Embargos Culturais

Márcio Evangelista e o tema dos precedentes no Direito Penal

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

5 de novembro de 2023, 8h00

No Brasil da década de 1990, o processo (civil e penal) teve que se adaptar ao tema dos precedentes, adotando-o com singularidades e alguma resistência. Especialmente em âmbito de processo civil, uma litigância em massa exigia modelo processual que a atendesse. O Código de 1973, ainda preso à litigância individual, não tinha resposta para várias questões que o Judiciário enfrentava.

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Várias reformas desembocaram em um texto novo, aprovado em 2015. Os artigos 926 e ss. do Código de Processo de 2015 instauram uma nova ordem. Há quem afirme que não temos um sistema de precedentes. Há quem entenda que temos um sistema de precedentes. Há quem diga que temos um sistema muito próprio, marcado por idiossincrasias e por particularidades que fomentam o voluntarismo.

Do ponto de vista de uma teoria geral do direito, a discussão sobre os precedentes é (no limite) de direito comparado, com apelo à teoria das transposições. Uma vez transposto de um direito para outro, é admissível que um instituto se transforme, às vezes até radicalmente. A medida provisória, que buscamos na Itália, antes da Emenda 32/2001 funcionava como um decreto-lei disfarçado. Entre nós, o amigo da corte virou o amigo da parte (na sempre precisa imagem de Damares Medina). O federalismo "de baixo para cima" ilustrou nosso federalismo de 1891, "de cima para baixo".

Mais longe no tempo ainda, o parlamentarismo do século 19 era um "parlamentarismo às avessas". O Conselho de Estado que copiamos da França era um tribunal "ad hoc”", resolvendo questões que o então Superior Tribunal de Justiça não julgava. O Conselho de Estado era o órgão do Poder Moderador. Alteramos substancialmente uma doutrina atribuída a Benjamin Constant, não o nosso (positivista), mas o suíço, cuja vida é um romance.

No direito processual penal, dada a natureza da disciplina, instrumental ao Direito Penal e, portanto, refém da legalidade absoluta, as mudanças dão-se de um modo mais gradativo. O tema dos precedentes no Direito Penal (e consequentemente no direito processual penal) é o assunto de livro de Márcio Evangelista Ferreira da Silva, magistrado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, com importante atuação como juiz auxiliar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

É também professor no mestrado e na graduação do Iesb, em Brasília. Márcio Evangelista é um professor diferente. Empolga os alunos com exemplos da vida forense, que colhe como juiz participante. Como magistrado, não é do tipo justiceiro espalhafatoso. É calmo, ponderado, conciso, seguro. Recebe advogados. Escuta. Decide com objetividade.

Seu livro, Os Precedentes Vinculantes no Direito Penal e Processual Penal Brasileiro, é dividido em dez partes. Há um estudo introdutório em forma de comparação entre os sistemas continental (de onde o nosso se origina) e o inglês/norte-americano (em relação ao qual o nosso parece buscar referências de operação). O autor aprofunda o tema geral do precedente em capítulo próprio, distinguindo os precedentes persuasivos dos precedentes vinculativos.

"Ratio decidendi" e "obiter dictum" são conceitos de uso recente que o autor explora com profundidade. Aquela primeira, como motivação e fundamentação, este último, na impressão do autor, como um fato analisado sem que o juiz lhe tenha dado muita relevância, ou, ainda, como excerto intrínseco à decisão, ainda que não seja necessariamente decisivo para seu desate.

E se o precedente é na essência um instituto processual do common law, Márcio Evangelista esforçou-se para ajustar o argumento ao direito processual penal norte-americano, um modelo misto, com características de acusatório e de contraditório. No sistema de contraditório as partes trabalham com os fatos e com o direito enquanto o julgador olimpicamente assiste a disputa, garantindo igualdade de tratamento e cumprimento das regras. No acusatório o magistrado representa mais intensamente a sociedade cujas normas teriam sido desrespeitadas. O juiz dirige-se contra o réu, a quem se incumbe provar inocência. O ônus da prova distingue basicamente os dois modelos. No contraditório o promotor deve provar a culpa do acusado. No acusatório espera-se do réu participação mais ativa.

Esse é o pano de fundo do processo penal norte-americano, fonte de encantamento literário, televisivo, cinematográfico, sociológico, transcendendo do meramente jurídico para o objetivamente político, a exemplo de recentes posturas conservadoras, direitistas e também ativistas da Suprema Corte em Washington.

O sistema de precedentes, no processo penal (Estados Unidos) é muito mais rígido do que o sistema de precedentes no processo civil (ainda, nos Estados Unidos). Márcio Evangelista compreendeu muito bem essa sutilidade. O autor não transpôs simplesmente o tema dos precedentes do processo civil para o processo penal. É esse o núcleo do capítulo 6, no meu entender o mais instigante de todo o livro. Márcio Evangelista bem sabe que nos Estados Unidos o precedente se impõe por ser precedente, e que no Brasil o precedente se impõe por que a lei (Código de Processo) fixa a extensão e os limites de sua obrigatoriedade.

O desafio do livro consiste em aplicar ao processo penal a fundamentação instrumental dos precedentes como concebida no processo civil (coerência, diminuição dos custos de litigância, legalidade substancial, desestímulo à litigância, respeito à hierarquia, entre outros). Como operacionalizar essa lógica onde se discute a liberdade? É esse o "leitmotiv" do livro, seu fio condutor, a valer-me de uma expressão das técnicas de composição de Richard Wagner.

Mais ao fim, Márcio Evangelista trata da coisa julgada no processo penal brasileiro, revisitando institutos como a revisão criminal, o habeas corpus e a própria mitigação da res judicata. Na impressão do autor, tem-se uma tensão entre a estabilidade e a imutabilidade, o que é muito mais do que uma impossibilidade lógica, ou um oximoro, em termos linguísticos. Como resolver o impasse, dado que estabilidade e imutabilidade seriam complementares?

Em âmbito penal o precedente enfrenta desafios postos pela legalidade absoluta. É esse o ponto que faz do livro de Márcio Evangelista uma inflexão no assunto. Como na imagem matemática, a curvatura troca de sinal. O autor constata uma redução do campo hermenêutico na atividade do magistrado, o que resulta, com a técnica do precedente, em maior estabilidade social, que é o fim última da atividade jurisdicional. Márcio Evangelista argumenta que essa constatação não é um paradoxo. A minha geração criticou os juízes porque eram insensíveis e porque aplicavam a lei. A geração atual critica os juízes porque são muito sensíveis e porque não aplicam a lei. Vá entender…

Como mensagem, parece-me, o autor exige comprometimento do magistrado para com a igualdade e para com a segurança jurídica, mediadas pelo precedente. O livro é prefaciado pelo ministro João Otávio de Noronha, para quem "os precedentes surgiram para regulamentar situações, gerar universalidade para casos futuros e, assim, garantir previsibilidade, igualdade e segurança ao jurisdicionado". É esse o postulado que Márcio Evangelista trata, problematiza, explora e resolve nesse livro ao mesmo tempo denso e leve.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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