Opinião

Robinho: homologação de sentença penal condenatória na marca do pênalti

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21 de março de 2023, 7h07

Desde que a decisão condenatória de Robson de Souza (Robinho) pela prática do crime de violência sexual de grupo (artigo 609-octies do Código Penal italiano) tornou-se definitiva perante a justiça italiana, a Itália recorreu a mecanismos de cooperação jurídica internacional para tentar dar-lhe efetividade, pois o ex-jogador vive atualmente no Brasil.

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Capa de 2005 de revista esportiva
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Inicialmente, foi requerida a extradição do ex-jogador, com fundamento no Tratado bilateral de Extradição em vigor entre os dois Estados (internalizado por meio do Decreto nº 863/1993). Todavia, Robinho é brasileiro nato e não pode ser extraditado, conforme prevê o art. 5º, caput, inciso LI, da Constituição .

Sendo inviável a extradição direta, foi solicitada a sua inclusão na lista de difusão vermelha da Interpol, visando prendê-lo e o extraditar, caso entre em outro Estado[1]. No início de 2023, a Itália requereu, ainda, a transferência da execução penal, com o objetivo de que a condenação de Robinho fosse cumprida no Brasil.

Após análise da sua admissibilidade pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o pedido foi remetido ao Superior Tribunal de Justiça e autuado como ação de homologação de sentença estrangeira, para verificação da possibilidade de se dar eficácia interna à decisão italiana, nos termos do art. 105, inciso I, alínea i, da Constituição (HDE nº 7986/EX).

No dia 23 de fevereiro, a presidente do STJ entendeu, em princípio, estarem cumpridos os requisitos para a homologação previstos no artigo 216-D do seu Regimento Interno: a sentença foi proferida por autoridade competente (o crime ocorreu na Itália, onde foi julgado); o réu foi citado e teve oportunidade de defesa; e a sentença condenatória transitou em julgado.

Foi determinado o prosseguimento do processo, com a citação de Robinho para que, caso deseje, conteste o pedido, nos termos do artigo 216-H do RISTJ. Havendo contestação, o caso será submetido à Corte Especial (RISTJ, artigo 216-K) para decisão, em um juízo de contenciosidade limitado, sobre a homologação ou não da sentença italiana.

Entretanto, constou da própria decisão da presidente do STJ que a Corte Especial ainda não se manifestou sobre a possibilidade de homologar a sentença condenatória com o objetivo de transferir a execução da pena de brasileiro nato, tornando atual e necessário o debate do tema.  

Os principais pontos da discussão para análise do tema são: (i) a possibilidade ou não de homologar sentença estrangeira penal fora das hipóteses do artigo 9º do Código Penal; (ii) a existência ou não de fontes convencionais e legais que autorizem a transferência de execução da pena entre Brasil e Itália; e (iii) a aplicabilidade ou não da Lei de Migração ao caso do Robinho, brasileiro nato que praticou o crime antes da entrada em vigor da lei.

O Código Penal foi elaborado em uma época na qual os fatos ocorridos no exterior pouco impactavam o Brasil, admitindo-se a eficácia de sentença penal condenatória estrangeira somente para a reparação civil do dano causado à vítima e para a imposição de medida de segurança. Contudo, as noções clássicas de territorialidade e de soberania foram sendo alteradas em decorrência da globalização, que multiplicou os crimes com elementos transnacionais e intensificou a interdependência entre Estados para dar efetividade às leis e decisões além do seu território.

O artigo 9º do Código Penal, com redação de 1984, não contém um rol taxativo das hipóteses de homologação de sentença penal estrangeira, devendo ser analisado em conjunto com normas posteriores em vigor, de direito internacional e de direito interno, dentre as quais as que preveem a transferência de execução da pena[2].

A transferência da execução da pena é espécie de cooperação jurídica internacional em que um Estado (Requerente) requer a outro (Requerido) que assuma a execução de pena oriunda de sentença condenatória por ele proferida, nos casos em que a extradição não é viável ou eficaz, visando combater a impunidade. O consentimento do condenado para a transferência não é necessário, mas a execução da decisão estrangeira tampouco é automática, pois o Estado Requerido pode analisar, dentre outros requisitos, se determinados parâmetros, em geral relacionados à promoção de direitos humanos e garantias processuais penais, foram respeitados no processo originário conduzido pelo Estado Requerente.

