Opinião

Lei nº 8.666/93 está na UTI, mas administração pública não quer desligar aparelhos

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Jordão Violin

    é advogado professor doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

29 de março de 2023, 6h31

De acordo com o inciso II do artigo 194 da Lei nº 14.133/21 (nova Lei de Licitações), a Lei nº 8.666/93 há de ser completamente revogada no próximo dia 1º. Isto é, ante a complexidade que envolve a matéria e os impactos de uma nova legislação sobre licitações e contratos administrativos e o atuar da Administração Pública, decidiu o legislador por criar um período de transição de dois anos para que os entes sujeitos à obrigação de licitar pudessem se adequar às novas disposições.

Nesse período, poderia a Administração optar por licitar de acordo com as disposições da Lei nº 14.133/21 ou nos termos da Lei nº 8.666/93, devendo tal decisão constar do edital de licitação ou do aviso de contratação direta. Em se optando pela Lei nº 8.666/93, o contrato seria por ela regido durante toda a sua vigência (artigo 191 da Lei nº 14.133/21).

Nesse panorama legislativo, duas conclusões imediatas são (ou, melhor, eram) possíveis:

1) a Lei nº 8.666/93 seria completamente revogada em 01.04.2023;

2) caso a Administração quisesse contratar com base na lei antiga, poderia fazê-lo somente até essa data. Mais especificamente: uma contratação, para ser regida pela Lei nº 8.666/93, deveria ter seu edital ou aviso de contratação direta publicado até 31.03.2023.

Mas a proximidade do dia 01.04.2023, somada a uma típica tradição protelatória pátria, parecem ter transmutado a tão criticada Lei nº 8.666/93 em objeto de profundo saudosismo, e colocaram ambas as conclusões em xeque. Num movimento mais contundente, o deputado federal Alberto Mourão (MDB-SP) redigiu o Projeto de Lei n. 934/2023, que "Dispõe sobre a Prorrogação da Vigência da Nova Lei de Licitações […]".

Em resumo, o projeto de lei (que atualmente aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados) propõe a prorrogação da vigência da Lei nº 8.666/93 (bem como das Leis nº 10.520/2002 e 12.462/2011) até 31.12.2024.

Há, contudo, iniciativas mais sutis, destinadas a conferir sobrevida à Lei nº 8.666/93. A Unidade de Auditoria Especializada em Contratações, vinculada ao Tribunal de Contas da União (TCU), emitiu estudo técnico esposando entendimento segundo o qual a opção de contratar com base na antiga Lei de Licitações poderia ser feita até 31.03.2023 em qualquer etapa da fase preparatória, não sendo necessária a efetiva publicação do edital até essa data.

Ou seja, a existência qualquer estudo ou documento preliminar à divulgação em que constasse a opção da Administração Pública pela utilização Lei nº 8.666/93 seria suficiente para garantir que a futura licitação fosse por ela regida. Para tanto, bastaria que o referido documento ou estudo fosse produzido antes de 31.03.2023. Embora seja um pronunciamento não definitivo, ele deixa claro a resposta que se planeja dar às dificuldades de planejamento enfrentadas pela Administração Pública brasileiro, que por razões mil, não conseguiram, ao longo de dois anos, tomar as providências necessárias para aplicar adequadamente a Lei nº 14.133/2021.

Esse entendimento, aliás contrasta com manifestação anterior do próprio TCU, que, chamado a se manifestar sobre aplicabilidade das disposições da então publicada Lei nº 13.303/16, decidiu que sua observância era impositiva em todos os processos de contratação sem editais ou avisos de contratação direta não publicados até a data do início da sua vigência. Veja-se:

"9.1. dar ciência à Companhia do Metropolitano do Distrito Federal (Metrô-DF), com fundamento no artigo 7º da Resolução 265/2014 – TCU, da necessidade de aplicação da Lei 13.303/2016 nos procedimentos licitatórios que serão publicados, mesmo que a fase interna tenha sido iniciada anteriormente à data prevista no artigo 91 daquela lei, com vistas à obtenção dos potenciais benefícios apresentados pela nova legislação (Acórdão nº 2.279/2019 – Plenário)."

Ou seja, quando chamado a decidir sobre questão semelhante no que toca à Lei das Estatais, o TCU afirmou que a data limite prevista pelo legislador deveria ser respeitada pela Administração.

Tal entendimento, contudo, tem sido ignorada até aqui, e a tentativa de manter a Lei nº 8.666/93 gerando efeitos foi encampada pelo Governo Federal, por meio da publicação da Portaria Seges/MGI nº 720, de 15 de março de 2023.

O referido ato normativo tem por suposto objetivo fixar "[…] o regime de transição de que trata o art. 191 da Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional". Na prática, ela permite que todos os processos de contratação autuados até o dia 31 de março de 2023, com base nas Leis nº 8.666/93, 10.520/2002 e 12.462/2011, sejam por elas regidos.

O Anexo I da Portaria em questão impõe "limites". Contratações diretas, fundadas em hipóteses de dispensa em função do valor, não são por ela afetadas. As demais contratações estão sujeitas às seguintes limitações temporais:

— Contratações diretas fundadas em outras hipóteses de dispensa de licitação devem ser inseridas no sistema de compras do Governo Federal até dia 28 de março de 2024, às 16h, e devem ser publicadas no Diário Oficial da União até o dia 1º de abril de 2024;

— Contratações diretas fundadas em hipóteses de inexigibilidade de licitação devem ser inseridas no sistema de compras do Governo Federal até dia 28 de março de 2024, às 16h, e devem ser publicadas no Diário Oficial da União até o dia 1º de abril de 2024; e

— Licitações processadas por quaisquer das modalidades previstas nas Leis nº 8.666/93, 10.520/2002 e 12.462/2011, devem ser inseridas no sistema de compras do governo federal até dia 28 de março de 2024, às 16h, e devem ser publicadas no Diário Oficial da União até o dia 1º de abril de 2024;         

Sem adentrar no mérito da adequação técnico-jurídica dos posicionamentos adotados pela Unidade de Auditoria Especializada em Contratações vinculada ao Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo governo federal, não se pode negar que suas construções são sintomáticas, pois denotam em grande medida a dificuldade que a Administração Pública brasileira tem de colocar em prática um modelo efetivamente gerencial, que preze pelo planejamento de suas ações.

O objetivo do legislador, ao estabelecer um período de transição extenso, foi o de oportunizar que os entes e entidades sujeitos à Lei nº 14.133/2021 se adequassem às novas disposições. Contudo, nada disso foi feito. O governo prevê que para aplicar adequadamente a Lei nº 14.133/2021, precisará editar 72 regulamentos. Até o momento da elaboração deste artigo, apenas 36 foram publicados. Com raras exceções (a exemplo do estado do Paraná, que editou o Decreto nº 10.086/2022, regulamentando integralmente a Nova Lei de Licitações), a situação observada em estados e municípios é ainda pior.

Esse estado de coisas deveria conduzir a uma reflexão mais profunda sobre como são conduzidas ações de caráter mais estruturante e atreladas a planejamento, no âmbito da Administração Pública brasileira. Mas isso não vai ocorrer. A solução encontrada é sempre outra, de caráter protelatório. Dizendo de outro modo, parece que há algo mais urgente a ser feito: pensar em formas de manter a Lei nº 8.666/93 ligada a aparelhos.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), árbitro e advogado.

  • é advogado, professor, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation) e advogado.

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