Transferência de Pena

Interpretação sobre acordo bilateral com Itália pode ser chave no 'caso Robinho'

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25 de março de 2023, 8h48

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça vai analisar pela primeira vez a possibilidade de um brasileiro nato cumprir no país uma sentença estrangeira. Trata-se do caso do ex-jogador Robinho, condenado na Itália a nove anos de prisão por estupro. O governo italiano solicitou o cumprimento da pena no Brasil.

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Robinho foi condenado na Itália a
nove anos de prisão pelo crime de estupro
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A revista eletrônica Consultor Jurídico levantou processos semelhantes. Só é comum a homologação nos casos em que o pedido de transferência de pena é feito por Portugal, com quem o Brasil tem promessa de reciprocidade

Não há o mesmo mecanismo envolvendo o Brasil e a Itália. O que está em vigor é um tratado bilateral de extradição, mas Robinho não pode ser extraditado por ser brasileiro nato. 

Há ainda o Tratado Bilateral sobre Cooperação Judiciária em Matéria Penal (MLAT), que dispõe que a cooperação entre os países "não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal, nem a execução de condenações". Com isso, a transferência de cumprimento de pena fica fora do acordo, mas não é explicitamente vedada. Artigo recente publicado na ConJur, de autoria de Gustavo Henrique Badaró e Paula Ritzmann Torres, aborda esse tema.

A discussão sobre o acordo bilateral pode ser a chave do caso, já que nada envolvendo o tema é simples, e parte da legislação brasileira é dúbia com relação à transferência de pena. Um dos pontos de atrito diz respeito ao artigo 9 do Código Penal, segundo o qual a homologação de sentença estrangeira se restringe aos casos em que há a necessidade de reparação civil do dano causado ou cumprimento de medidas de segurança, como internação em hospital de custódia ou para tratamento psiquiátrico e ambulatorial. 

Além disso, o artigo 100 da Lei de Migração (Lei 13.445/2017) estabelece em seu caput que a transferência de execução de pena é possível nos casos em que cabe "solicitação de extradição executória", expediente que não pode atingir brasileiros natos, mas só migrantes, visitantes ou naturalizados. Já o primeiro inciso do artigo diz que a homologação cabe a nacionais, o que abarca brasileiros natos. 

"O artigo 9º do Código Penal inviabiliza a transferência da execução da pena imposta ao Robinho ao estabelecer a possibilidade de homologação de sentença estrangeira exclusivamente para eventual reparação de dano e cumprimento de medida de segurança, o que torna clara a impossibilidade de proceder à referida medida quando voltada para a execução de pena corporal", disse à ConJur o advogado criminalista André Fini Terçarolli, para quem não é possível a homologação da sentença contra Robinho, pois isso só caberia a casos em que também é possível a extradição. 

Segundo ele, a única possibilidade contra o jogador é a aplicação do artigo 7º, inciso II, alínea 'b', do Código Penal. De acordo com o dispositivo, brasileiros que cometem crimes fora do país estão sujeitos às leis brasileiras. Nesse caso, no entanto, o Judiciário teria de condenar Robinho após denúncia do Ministério Público. Ou seja, o processo teria de começar do zero no Brasil. Há dispositivo semelhante no acordo bilateral com a Itália. De acordo com o trecho, o Estado requerido "submeterá o caso às suas autoridades competentes" para eventual instauração de procedimento penal.

"O Direito Penal pátrio, já prevendo uma situação como essa, estabeleceu, no artigo 7º, inciso II, alínea 'b', do Código Penal, uma hipótese de extraterritorialidade para os casos de crimes cometidos no estrangeiro por brasileiro nato, o que viabiliza a persecução criminal no Brasil por fatos cometidos fora do país", afirma Fini. 

Vladimir Aras, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Ministério Público Federal, discorda. Para ele, a Lei de Migração não restringe a homologação aos casos em que cabe extradição. Segundo esse ponto de vista, a transferência da pena é possível. 

"A transferência da pena cabe para o nacional (isso é, ao brasileiro) ou o estrangeiro que tenha vínculo pessoal com o Brasil, conforme o inciso I do parágrafo único do artigo 100 da Lei de Migração. A transferência da execução penal serve exatamente para o cumprimento de penas de brasileiros condenados no exterior", afirma ele. 

Ainda segundo Aras, a base do pedido italiano é uma cláusula que se aplica sempre que não é possível a extradição por motivo de nacionalidade. 

"Se a pena no exterior for aplicada a um estrangeiro que esteja no Brasil, o que o Brasil faz? Extradita esse estrangeiro. Se a pena estrangeira for aplicada a um brasileiro, não podemos extraditar esse nacional. Então executamos a pena aqui. É um equívoco dizer que a Lei de Migração barra a transferência", afirma ele

"Só cabe a transferência no Brasil se a sentença estrangeira já transitou em julgado (caso de extradição executória). No próprio caso Robinho, a Itália primeiro pediu a extradição executória, para que Robinho cumpra a pena lá. O Brasil rejeitou porque o ex-jogador é nato. Logo, passa-se ao segundo pedido: transferência da execução da pena", conclui Aras.

