por veículos – automóveis, motocicletas, caminhões, ônibus e máquinas rodoviárias é tratada pelo Programa Nacional de Controle de Ruído Veicular. Tal programa, lançado a partir das Resoluções Conama nº 01 e 02 de 1993, e atualizado pelas Resoluções Conama 8 de 1993, 17 de 1995, 20 de 1996, 242 de 1998, 268 e 272 de 2000 e 433 de 2011, complementada pela Instrução normativa Ibama 06 de 2015, estabelece limites máximos de ruído para veículos automotores novos comercializados no Brasil; prevê ainda critérios para serem utilizados em futuros programas de inspeção e fiscalização de veículos em circulação, conforme as Resoluções Conama de 7 de 1993, 227 de 1997, 252 e 256 de 1999 e 418 de 2009. A LE nº 997/76 de São Paulo estabelece que o órgão ambiental, para garantir a execução do Sistema de Controle da Poluição do Meio Ambiente, poderá exigir do responsável pela atividade efetivamente ou potencialmente poluidora o plano de suas atividades ou do processamento industrial, inclusive a emissão de ruídos (artigo 14, § único, inciso I).

O ruído urbano é tratado tanto como uma questão ambiental ou como uma questão de vizinhança, dependendo da sua intensidade. O ruído de grande intensidade que atinge uma área extensa e um número maior de pessoas é considerado uma poluição ambiental; o ruído localizado se enquadra no uso anormal da propriedade que permite aos atingidos fazer cessar as interferências prejudiciais ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha; mas considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança [6]. A emissão de ruídos em estabelecimentos industriais ou comerciais de maior porte pode exigir o prévio licenciamento ambiental; a emissão de ruídos em atividades usuais (residências, pequenos comércios, serviços) se sujeita aos limites previstos nas normas técnicas e no zoneamento urbano. Neste caso, a poluição não é inerente à atividade e surgirá quando ultrapassados os limites sonoros, a tornar mais complexa a fiscalização (pois a poluição é detectada apenas no momento em que o som é produzido, sem deixar vestígios que permitam a apuração posterior) e mais difícil a vida nas cidades.

Essas peculiaridades da poluição sonora reflete a jurisprudência, como veremos em artigo futuro.


[1] Apontamentos sobre as cidades sustentáveis — II – Consultor JurídicoConsultor Jurídico (conjur.com.br)

[2] Ciência Ilustrada, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1970, vol. 4, pág. 1728.

[3] Ciência Ilustrada, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1971, vol. 5, pág. 2103.

[4] http://www.invivo.fiocruz.br/saude/poluicao-sonora/

[5] Não me refiro a sons decorrentes de causas geológicas, de enorme intensidade, cuja vibração provoca uma perturbação direta na natureza e nos seres vivos.

[6] Código Civil, art. 1.277 e seu § único.

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