Como espécie coperacional, a transferência de execução da pena pode ser requerida com base em promessa de reciprocidade entre Estados ou em tratado ratificado.

 No caso da Itália e do Brasil, o pedido de transferência de execução da pena está previsto no artigo 6.1 do Tratado bilateral de extradição em vigor, que dispõe que, havendo recusa de extradição, o Estado requerido "submeterá o caso às suas autoridades competentes para eventual instauração de procedimento penal".

A amplitude redacional da expressão "procedimento penal" indica, teleologicamente, o objetivo de combate à impunidade, delegando ao Estado do qual a pessoa é nacional o dever de processar e punir em sentido amplo, quer para aplicação extraterritorial da sua lei penal, quer para a instauração de procedimento penal pelos instrumentos coperacionais da transferência de processos ou da transferência de execução da pena. É a consagração do aut dedere, aut judicare. 

Tampouco há vedação convencional à transferência de execução da pena, ao contrário do que poderia indicar uma leitura rápida e isolada do art. 1.3 do Tratado Bilateral sobre Cooperação Judiciária em Matéria Penal (internalizado por meio do Decreto nº 862/1993 e conhecido como MLAT), que dispõe que a cooperação a que se refere àquele tratado "não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações". O MLAT não disciplina nem proíbe a transferência de execução da pena. O artigo 1º apenas define o objeto do tratado. O artigo 1.2 prevê os que é abrangido pelo tratado: cooperação para comunicação de atos processuais e obtenção de provas. Já o artigo 1.3, explicita o que não está disciplinado no MLAT: execução de medidas restritivas da liberdade pessoal e execução de condenações. Ou seja, o artigo 1.3 apenas a exclui do escopo do tratado — daí a expressão "não compreenderá" — as penas privativas de liberdade, mas não proíbe a cooperação para transferência de execução de tais penas.

A base convencional já seria suficiente, pelo princípio da especialidade[3], para utilizar o procedimento coperacional de transferência de execução da pena de Robinho, submetendo a sentença italiana ao rito homologatório do STJ.

Ademais, internamente, a Lei de Migração disciplina os requisitos e o procedimento para a transferência de execução da pena. O artigo 100 estabelece o seu cabimento nas "hipóteses em que couber solicitação de extradição executória", desde que cumpridos cinco requisitos: (i) o condenado for nacional, com residência ou vínculo no Brasil; (ii) a sentença tiver transitado em julgado; (iii) a duração da condenação for de ao menos um ano; (iv) existência de dupla incriminação; e (v) existência de tratado ou promessa de reciprocidade.

Tem causado polêmica a expressão "hipóteses em que couber solicitação de extradição executória" contida no caput do artigo 100, pois a sua interpretação literal indicaria que a transferência é condicionada ao cabimento de extradição executória. Como brasileiros natos não podem ser extraditados, seria impossível a transferência da sua execução da pena, limitando essa espécie coperacional aos estrangeiros e brasileiros naturalizados, ressalvadas às vedações do artigo 5º, incs. LI e LII, da Constituição.

Contudo, a Lei de Migração não exclui do seu escopo o brasileiro nato, não cabendo ao intérprete fazê-lo[4]. A lei proíbe a transferência de execução da pena quando o seu uso for uma tentativa de maquiar a extradição brasileiro nato, constitucionalmente vedada. Pelo mesmo motivo, também seria vedada a deportação (artigo 53) ou a expulsão (artigo 55, inc. I) quando correspondam à extradição não permitida, pois nesses casos, o brasileiro nato seria entregue ao Estado estrangeiro.

Já a transferência de execução da pena de brasileiro nato, condenado no exterior, para cumprimento no Brasil é o oposto da moeda. O brasileiro permanecerá em solo nacional e cumprirá a pena de acordo com as regras de execução penal brasileiras. Permite-se, assim, dar efetividade ao comando estrangeiro, sem violar a regra da não extraditabilidade.

Também há dúvida sobre a incidência temporal da Lei de Migração para crimes ocorridos antes da sua entrada em vigor (como é o caso do Robinho). A regra que prevê o mecanismo cooperacional de transferência de execução de pena não é uma norma penal material, que se sujeite à garantia constitucional da anterioridade da lei penal. Trata-se de norma instrumental, que deve ter ampliação imediata (CPP, artigo 2º). O que não poderia ter incidência, por exemplo, por configurar lei penal mais gravosa, seria uma regra de execução penal que agravasse os requisitos de progressão de regime, exigindo uma fração maior de cumprimento de pena.

