Observatório Constitucional

O caso Baraona Bray vs. Chile, o Direito Penal e a liberdade de expressão

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18 de março de 2023, 8h00

A inafastável tensão entre o Direito Penal e a liberdade de expressão voltou a ser objeto de atenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos ("Corte IDH" ou "Corte") no caso Baraona Bray vs. Chile, sentenciado em 24 de novembro de 2022 e publicado esse mês. Essa temática se faz presente na jurisprudência interamericana há mais de 20 anos e, neste último julgamento, logrou histórico avanço na restrição do acesso à via penal como meio de responsabilização ulterior por afrontas à honra individual de funcionários públicos.

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O caso centrou-se na responsabilidade internacional do Estado chileno pela persecução e condenação criminal do advogado ambientalista Carlos Baraona Bray pelo crime de injúria grave [1], em decorrência de declarações proferidas na imprensa em 2004 a respeito da conduta de um senador chileno. Em entrevistas à mídia local, o advogado acusou o parlamentar de utilizar sua influência para favorecer o corte ilegal do alerce, árvore endêmica e em extinção no Chile.

Em sede de ação penal instaurada a partir de queixa-crime do ofendido, a conduta do sr. Baraona Bray foi qualificada como injúria grave, por supostamente atribuir "vício moral" ao senador, razão pela qual lhe foi cominada a pena de 300 dias de prisão, além do pagamento de multa. A despeito dos recursos interpostos, a condenação foi mantida pela Justiça chilena.

O caso foi submetido à Corte IDH pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2020. Ao fim da instrução, o Estado chileno foi condenado pela violação (a) do direito à liberdade de expressão (artigos 13.1 e 13.2 da Convenção Americana), na medida em que o processo e a condenação da vítima não observaram os standards da Corte sobre responsabilização ulterior por abusos no exercício do referido direito; (b) do princípio da legalidade (artigo 9 da Convenção Americana em relação ao artigo 13 do mesmo diploma normativo), já que as normas que previam o delito de injúria grave não delimitavam adequadamente a conduta típica, favorecendo o arbítrio do poder público no manejo do ius puniendi; e (c) do direito à proteção judicial (artigo 25 da Convenção Americana), sob o entendimento de que os recursos interpostos pela vítima não foram efetivos, em virtude do judiciário chileno não ter contemplado adequadamente o alcance do direito à liberdade de expressão.

O principal destaque da sentença, contudo, residiu no reconhecimento de que a persecução penal de indivíduos por eventuais abusos no exercício da liberdade de expressão não é compatível com a Convenção Americana quando destinada a proteger a honra de funcionários públicos no exercício da função contra a imputação de ofensas ou fatos ofensivos que não constituem crime. Assim sustentou a Corte:

"129. En vista de lo anterior, este Tribunal considera necesario continuar en la senda protectora del derecho a la libertad de expresión reconocido en el artículo 13 de la Convención, en el entendido de que, cuando se trata de delitos contra el honor que implican ofensas e imputación de hechos ofensivos, la prohibición de la persecución criminal no debe basarse en la eventual calificación de interés público de las declaraciones que dieron lugar a la responsabilidad ulterior, sino en la condición de funcionario público o de autoridad pública de aquella persona cuyo honor ha sido supuestamente afectado.

130. De esta forma, se evitaría el efecto amedrentador ('chilling effect') causado por la iniciación de un proceso penal, así como sus repercusiones en el disfrute de la libertad de expresión, y el debilitamiento y empobrecimiento del debate sobre cuestiones de interés público. Con ello, se salvaguarda de forma efectiva el derecho a la libertad de expresión, ya que, al descartar de forma inmediata la posibilidad de iniciar un proceso penal, se evita el empleo de este medio para inhibir o desalentar las voces disidentes o las denuncias contra funcionarios públicos."

