Márcio Evangelista e o tema dos precedentes no Direito Penal
5 de novembro de 2023, 8h00
No Brasil da década de 1990, o processo (civil e penal) teve que se adaptar ao tema dos precedentes, adotando-o com singularidades e alguma resistência. Especialmente em âmbito de processo civil, uma litigância em massa exigia modelo processual que a atendesse. O Código de 1973, ainda preso à litigância individual, não tinha resposta para várias questões que o Judiciário enfrentava.
Do ponto de vista de uma teoria geral do direito, a discussão sobre os precedentes é (no limite) de direito comparado, com apelo à teoria das transposições. Uma vez transposto de um direito para outro, é admissível que um instituto se transforme, às vezes até radicalmente. A medida provisória, que buscamos na Itália, antes da Emenda 32/2001 funcionava como um decreto-lei disfarçado. Entre nós, o amigo da corte virou o amigo da parte (na sempre precisa imagem de Damares Medina). O federalismo "de baixo para cima" ilustrou nosso federalismo de 1891, "de cima para baixo".
Mais longe no tempo ainda, o parlamentarismo do século 19 era um "parlamentarismo às avessas". O Conselho de Estado que copiamos da França era um tribunal "ad hoc”", resolvendo questões que o então Superior Tribunal de Justiça não julgava. O Conselho de Estado era o órgão do Poder Moderador. Alteramos substancialmente uma doutrina atribuída a Benjamin Constant, não o nosso (positivista), mas o suíço, cuja vida é um romance.
No direito processual penal, dada a natureza da disciplina, instrumental ao Direito Penal e, portanto, refém da legalidade absoluta, as mudanças dão-se de um modo mais gradativo. O tema dos precedentes no Direito Penal (e consequentemente no direito processual penal) é o assunto de livro de Márcio Evangelista Ferreira da Silva, magistrado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, com importante atuação como juiz auxiliar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
É também professor no mestrado e na graduação do Iesb, em Brasília. Márcio Evangelista é um professor diferente. Empolga os alunos com exemplos da vida forense, que colhe como juiz participante. Como magistrado, não é do tipo justiceiro espalhafatoso. É calmo, ponderado, conciso, seguro. Recebe advogados. Escuta. Decide com objetividade.
Seu livro, Os Precedentes Vinculantes no Direito Penal e Processual Penal Brasileiro, é dividido em dez partes. Há um estudo introdutório em forma de comparação entre os sistemas continental (de onde o nosso se origina) e o inglês/norte-americano (em relação ao qual o nosso parece buscar referências de operação). O autor aprofunda o tema geral do precedente em capítulo próprio, distinguindo os precedentes persuasivos dos precedentes vinculativos.
"Ratio decidendi" e "obiter dictum" são conceitos de uso recente que o autor explora com profundidade. Aquela primeira, como motivação e fundamentação, este último, na impressão do autor, como um fato analisado sem que o juiz lhe tenha dado muita relevância, ou, ainda, como excerto intrínseco à decisão, ainda que não seja necessariamente decisivo para seu desate.
E se o precedente é na essência um instituto processual do common law, Márcio Evangelista esforçou-se para ajustar o argumento ao direito processual penal norte-americano, um modelo misto, com características de acusatório e de contraditório. No sistema de contraditório as partes trabalham com os fatos e com o direito enquanto o julgador olimpicamente assiste a disputa, garantindo igualdade de tratamento e cumprimento das regras. No acusatório o magistrado representa mais intensamente a sociedade cujas normas teriam sido desrespeitadas. O juiz dirige-se contra o réu, a quem se incumbe provar inocência. O ônus da prova distingue basicamente os dois modelos. No contraditório o promotor deve provar a culpa do acusado. No acusatório espera-se do réu participação mais ativa.
Esse é o pano de fundo do processo penal norte-americano, fonte de encantamento literário, televisivo, cinematográfico, sociológico, transcendendo do meramente jurídico para o objetivamente político, a exemplo de recentes posturas conservadoras, direitistas e também ativistas da Suprema Corte em Washington.
O sistema de precedentes, no processo penal (Estados Unidos) é muito mais rígido do que o sistema de precedentes no processo civil (ainda, nos Estados Unidos). Márcio Evangelista compreendeu muito bem essa sutilidade. O autor não transpôs simplesmente o tema dos precedentes do processo civil para o processo penal. É esse o núcleo do capítulo 6, no meu entender o mais instigante de todo o livro. Márcio Evangelista bem sabe que nos Estados Unidos o precedente se impõe por ser precedente, e que no Brasil o precedente se impõe por que a lei (Código de Processo) fixa a extensão e os limites de sua obrigatoriedade.
O desafio do livro consiste em aplicar ao processo penal a fundamentação instrumental dos precedentes como concebida no processo civil (coerência, diminuição dos custos de litigância, legalidade substancial, desestímulo à litigância, respeito à hierarquia, entre outros). Como operacionalizar essa lógica onde se discute a liberdade? É esse o "leitmotiv" do livro, seu fio condutor, a valer-me de uma expressão das técnicas de composição de Richard Wagner.
Mais ao fim, Márcio Evangelista trata da coisa julgada no processo penal brasileiro, revisitando institutos como a revisão criminal, o habeas corpus e a própria mitigação da res judicata. Na impressão do autor, tem-se uma tensão entre a estabilidade e a imutabilidade, o que é muito mais do que uma impossibilidade lógica, ou um oximoro, em termos linguísticos. Como resolver o impasse, dado que estabilidade e imutabilidade seriam complementares?
Em âmbito penal o precedente enfrenta desafios postos pela legalidade absoluta. É esse o ponto que faz do livro de Márcio Evangelista uma inflexão no assunto. Como na imagem matemática, a curvatura troca de sinal. O autor constata uma redução do campo hermenêutico na atividade do magistrado, o que resulta, com a técnica do precedente, em maior estabilidade social, que é o fim última da atividade jurisdicional. Márcio Evangelista argumenta que essa constatação não é um paradoxo. A minha geração criticou os juízes porque eram insensíveis e porque aplicavam a lei. A geração atual critica os juízes porque são muito sensíveis e porque não aplicam a lei. Vá entender…
Como mensagem, parece-me, o autor exige comprometimento do magistrado para com a igualdade e para com a segurança jurídica, mediadas pelo precedente. O livro é prefaciado pelo ministro João Otávio de Noronha, para quem "os precedentes surgiram para regulamentar situações, gerar universalidade para casos futuros e, assim, garantir previsibilidade, igualdade e segurança ao jurisdicionado". É esse o postulado que Márcio Evangelista trata, problematiza, explora e resolve nesse livro ao mesmo tempo denso e leve.
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