Opinião

(In)decisão por empate em julgamentos criminais colegiados (parte 1)

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

22 de março de 2023, 15h15

O empate no julgamento de um processo criminal por um órgão colegiado sempre beneficia o réu?

Spacca
No caso Loizides vs. Chipre (2022), a Corte Europeia de Direitos Humanos (CtEDH) entendeu que a manutenção da decisão recorrida, diante de um empate no julgamento de um recurso criminal interposto pelo réu, não viola o artigo 6.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Eis a ementa traduzida do inglês:

"Artigo 6, §1º – Julgamento justo. Indeferimento suficientemente fundamentado de uma apelação criminal, como consequência do empate no julgamento, em virtude da não superação pelo apelante do ônus da prova, tal como exigido pela legislação local. Julgamento por empate não configura, de per si, uma violação ao artigo 6º." [1]

Esse julgamento da CtEDH pode balizar discussões no Brasil sobre as consequências de decisões por empate em tribunais, no âmbito recursal ou no curso de reclamações e de recursos não ordinários.   

Uma lei cipriota de 1960 dispõe que, quando o Supremo Tribunal daquele país julgar com um número par de juízes e houver empate na votação, deve ser mantida a decisão recorrida, e o acórdão será proferido contra a parte que tinha o ônus da prova no recurso [2].

A CtEDH constatou que, conforme a jurisprudência local, o ônus de provar as razões para anular uma condenação em recurso criminal cabe ao réu recorrente. Ao Ministério Público cabe o ônus de provar que, apesar de ter havido um erro de julgamento da 1ª instância, este erro não terá sido substancial [3].

Assim, para a CtEDH, um julgamento de resultado condenatório, por empate, em matéria criminal, não constitui de per si uma violação do artigo 6.1 da Convenção Europeia. No entanto, de qualquer modo é necessário que o acórdão resultante deste empate seja suficientemente fundamentado para permitir ao recorrente compreender sua razão de ser e eventualmente impugná-lo.

Andreas Loizides fora condenado a 2 anos de prisão por homicídio culposo, no contexto da explosão da base naval Evangelos Florakis, em Larnaca, evento que matou 13 pessoas no dia 11 de julho de 2011. Após esgotar os recursos internos, Loizides buscou a CtEDH.

A causa contra Chipre foi decidida pela Corte Europeia em Estrasburgo por quatro votos a três, com improcedência do requerimento feito por Loizides. Os votos divergentes constam da sentença europeia [4].

O juiz Georgios Serghides, ele próprio um cipriota, discordou da posição majoritária de seus colegas da CtEDH, por entender que a regra probatória que mantém a decisão recorrida em caso de empate prejudica o direito do acusado de acessar um tribunal recursal.

Segundo o juiz Serghides, o empate na votação impediu o Supremo Tribunal de Chipre de chegar a uma decisão final sobre a causa. Ele também pontuou que a Suprema Corte cipriota não deveria ter-se permitido funcionar com um número par de juízes, o que é um alerta relevante para todos os colegiados dotados de competência penal.

Os juízes Pavli, da Albânia, e Krenc, da Bélgica, divergiram da maioria pois, para eles, faltou fundamentação ao acórdão cipriota. Mas ambos entenderam que o empate no julgamento de recursos criminais por tribunais apicais de um país não viola o direito de acesso à justiça, decorrente do art. 6º da Convenção Europeia.

Também concordamos com a maioria de que um empate em recursos perante um tribunal superior por si só não implica limitação de acesso à Justiça, com fundamento no mesmo dispositivo convencional [5].

Tal julgado, que se refere aos limites das decisões de tribunais superiores (apex courts), nos lembra do debate no STF [6] e no Congresso Nacional [7] sobre o efeito do empate no julgamento de processos originários ou de recursos criminais nas instâncias superiores da Justiça criminal brasileira e também em reclamações. A tradição forense, para os habeas corpus (HCs), de que o empate beneficia o paciente, é um favor rei muito estável no Brasil e que não deve ser questionada, sendo ocasional, já que os tribunais organicamente costumam julgar em formações ímpares. Porém, tal favor libertatis vem sendo ampliado pela 2ª Turma do STF, para além de suas fronteiras usuais e sobre isso é preciso refletir.

Segundo o artigo 615 do CPP, vigente há mais de 81 anos, os tribunais decidem por maioria de votos. Segundo seu §1º, se houver empate no julgamento de recursos (frise-se, recursos), "se o presidente do tribunal, câmara ou turma, não tiver tomado parte na votação, proferirá o voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu". Ou seja, o empate favorece o réu nos recursos criminais ordinários, sempre que o presidente do colegiado não tiver exercido o voto de desempate. Não se trata de voto duplo, porém. É o voto de Minerva, único, para desempatar [8], como resultado da decisão politico-criminal de que não deve haver empates em órgãos colegiados, pois tais indeliberações corresponderiam a um non liquet.

Para os Habeas Corpus e os recursos em Habeas Corpus (RHC), a solução legal é a mesma dos recursos ordinários, como se vê no parágrafo único do artigo 664 do CPP [9]. Constituindo uma tradição no processo penal brasileiro, delas deriva a previsão regimental, constante do parágrafo único do artigo 146 do RISTF, que só admite o empate como favorável ao réu nos casos de habeas corpus e nos recursos em habeas corpus [10].

