Opinião

(In)decisão por empate em julgamentos criminais colegiados (parte 2)

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

23 de março de 2023, 6h03

Continuação da parte 1

Porém, agora em matéria penal, em setembro de 2020, a 2ª Turma do STF, embora na falta de previsão em lei, aplicou o favor rei do empate a uma reclamação relativa à competência da Justiça Eleitoral [1]. Após o empate no julgamento do agravo regimental na Reclamação 34.805/DF e proclamação do resultado pretendido pelo investigado/reclamante /agravante [2], o ministro Edson Fachin, que era seu relator e ficou vencido, suscitou questão de ordem para que o plenário do STF decidisse sobre as regras regimentais que regulam a matéria, que, como vimos, são os artigos 146, parágrafo único, e 150, §§1º a 3º do RISTF. Ficou assim ementado o julgado no qual se levantou a questão de ordem:

Spacca
"Penal e processo penal. Inquérito judicial. Crimes eleitorais conexos a crimes comuns. Competência da justiça eleitoral. Precedentes do STF. Inq 4435. Decisão do relator de remessa dos autos à justiça especializada. Arquivamento dos crimes eleitorais pelas instâncias inferiores, logo após o recebimento dos autos. Violação à autoridade da decisão proferida pelo STF. Empate na votação. Proclamação do resultado mais favorável à defesa, nos termos do artigo 146, parágrafo único, e artigo 150, §3º, do RISTF.
4. O empate na votação de recursos em matéria criminal deve ensejar a proclamação do resultado mais favorável à defesa, nos termos do artigo 146, parágrafo único, e artigo 150, §3º, do RISTF.
5. Provimento do recurso da defesa para julgar procedente a reclamação, com o reconhecimento da competência da Justiça Eleitoral, sem prejuízo da análise da questão do empate na votação em processos penais pelo Plenário do STF." [3]

Como relator da RCL 34.805/DF, o ministro Fachin havia negado a reclamação contra decisão da Justiça Eleitoral do Distrito Federal que declinara a competência para a Justiça Federal de São Paulo. Em agravo regimental, manteve sua posição. Nisto foi acompanhado pela ministra Cármen Lúcia. Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski deram provimento ao agravo regimental, tendo votado a favor da competência da Justiça Eleitoral do Distrito Federal. O quinto julgador, o ministro Celso de Mello, estava ausente.

Em virtude do empate por dois votos a dois no julgamento do agravo regimental na reclamação 34.805/DF, prevaleceu a competência da Justiça Eleitoral do DF. O ministro Fachin ficou vencido quanto à definição da questão processual (competência), tema que poderia esperar a recomposição da 2ª Turma, para que se decidisse, como é usual, com um colegiado de formação ímpar.

No particular, vale lembrar a lição de Adeodato e Bedê, quantos aos critérios que norteiam a regra de desempate:

Necessário, pois, definir um critério para desempate em órgãos colegiados, podendo ser o voto do presidente, o voto do decano da corte, o voto mais favorável ao réu, o voto do julgador mais idoso, o voto no sentido da prevalência da decisão recorrida, a prevalência de um voto médio, ou qualquer outro critério, mas essas escolhas não têm relação com o princípio do in dubio pro reo. Há pura discricionariedade legal ou regimental para essa definição [4].

No momento em que escrevo, a questão de ordem sobre o empate em julgamentos do STF está prevista para a pauta do dia 29 de março de 2023 no plenário da Corte Suprema. O tema esteva afetado ao plenário virtual do Tribunal. Com votação iniciada em 9 de dezembro de 2022, os ministros Edson Fachin (relator), Cármen Lúcia, Luiz Fux, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (presidente), no total de seis ministros, "resolviam a questão de ordem propondo que, nas deliberações colegiadas das Turmas, ressalvados os casos de habeas corpus e dos recursos ordinários em matéria criminal incluídos na competência recursal prevista no artigo 102, II, da Constituição Federal, os empates verificados em decorrência da ausência de algum dos integrantes do órgão colegiado, nas causas penais de competência originária do Supremo Tribunal Federal, sejam resolvidos mediante aplicação das normas regimentais previstas no artigo 150, §§1º e 2º, do RISTF, suspendendo-se o julgamento para a oportuna tomada do voto de desempate, ou, na impossibilidade (vaga, impedimento ou suspeição), convocando-se ministro da outra Turma para a resolução do non liquet". Esta é a solução regimental compatível com o CPP [5].

Os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, por sua vez, entenderam que, "independentemente da classe processual, a verificação de empate nos julgamentos, em matéria criminal, nas Turmas ou no Plenário da Corte, deverá ensejar a proclamação do resultado mais favorável ao investigado, réu ou recorrente, nos termos dos artigos 146, parágrafo único, e 150, §3º, ambos do RISTF, exceto nos julgamentos dos recursos extraordinários". Esta posição aponta para uma ampliação da regra de que o empate favorece o investigado ou réu.