Nessa linha, o STJ já homologou sentença estrangeira, sem tratado específico[5], com base no artigo 100 da Lei de Migração, para transferir execução da pena privativa de liberdade de brasileiros condenados em Portugal, pela prática de crimes anteriores à sua entrada em vigor[6].

Em resumo, entendemos que o procedimento cooperacional da transferência de execução da pena, previsto em tratado ou na lei de migração, pode ser utilizado para que brasileiros natos cumpram condenações estrangeiras no Brasil sem violar a vedação à não extradição e à irretroatividade da lei penal, quando homologada a respectiva sentença estrangeira pelo Superior Tribunal de Justiça. 

Contudo, afirmar a possibilidade de aplicação da Lei de Migração não significa afirmar que Robinho cumprirá a sua pena no Brasil.

Além dos requisitos do artigo 216-D do Regimento Interno do STJ e do artigo 102 da Lei de Migração (aparentemente cumpridos), a homologação da sentença italiana pode ser obstada com base na ofensa à soberania nacional, à dignidade da pessoa humana e à ordem pública, com base no artigo 17 da LINDB, no artigo 963, inc. IV, do Código de Processo Civil e no artigo 216-F do Regimento Interno do STJ, por exemplo, caso detectada violação grave ao devido processo legal no processo italiano.

Por fim, uma consideração sobre a alternativa à transferência de execução da pena defendida por vários autores, qual seja, a propositura de uma nova ação penal no Brasil, com fundamento na aplicação extraterritorial da lei penal brasileira, nos termos do artigo 7º, inciso II, alínea b, do Código Penal.

Apesar de teoricamente viável, cumpridos os requisitos da extraterritorialidade condicionada do seu § 2º, uma nova persecução penal também ocasionaria dificuldades que não podem ser ignoradas, a exemplo da revitimização da mulher, da complexidade na produção probatória e do risco de prescrição.

Uma nova persecução penal exigiria ainda uma discussão prévia sobre a garantia do ne bis in idem internacional, que não é resolvida, de forma coerente, pelos artigos 5º e 8º do Código Penal. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a proibição de dupla persecução penal internacional, fundada no artigo 14.7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no artigo 8.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos[7].

Não há soluções fáceis para compatibilizar a harmonia nas relações internacionais e a cooperação internacional, de um lado, e a soberania, a confiança e a estabilidade das situações jurídicas tuteladas pela lei penal brasileira, de outro. O caso Robinho coloca a discussão sobre a homologação de sentença penal condenatória na marca do pênalti. Aguardemos o apito do árbitro.

 


[1] Robinho pode receber alerta vermelho da Interpol, diz advogado. CNN, São Paulo, 22.01.2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/robinho-pode-receber-alerta-vermelho-da-interpol-diz-advogado/>. Acesso em: 12.03.2023.

[2] Outra hipótese de homologação de sentença estrangeira em matéria penal está prevista no art. 8º da Lei nº 9.613/1998, para decretar a perda de bens situados no Brasil, como efeito civil de condenação ocorrida no exterior. Já há precedentes: STJ, AgInt na SEC 10250/EX, Corte Especial, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 15.05.2019; SEC 10.612/EX, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, j. 18.05.2016.

[3] O Supremo Tribunal Federal que já consideraram tratados de extradição lex specialis em relação ao Estatuto do Estrangeiro (à época em vigor), devendo prevalecer em casos de omissão ou antinomia com à lei interna (STF, Ext 1476 qo, 2ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 09.05.2017, v.u.; STJ, Ext 1342/DF, 2ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 17.05.2016, v.u.).

[4] Nesse sentido: “se de fato fosse intenção do legislador estabelecer restrição adicional à transferência da execução penal, haveria disposição explícita nesse sentido”. STJ, AR 7287/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, j. monocrático em 5.9.2022.

[5] A Convenção sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa não versa sobre a transferência de execução da pena e sim sobre a transferência de pessoa condenada, outra espécie cooperacional prevista nos arts. 103 e 104 da Lei de Migração.

[6] STJ, AR 7287/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, j. monocrático em 5.9.2022; CR 15889, Rel. Min. Humberto Martins, j. monocrático em 19.04.2021; HDE 4035, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. monocrático em 18.06.2020; STJ, HDE 2093, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. monocrático em 21.05.2019.

[7] STF, HC nº 171118/SP, 1ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.11.2019, v.u.

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