Decisões do STJ
São poucos os casos semelhantes ao de Robinho analisados pelo STJ, tribunal responsável pela homologação de sentenças estrangeiras, e todas as decisões até o momento foram monocráticas. 

O caso do ex-jogador vai à Corte Especial, sem decisão individual do relator, ministro Francisco Falcão. Com isso, o tribunal poderá, enfim, fazer um pronunciamento de modo colegiado sobre o tema.

Há decisões do ministro Humberto Martins homologando sentenças estrangeiras contra brasileiros. Os casos, no entanto, envolvem pedidos feitos por Portugal, país que tem promessa de reciprocidade com o Brasil. Com o pacto, há igualdade de direitos e deveres entre cidadãos dos dois países, ainda que envolvendo crimes de brasileiros em Portugal e vice-versa.

Em um desses casos (HDE 4.629), de 19 de fevereiro de 2021, o ministro levou em conta a promessa de reciprocidade para determinar o cumprimento de pena, no Brasil, de um homem condenado pela Justiça de Portugal a 12 anos por roubo, sequestro, estupro e estelionato. Em outro (HDE 5.175), Martins homologou sentença estrangeira contra um homem condenado por roubo e sequestro. 

Ainda que tenham a particularidade de envolver o Estado português, os casos são relevantes porque Martins considera preenchidos os seguintes requisitos, listados no artigo 100 da Lei de Migração:

  • O condenado em território estrangeiro for nacional ou tiver residência habitual ou vínculo pessoal no Brasil;
  • Sentença transitada em julgado;
  • A duração da condenação a cumprir ou que restar para cumprir for de, pelo menos, um ano, na data de apresentação do pedido ao Estado da condenação;
  • O fato que originou a condenação constituir infração penal perante a lei de ambas os Estados; e
  • Haver tratado ou promessa de reciprocidade.

O ministro não considerou o trecho do artigo 100 segundo o qual só é possível a homologação nos casos em que cabe extradição executória, vedada a brasileiros natos.

"Como bem salientado pelo Parquet, verifica-se que o condenado é
nacional e tem residência do Brasil, a decisão estrangeira transitou em
julgado, os fatos que originaram a condenação constituem infração penal perante a lei brasileira e há tratado firmado entre o Brasil e Portugal, promulgado no Brasil pelo Decreto 8.049/2013, além da promessa de reciprocidade", argumentou o magistrado.

A primeira decisão de Martins acabou sendo alvo de uma ação rescisória (AR 7.287). O argumento foi o de que se é vedada a extradição do brasileiro nato, também fica barrada a transferência de execução da condenação penal. 

No entanto, o relator do caso, ministro Herman Benjamin, entendeu que o artigo 100 da Lei de Migração não traz essa previsão expressamente. "Em verdade, o que se busca é criar um requisito não previsto expressamente e, como se sabe, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Noutras palavras, se de fato fosse intenção do legislador estabelecer restrição adicional à transferência da execução penal, haveria disposição explícita nesse sentido", afirmou ele (clique aqui para ler a íntegra). 

Se argumentos semelhantes aos de Martins e Herman Benjamin forem levados em consideração pela Corte Especial, é possível que haja a homologação da sentença contra Robinho. O entendimento, no entanto, é conflitante quando comparado com decisões do ministro João Otávio de Noronha. 

Em setembro de 2019, o ministro analisou o pedido de uma pessoa absolvida na Suíça da acusação de tráfico, mas condenada no Brasil. O réu pediu a homologação da sentença estrangeira para se livrar da execução da pena (HDE 2.259). 

O magistrado, no entanto, afirmou que o artigo 9 do Código Penal só prevê duas hipóteses de homologação de sentença estrangeira: obrigar o condenado a reparar civilmente o dano causado ou para sujeitá-lo à medida de segurança (clique aqui para ler a íntegra). 

"Afora tais hipóteses, o pedido relativo à homologação de sentenças penais estrangeiras não pode ser acolhido em razão da absoluta falta de amparo legal", afirmou o ministro na decisão.

Em outro caso (HDE 1.128), de junho de 2019, Noronha rejeitou um pedido de Tacla Duran, ex-advogado da Odebrecht implicado na finada "lava jato". O réu solicitou a homologação de uma decisão da 2ª Seção da Sala Penal da Audiência Nacional da Espanha que, em apelação, determinou o prosseguimento da demanda para apurar os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a ele imputados. O objetivo era impedir o seguimento da ação penal que a "lava jato" tinha contra ele na 13ª Vara de Curitiba.

O magistrado entendeu que, na prática, o pedido buscava que o STJ trancasse uma ação penal que corria no Brasil. "Assim, a pretendida homologação tem como objeto a afirmação da competência estrangeira e, por tal razão, revela-se ofensiva à soberania nacional, pois tornaria sem efeito a atuação da jurisdição brasileira" (clique aqui para ler a íntegra). 

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