 Já o ministro Nunes Marques "resolvia a questão de ordem no sentido de que, havendo empate nas votações, em sede de recurso de material criminal, como é o caso do agravo regimental (…) há de ser dada a interpretação mais favorável ao réu, nos termos do artigos 146, parágrafo único, e 150, §3°, ambos do RISTF e do princípio fundamental do in dubio pro reo". Por esse entendimento, mesmos nos recursos extraordinários, o empate beneficiaria o réu.   

Penúltimo a votar no plenário virtual, o ministro Gilmar Mendes pediu destaque para levar o tema a debate no plenário presencial da Corte. Nove ministros já haviam votado. O ministro André Mendonça não havia lançado sua posição no sistema eletrônico do STF.

O caso cipriota julgado em 5 de julho de 2022 pela Corte Europeia de Direitos Humanos pode ajudar no debate no plenário do STF sobre os empates em julgamentos criminais. Seria mais um exemplo de diálogo das cortes, tão saudável para as democracias e enriquecedor para os tribunais constitucionais.

Nos Estados Unidos, os empates na Suprema Corte do país  que, desde 1866 tem número ímpar de nove justices  são muito raros, correspondendo a apenas 164 episódios nos 90 anos que vão de 1925 a 2015 [6]. Se há um empate de quatro a quatro, pela falta de um dos ministros, as causas são resolvidas com a manutenção da decisão recorrida, inclusive em recursos criminais [7] ou mesmo em pedidos para impedir a execução da pena capital [8]. Para PIDOT, decisões por empate põem em xeque a credibilidade do Tribunal e minam a confiança pública no sistema judicial [9].

Tenho para mim que os empates nos julgamentos criminais devem ser evitados, notadamente nos órgãos superiores do Poder Judiciário. Esta, aliás, é a clara opção do legislador ao compor os tribunais com números ímpares, a exemplo dos onze ministros do STF, distribuídos em duas turmas de cinco juízes. Este é também o design do STJ, composto por trinta e três ministros, distribuídos em seis turmas de cinco julgadores.

Evitar o empate é também o propósito do artigo 78 da Lei 1.079/1950, que regula o processo de impeachment de governadores. Ao dispor sobre o tribunal misto, que é formado por cinco deputados estaduais e cinco desembargadores, o §3º deste artigo confere ao presidente do Tribunal de Justiça, que também preside o tribunal misto, o voto de Minerva, para desempate [10].

Porém, às vezes, o empate é inevitável, como se dá em casos de vacância, por morte ou aposentadoria, de impedimento, de suspeição, ou de licença de um dos julgadores. A criatividade regimental pode, ainda assim, privilegiar o princípio majoritário, que é o mais democrático em julgamentos colegiados. Não é por outro motivo que as cortes se reúnem em colegiados ímpares, o que acontece também com o conselho de sentença no tribunal do júri, que é formado por sete jurados.

Como se vê, as disposições processuais que determinam que o empate favorece o réu são meramente favores legais, não sendo inerentes ou essenciais ao devido processo legal. Nos dois exemplos que trouxemos do direito comparado isso também é verdade. As regras do tipo favor rei não têm qualquer relação intrínseca com o princípio da presunção de inocência  notadamente no recurso especial e no recurso extraordinário e nas revisões criminais , sequer como "norma de juízo" [11].

A regra de que o empate sempre favorece o réu também não se relaciona ao princípio in dubio pro reo, uma vez que, no âmbito de uma revisão criminal, por exemplo, tal presunção já foi desfeita no juízo penal definitivo, não havendo mais, desde o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, qualquer dúvida razoável em favor do réu. Naquele instante, o ônus da prova evidentemente se inverteu.

De mais a mais, nos recursos especial e extraordinário nos tribunais superiores, o reexame de provas é obstado por normas sumulares. O que neles se discute é o direito, e não é razoável que uma corte superior pretenda determinar a regra de direito vigente ou sua correta interpretação tão-somente pelo indeciso empate de seus integrantes.

Nos Estados Unidos, como relata PIDOT, sugeriu-se que um ministro substituto fosse designado, de forma ad hoc, para desempatar causas na Suprema Corte e garantir que cada caso tenha um resultado definitivo [12]. Aqui, o STF e o STJ têm previsões semelhantes no artigo 150, §2º, e nos artigos 55 e 56 de seus regimentos internos, respectivamente, regras que devem ser honradas, uma vez que compatíveis com o sistema processual brasileiro [13] e com o principio majoritário, inerente a democracias.

 Mesmo fora das hipóteses de habeas corpus  nos quais há impugnação de abusos estatais  e dos recursos criminais ordinários  nos quais se discutem plenamente fatos, provas e normas , o empate deve sempre beneficiar o réu? "Decidir por empate" é uma expressão contraditória; sua prática generalizada, para além de situações tópicas, traz insegurança jurídica e mina a confiança da sociedade no sistema de justiça. No julgamento de revisões criminais, recursos especiais, recursos extraordinários e reclamações, a (in)decisão pro reo por empate equivale a um não julgamento, não estando fundada em nenhuma premissa fundamental.

