Opinião

Improbidade administrativa e atipicidade superveniente: REsp nº 1.912.569

Autores

  • Flávio Cheim Jorge

    é mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor titular da graduação e do mestrado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) sócio fundador e advogado da Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

  • Mariana Fernandes Beliqui

    é mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) coordenadora jurídica e advogada da Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

17 de maio de 2023, 6h34

Este artigo objetiva comentar a decisão do ministro Humberto Martins prolatada no REsp 1912569, de 14 de abril de 2023, concernente aos efeitos retroativos da Lei nº 14.230/2021 (nova LIA) sobre os atos dolosos praticados anteriormente à sua entrada em vigor.

No caso ora em apreciação, o recorrente/réu responde a uma acusação de prática de ato doloso anterior à Lei nº 14.2023/2021, tendo sido condenado pela segunda instância com fundamento no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, dispositivo substancialmente alterado pela Lei nº 14.230/2021.

Reconhecendo a atipicidade superveniente dos atos dolosos trazida ao mundo jurídico pela nova LIA, o ministro Humberto Martins, em decisão monocrática, determinou que os autos retornassem ao tribunal de segunda instância para que fosse exercido o juízo de retratação previsto no artigo 1.040 e 1.041 do CPC.

O que merece destaque no caso é o fato de que o ministro entendeu que o julgamento do Tema 1199 se reflete sobre a situação fática por ele apreciada, qual seja a prática de ato doloso.

Isso porque, a partir de uma interpretação extensiva do acórdão do Tema 1.199, a atipicidade superveniente, isto é, a revogação do caput e dos incisos I e II do artigo 11 da antiga LIA, é um fenômeno que espalha seus efeitos também sobre os atos dolosos:

"(…) Como se vê no item nº 3 da tese fixada, a nova lei de improbidade administrativa aplica-se retroativamente aos casos culposos, desde que não tenha havido o trânsito em julgado, devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente.
Por conseguinte, embasado no axioma jurídico 'onde há o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito' (ubi eadem ratio ibi idem jus), estruturante da forma inteligível e isonômica de aplicação do Direito, considerando a revogação da regra legal de possibilidade de condenação por ato não previsto no rol exemplificativo da redação anterior do artigo 11 da lei em comento, não mais vigora a possibilidade de condenação justificada tão somente no cometimento de ato que importasse em violação de princípio previsto no caput, sem qualquer necessidade de prática de ato específico previsto legalmente.
Explico. O artigo 11, na redação anterior da Lei de Improbidade Administrativa, previa a possibilidade de condenação por cometimento de ato de improbidade administrativa com supedâneo tão somente em violação de princípios, mesmo que o ato concreto não estivesse na lista do rol exemplificativo prescrito no dispositivo.
(…)
Tal disposição legal foi revogada e não há mais possibilidade de condenação sem que esteja caracterizada alguma hipótese prevista expressamente no rol taxativo recém-criado legalmente, isto é, não há mais a possibilidade legal de condenação com base tão somente em violação de princípio, que foi exatamente a hipótese dos autos.
(…)
Portanto, irrefutável que, consoante análise fática já realizada pelas instâncias originárias, os atos praticados considerados ímprobos assim o foram em razão de alegada violação principiológica tão somente, o que descaracteriza a improbidade administrativa após a modificação legislativa.
A sentença proferida condenou o B. R. S. tão somente em ato de improbidade administrativa que atentou contra os princípios da administração pública, nos termos do artigo 11 da legislação de regência, em sua redação anterior, como se vê à fl. 11.2333.
Conforme explicitado e ratificado pelo próprio acórdão do Tribunal a quo (fl. 12.848), o B. R. S. foi condenado tão somente pela prática de atos de improbidade administrativa com fulcro no caput do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, em sua anterior redação, tendo havido, portanto, condenação apenas com base em infringência a princípios.
De consequência, diante da possibilidade de aplicação retroativa da nova legislação, despicienda qualquer perquirição sobre a eventual impossibilidade de aplicação do artigo 493 do CPC para os casos em que poderiam não estar presentes os pressupostos de admissibilidade recursal."

E para deixar clara a consagração da tese de que estava aplicando o posicionamento do STJ adotado no Tema 1.199, o ministro Martins arrematou:

"Diante de todo o exposto, conheço do recurso especial e, em face do teor do Tema nº 1. 199, do Supremo Tribunal Federal, determino o retorno dos autos ao Tribunal a quo, com a devida baixa nesta Corte, a fim de que sejam tomadas as medidas previstas nos artigos 1.040 e 1.041 do CPC."