Direito penal e direito à liberdade de expressão na jurisprudência da Corte IDH
O novo standard firmado pela Corte Interamericana não constitui produto de decisão isolada, mas é resultado de paulatina construção jurisprudencial no sentido de ampliação do mandato protetivo da Convenção Americana sobre a livre manifestação de discursos e opiniões a respeito de questões de interesse da coletividade.

O tema se faz presente na jurisprudência contenciosa da Corte desde 2001, com o julgamento dos casos Olmedo Bustos ("La última tentación de Cristo") vs. Chile e Ivcher Bronstein vs. Peru. Desde esse último, a Corte semeou o entendimento de que o debate sobre assuntos de interesse público encontra reduzida margem para imposição de restrições pelo Estado. Alguns anos depois, no caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica (2004), a Corte estabeleceu alguns dos principais vetores que norteariam sua evolução jurisprudencial sobre o emprego do direito penal como mecanismo de coibição do direito à liberdade de expressão. Naquela oportunidade, o tribunal salientou que figuras públicas e agentes estatais se sujeitam voluntariamente a maior escrutínio sobre suas condutas, o que pressupõe maior tolerância à crítica e, por conseguinte, menor abertura para a persecução penal em virtude de opiniões que lhes sejam contrárias, desagradáveis ou que questionem sua atuação.

Seguindo esse entendimento, em ocasiões posteriores a Corte destacou que "o Direito penal é o meio mais restritivo e severo para estabelecer responsabilidades a respeito de uma conduta ilícita" [2], de forma que a submissão de um indivíduo a processo criminal em razão de suas declarações sobre temas relevantes para a sociedade poderia constituir restrição indireta ao direito à liberdade de expressão pelos efeitos dissuasórios que provoca sobre a crítica pública.

Nesses cânones, o Tribunal Interamericano consolidou o precedente de que a resposta penal aos abusos no exercício do direito à liberdade de expressão só seria admissível em circunstâncias absolutamente excepcionais, isto é, quando for estritamente indispensável para atender a uma necessidade social imperiosa.

Mais recentemente, no caso Álvarez Ramos vs. Venezuela (2019), a Corte logrou importante avanço ao enunciar que "no caso de discurso protegido por seu caráter de interesse público, como aqueles referentes às condutas de funcionários públicos no exercício de suas funções, a resposta punitiva do Estado mediante o direito penal não é convencionalmente procedente". Dois anos depois, tal abordagem foi reiterada no caso Palacio Urrutia vs. Equador (2021).

Os avanços no caso Baraona Bray vs. Chile
Essa progressiva trajetória de estreitamento das portas para a persecução penal, faceta mais severa do poder punitivo estatal, desaguou na recém-publicada sentença do caso Baraona Bray vs. Chile.

A sentença emanada no referido caso inova ao ir além dos standards atualmente vigentes no âmbito interamericano quanto ao uso do direito penal para salvaguardar a honra em prejuízo da liberdade de expressão, especificamente quando estiverem em jogo declarações que tratem de questões de interesse público.

Sua contribuição reside na fixação de critérios mais objetivos, que possibilitem de imediato afastar a incidência de medidas de natureza criminal nas situações que envolvem a proteção penal da honra de funcionários públicos contra a imputação de ofensas ou fatos ofensivos que não constituem prática de crime. Isso porque, conforme a Corte IDH vem reconhecendo há longa data, o efeito intimidador da lei penal é limitador significativo do exercício da liberdade de expressão.

Nesse aspecto, o aludido efeito inibidor ou amedrontador — também conhecido como chilling effect — é observado não só quando há condenação, mas desde a mera possibilidade de persecução em razão da existência de tipo penal na legislação nacional, se agravando na medida em que o processo penal tem seguimento.

Portanto, entendeu a Corte que era necessário minimizar o efeito amedrontador o máximo possível em tais casos, garantindo assim a devida proteção do direito à liberdade de expressão, basilar ao Estado Democrático de Direito. Conforme aduzido na sentença do caso Baraona Bray, a proteção da honra por meios penais não se mostra em conformidade com a Convenção quando estiverem em jogo questões de interesse público.