De fato, não se tratando de HC ou RHC, em caso de empate, considerar-se-á "julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta". Tal regra é complementada por outro dispositivo regimental, o artigo 150, §1º, do RISTF, que trata restritivamente o fenômeno do empate nos colegiados do STF. De modo a evitá-lo, a Turma deve adiar a decisão até que o ministro faltante integre ou volte a integrar o colegiado [11].

O §3º do artigo 150 do RISTF não deixa dúvidas de que o empate fará prevalecer a decisão mais favorável ao paciente do HC ou ao réu nos recursos criminais, ressalvado expressamente o recurso extraordinário, no qual não há reexame de provas, devido à Sumula 279 do STF. Porém, nos demais feitos de competência do STF, o empate se resolve mediante o procedimento previsto nos §§1º e 2º do artigo 150 do RISTF: a) primeiramente, faz-se o adiamento da sessão; b) depois, findo um certo prazo, ocorre a convocação de um ministro de outra turma, por antiguidade, para recompor a desfalcada [12].

Para o mandado de segurança originário, o artigo 205, parágrafo único, do RISTF tem regra específica, segundo a qual, em caso de empate, "havendo votado todos os ministros, salvo os impedidos ou licenciados por período remanescente superior a três meses, prevalecerá o ato impugnado".

Seguindo este padrão, no julgamento do RE 460.320 ED, sobre matéria tributária não penal, o plenário da Suprema Corte negou provimento ao recurso extraordinário da União, nos termos do art. 146 do Regimento Interno do STF, em razão do empate na votação [13].

Empate no julgamento do apelo extremo interposto pela União. Proclamação de solução contrária à pretendida pela recorrente (artigo 146 do RISTF). 1. Trata-se de controvérsia, tendo presente a Convenção entre o Brasil e a Suécia para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre a Renda (Decreto nº 77.053/76), acerca da isenção, garantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), do imposto de renda retido na fonte incidente sobre dividendos distribuídos por empresas nacionais sediadas no Brasil a sociedade da Suécia residente naquele país, todas citadas nos autos. Verificação de empate no julgamento do recurso extraordinário da União interposto contra acórdão do STJ [14].

Continua na parte 2

 


[1] CtEDH: Article 6, §1 (criminal) • Fair hearing • Sufficiently reasoned dismissal of criminal appeal, consequent on a tie vote, based on applicant's failure to discharge his burden of proof as required by domestic law • Tied vote not constituting per se a violation of Article 6.

[2] CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Loizides v. Cyprus, Judgment, 5 July 2022. Disponível em: hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-2181…{%22itemid%22:[%22001-218118%22]}. Acesso em: 7 jul. 2022. Vide os §§42 e 43 da sentença.

[3] Case of Loizides v. Cyprus, Judgment, 5 July 2022.   

[4] Case of Loizides v. Cyprus, Judgment, 5 July 2022.

[5] Pavli; Krenc. In: CtEDH. Case of Loizides v. Cyprus, Judgment, 5 July 2022. No original: "We also concur with the majority that a tie vote situation in appeals before an apex court does not per se raise any issues of access to court under the same Convention provision".

[6] Por exemplo: STF, Inq 4451 AgR, 2ª Turma, relator ministro Cármen Lúcia, Red. p/ o acórdão ministro Ricardo Lewandowski, j. em 03/03/2020, e outros, quase sempre com foco no habeas corpus. No STF, 2ª Turma, Rcl 20.132 AgR-segundo, relator ministro Teori Zavascki, Red. p/ o acórdão ministro Gilmar Mendes, j. em 23/02/2016, o empate favoreceu o recorrente em agravo regimental em reclamação, dada a ausência ocasional do ministro Celso de Mello na turma.

[7] Vide, por exemplo, o projeto de Lei 3453/2021, de autoria do Deputado Federal Rubens Pereira Jr, que pretende introduzir um novo artigo 41-A na Lei 8.038/1990, garantindo que, "em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados", o empate leve à prevalência da decisão mais favorável ao imputado.  

[8] Os artigos 21, inciso VI e 175, inciso III, do Regimento Interno do STJ (RISTJ) prevê que o presidente vota para desempatar os julgamentos na Corte Especial, que tem competência recursal e originária.

[9] "CPP: Artigo 664. Recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte. Parágrafo único. A decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente".

[10] RISTF: "Artigo 146. Havendo, por ausência ou falta de um Ministro, nos termos do artigo 13, IX, empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta. Parágrafo único. No julgamento de habeas corpus e de recursos de habeas corpus proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente". O artigo 181, inciso IV, do RISTJ tem regra idêntica.

[11][11] RISTF: "Artigo 150. O Presidente da Turma terá sempre direito a voto.  §1º Se ocorrer empate, será adiada a decisão até tomar-se o voto do ministro que esteve ausente. §2º Persistindo a ausência, ou havendo vaga, impedimento ou licença de ministro da Turma, por mais de um mês, convocar-se-á ministro da outra, na ordem decrescente de antiguidade. §3º Nos habeas corpus e recursos em matéria criminal, exceto o recurso extraordinário, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu".

[12] Aparentemente essa prática regulada regimentalmente foi abandonada pelo STF. No STJ, há regra semelhante no parágrafo único do artigo 55 do RISTJ. Nesta Corte Superior, usualmente, são convocados desembargadores de tribunais de justiça e de tribunais regionais federais para a recomposição temporária de seções e turmas de julgamento, nos termos do art. 56 do RISTJ.

[13] STF, RE 460.320 ED, relator ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. em 21/02/2022.

[14] STF, RE 460.320 ED, relator ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. em 21/02/2022.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i) e editor do site www.vladimiraras.blog (Blog do Vlad).

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