Pois bem, para análise da decisão é necessário, primeiramente, lembrar que a ratio decidendi do acórdão do Tema 1.199-STF leva à conclusão de que, nos feitos pendentes de julgamento definitivo, a Lei nº 14.230/2021 repercute também nos atos anteriores à sua vigência praticados com dolo [1].

Isso porque o STF, ao julgar o Tema 1199, definiu a seguinte regra geral: como o tipo sancionador baseado na culpa não existe mais no momento da decisão judicial, estamos diante de superveniência de atipicidade e por isso a condenação se torna uma impossibilidade jurídica.

Noutros termos: para o Supremo, é impossível sancionar um ato de improbidade culposo porque esse tipo deixou de existir, ou seja, não figura no sistema sancionador no momento da decisão judicial [2].

É certo que, naquele caso, o STF se referiu expressamente ao tipo culposo porque o ARE possuía um objeto limitado pelas circunstâncias da causa de pedir e por isso não era dado à Corte estender o debate para a área do dolo.

Todavia, a partir de um raciocínio lógico-jurídico fundado sobre essa premissa, qual seja, a proibição de ultratividade do dispositivo sancionar revogado, torna-se imperativo concluir que, se um tipo doloso específico não existe mais no momento da decisão, o Judiciário está proibido de usá-lo como alicerce para a condenação do réu [3], especialmente quando sabemos que a ação de improbidade administrativa, embora de natureza civil, como definiu o STF no mesmo Tema 1.199, possui características penais [4].  

Assim, a decisão do ministro Humberto Martins, ao aplicar o princípio ubi eadem ratio ibi idem jus [5], utilizou a interpretação extensiva como método para reconhecer que a atipicidade superveniente criada pela Lei nº 14.230/2021 reverbera sobre o ato doloso e, embora em sua Decisão ele não tenha mencionado nenhum precedente, a hermenêutica de sua excelência se alia ao posicionamento de vários pretórios [6], bem como no Parecer nº 00005/2022/CNPAD/CGU/AGU, da Advocacia Geral da União [7], aprovado pelo presidente da República em 9/11/2022.

Sob o ponto de vista da técnica jurídica, bem como o que estabelece a jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos [8], a decisão do ministro Humberto Martins está absolutamente correta e em consonância com as razões de decidir do Tema 1.199 do STF.

 


[2] Veja-se o Dispositivo do voto do relator, ministro DE MORAES: "(…) tendo sido revogado o ato de improbidade administrativa culposo antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, não é possível a continuidade de uma investigação, de uma ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória com base em uma conduta não mais tipificada legalmente, por ter sido revogada. Não se trata de retroatividade da lei, uma vez que todos os atos processuais praticados serão válidos, inclusive as provas produzidas  que poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal ; bem como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário. Entretanto, em virtude ao princípio do tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base em norma legal revogada expressamente. (…)".

[3] A premissa se aplica somente aos processos pendentes de julgamento definitivo de seu mérito, inclusive aqueles que se encontram nos tribunais superiores, pois não importa a instância e sim a inexistência de coisa julgada.

[4] Sobre essa natureza "penaliforme", veja-se o voto do ministro Luiz Fux, quando integrava o STJ, no RECURSO ESPECIAL Nº 721.190 – CE ("Tratando-se de ação cível com cunho penal, a atipicidade da conduta assemelha-se à impossibilidade jurídica do pedido"). No mesmo sentido, posteriormente, o mesmo Tribunal no RECURSO ESPECIAL Nº 721.190 – CE, relator ministro Napoleão Maia Filho.

[5] Ou ubi eadem ratio ibi idem legis dispositivo.

[6] CORTE ESPECIAL DO STJ no REsp 1926832/TO; PLENÁRIO DO TSE no RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL Nº 0600765-75.2022.6.24.0000; TRF2 6ª Turma na APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA Nº 5001550-97.2019.4.02.5104/RJ e na APELAÃO CÍVEL 5002217-23.2018.4.02.5103/RJ, dentre vários outros.

[8] Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panamá, parágrafo 103, São José da Costa Rica, 2 de fevereiro de 2001; Caso del Tribunal Constitucional Vs. Perú, parágrafo 68, São José da Costa Rica, 31 de janeiro de 2001; Caso Maldonado Ordoñez vs. Guatemala, parágrafo 89, São José da Costa Rica, 3 de maio de 2001. No mesmo sentido, a CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, Plenário, Caso Örtürk vs Germany, Application nº 8544/79, Strasbourg, 21 de fevereiro de 1984.

Autores

  • é professor titular da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).

  • é mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), coordenadora jurídica e advogada da Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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