A exoneração por empate não é uma medida inerente ao devido processo legal [14]. Trata-se, como o nome já diz, de um favor [15], de uma concessão político-criminal do Estado em certas circunstâncias (de uma opção, portanto), e não de um elemento essencial ao fair trial. A definição dos grandes temas constitucionais/penais, nas instâncias máximas de nosso sistema judiciário, e a determinação de questões estruturantes em matéria criminal exigem um pouco mais do que a sensaboria, a indecisão e a insipidez de um empate.


[1] Isso já havia ocorrido pelo menos uma vez em reclamação. Cf. STF, 2ª Turma, Rcl 20.132 AgR-segundo, relator ministro Teori Zavascki, Red. p/ o acórdão ministro Gilmar Mendes, j. em 23/02/2016.

[2] STF, RCL 34.805 AgR, relator ministro Edson Fachin, relator p/ acórdão ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 01/09/2020.

[3] STF, RCL 34.805 AgR, relator ministroEdson Fachin, relator p/ acórdão ministroGilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 01/09/2020.

[4] ADEODATO, João Maurício; BEDÊ JR., Américo. A inexistência de uma única resposta correta e o julgamento não unânime no processo penal. In: CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano (org.). Filosofia e direito: ética, hermenêutica e jurisdição. Vitória: Seção Judiciária do Espirito Santo,2014.

[5] STF, Pleno, RCL 34.805 AgR-QO, relator ministro Edson Fachin, Sessão Virtual de 09/12/2022 a 16/12/2022, julgamento interrompido.

[6] PIDOT, Justin R. Tie votes in the Supreme Court (February 13, 2016). 101 Minnesota Law Review 245 (2016), U Denver Legal Studies Research Paper nº 16-07. Disponível em:  http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2732192 . Acesso em: 21 mar. 2023, pp. 245, 253 e 297.

[7] ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court, Biggers v. Tennessee, 390 U.S. 404 (1968). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/390/404/. Acesso em: 22 mar. 2023.  Tratava-se de uma condenação criminal por estupro. No acórdão da SCOTUS consta: "the judgment below is affirmed by an equally divided Court", ou seja, decisão por empate de quatro a quatro votos, pois o ministro Thurgood Marshall não participou do julgamento.

[8] ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court, Beazley v. Johnson, 533 U.S. 969 (2001). Disponível em: https://www.supremecourt.gov/. Acesso em: 22 mar. 2023. Em 1994, o réu Napoleon Beazley foi condenado à pena de morte pela Justiça do Texas pela prática do crime de latrocínio. O autor, que tinha 17 anos na data do fato, pediu a suspensão de sua execução. A vítima era pai de um juiz federal. Os justices Antonin Scalia, David Souter e Clarence Thomas se deram por suspeitos, e a data da execução foi mantida por três votos a três. Paul Stevens, Stephen Breyer e Ruth Bader Ginsberg suspendiam a execução da pena de morte, e os justices Anthony Kennedy, Sandra Day O'Connor e o presidente William Rehnquist a negavam. Meses depois o writ of certiorari foi negado. Em 2005, no caso Roper vs. Simmons, por cinco votos a quatro, a Suprema Corte baniu a pena de morte para menores de 18 anos. Essa decisão chegou tarde para Beazley. Ele foi executado por injeção letal em 2002.

[9] PIDOT, Justin R. Op. cit., pp.  248, 292 e 299.

[10] Lei 1.079/1950: Artigo 78. O Governador será julgado nos crimes de responsabilidade, pela forma que determinar a Constituição do Estado e não poderá ser condenado, senão à perda do cargo, com inabilitação até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da justiça comum. (…) §3º Nos Estados, onde as Constituições não determinarem o processo nos crimes de responsabilidade dos Governadores, aplicar-se-á o disposto nesta lei, devendo, porém, o julgamento ser proferido por um tribunal composto de cinco membros do Legislativo e de cinco desembargadores, sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça local, que terá direito de voto no caso de empate.

[11] Em sentido contrário, cf. MORAES, Mauricio Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 621.

[12] PIDOT, Justin R.  Op. cit., p. 249.

[13] RISTJ: "Artigo 56. Em caso de vaga ou de afastamento de ministro, por prazo superior a trinta dias, poderá ser convocado Juiz de Tribunal Regional Federal ou Desembargador, sempre pelo voto da maioria absoluta dos membros da Corte Especial".

[14] CtEDH. Case of Loizides v. Cyprus, Judgment, 5 July 2022.

[15] Cuidando da "presunção que favorece acusados de crimes" (presumption favoring criminal defendants), REYNOLDS e YOUNG argumentam que, se o ordenamento jurídico norte-americano "tem uma tendência interna a favor da constitucionalidade de certos atos estatais, também tem uma inclinação clara a favor de réus criminais". Cf. REYNOLDS, William L.; YOUNG, Gordon G. Equal division in the Supreme Court: history, problems, and proposals, 62 N.C. L. REV. 29, 38– 41 (1983).  Disponível em:   https://scholarship.law.unc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2933&context=nclr. Acesso em: 23 mar. 2023, pp. 51-52.

Autores

  • é doutor em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i) e editor do site www.vladimiraras.blog (Blog do Vlad).

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