Assim, consignou a Corte que é imprescindível que se definam critérios objetivos que permitam de pronto afastar a aplicabilidade de medidas penais ao buscar fixar responsabilidade ulterior relativa a declarações que versem sobre temas de interesse público, de modo a impedir que estas possam ser usadas para desencorajar o livre exercício do direito à liberdade de expressão e, assim, impedir que condutas que vão de encontro ao interesse da população sejam submetidas ao escrutínio público. Tais critérios, in casu, residem na condição do ofendido de funcionário público no exercício da função.

É necessário destacar, todavia, duas importantes ressalvas a respeito do novo entendimento da Corte Interamericana.

A primeira delas é a de que a vedação à proteção penal da honra de funcionários públicos não abarca crimes contra a honra cuja tipicidade resida em imputação de fato delitivo a outrem — independentemente da nomenclatura adotada para se referir a tais tipos penais nos diversos ordenamentos jurídicos que compõem o Sistema Interamericano — mas tão somente aqueles que, nas palavras da Corte IDH, implicam a atribuição de ofensas e de fatos ofensivos. Isso porque, além de não estarem compreendidas no marco fático do caso analisado pelo tribunal, condutas que envolvem atribuição falsa de crimes constituem afetação mais grave à honra dos indivíduos e exigiriam reflexão mais aprofundada por parte da Corte, em sede própria.

A segunda é a de que o novo standard da Corte IDH não importa em desproteção da honra dos funcionários públicos, mas sim que sua tutela deve se dar por vias menos restritivas ao direito à liberdade de expressão que a drástica alternativa fornecida pelo direito penal. Como aduziu o Tribunal Interamericano: "Eventualmente, a conduta jornalística poderia gerar responsabilidade em outro âmbito jurídico, como o cível, ou a retificação ou desculpas públicas, por exemplo, em casos de eventuais abusos ou má-fé" [3].

Conclusões
A sentença do caso Baraona Bray vs. Chile resulta de um longo processo de evolução jurisprudencial e amplia significativamente o âmbito de proteção convencional do direito à liberdade de expressão e, mais especificamente, do direito de criticar e fiscalizar o poder público e seus titulares. Nesse sentido, constituiu avanço rumo à paulatina redução da margem de recurso ao direito penal como via de restrição à livre manifestação de discursos e opiniões, cristalizando o reconhecimento de que a proteção criminal da honra de funcionários públicos, salvo na hipótese de falsa atribuição de crime, não encontra guarida na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Embora tenha sido proferido em caso envolvendo o Chile, o precedente firmado no caso Baraona Bray soma-se ao patrimônio jurisprudencial da Corte IDH como res interpretata, vinculando não apenas o Estado réu. Desse pressuposto decorre o dever de acolhimento e aplicação do novo entendimento como parâmetro para o exercício do controle de convencionalidade de normas e decisões a nível interno.

 


[1] No Chile, o crime de "injúria grave" está previsto no art. 417 do Código Penal e compreende a imputação de (1) crimes que não podem ser processados de ofício, (2) crimes já prescritos ou apenados, (3) vício moral, (4) declarações consideradas afrontosas e (5) injúrias que racionalmente mereçam a qualificação de graves em função do estado, dignidade e circunstâncias do ofendido e do ofensor.

[2] Corte IDH. Ricardo Canese vs. Paraguai (2004), §104; Corte IDH. Kimel vs. Argentina (2008), §76.

[3] Corte IDH. Álvarez Ramos vs. Venezuela (2019), §124. Tradução do autor.

Autores

  • é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, doutor em Direito pela USP, professor de Direito Público, sócio-fundador de Mudrovitsch Advogados, integrou a comissão de juristas instituída para elaboração de anteprojeto da nova Lei de Improbidade Administrativa.

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