Criação de Precedentes

Ao que tudo indica, tese em Habeas Corpus é tendência que veio para ficar

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17 de março de 2023, 8h48

Com o aumento do número de Habeas Corpus e as dificuldades envolvendo os julgamentos de recursos extraordinários e especiais no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, o uso do remédio heroico para o estabelecimento de precedentes na seara penal é uma tendência que, ao que tudo indica, veio para ficar.

Gervásio Baptista/SCO/STF
Supremo pode fixar tese em HC contra
as buscas pessoais discriminatórias
Gervásio Baptista/SCO/STF

No mês passado, por exemplo, o STF começou a julgar o caso de um homem preso por tráfico de drogas depois de ser flagrado com 1,53 grama de cocaína. O relator do caso, ministro Edson Fachin, votou por conceder o HC e fixar a tese de que revistas policiais motivadas pela cor da pele do alvo (no caso concreto, um homem negro) tornam as provas nulas. Na ocasião, ele afirmou que "ainda que seja uma ação de Habeas Corpus, a fixação de tese em writ não é estranha ao Plenário" da corte. 

A maior parte dos votos dados até o momento diverge do ministro, rejeitando o HC. Os magistrados, no entanto, mostraram-se abertos a estabelecer uma tese contra as revistas discriminatórias, ainda que ela não se aplique ao caso concreto. 

Episódios assim não são uma novidade no Supremo e no STJ. Estudiosos do assunto e ministros das cortes superiores consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que a definição de jurisprudência em matéria penal prioritariamente por meio de HCs já é uma realidade, havendo ou não a fixação de teses.

O tema é espinhoso. Há quem diga que esse é um bom caminho, mas também há quem considere o HC um meio impróprio para a consolidação de precedentes qualificados. 

Segundo Sebastião Reis Júnior, ministro do STJ, hoje o Direito Penal é muito mais debatido em HCs do que em recursos especiais e extraordinários. "Nos últimos anos, o número de HCs tem crescido. E com as dificuldades de conhecimento e processamento dos REsps, a discussão penal e processual se concentra predominantemente nos HCs", disse ele. 

"Basta ver que as últimas decisões relevantes em matéria penal foram proferidas em HCs", concluiu o ministro, em referência aos julgamentos que decidiram que não é crime o plantio de maconha para fins medicinais e que o reconhecimento fotográfico não serve para embasar condenações, além do que determinou restrições às buscas domiciliares a partir de denúncias anônimas. 

Também há exemplos no STF. Em novembro do ano passado, a corte firmou em HC a tese de que o réu delatado deve apresentar suas alegações finais após a manifestação da defesa do delator. Em outro julgamento, de 2018, a 2ª Turma da corte concedeu HC coletivo para que todas as presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos sejam colocadas em regime domiciliar, o que, a partir daí, passou a ser seguido em parte pelas demais instâncias, de início com alguma resistência dos tribunais

Para o constitucionalista Lenio Streck, colunista da ConJur, "não tem nenhum sentido" fixar teses em HC. Segundo ele, precedentes não devem ser firmados para definir como serão julgados casos futuros, e o Judiciário não deve "legislar".

"Precedentes jamais são feitos para o futuro. O Judiciário não faz ato normativo para o futuro. Jamais um Habeas Corpus poderia ser motivo para formação de uma 'lei geral' para tratar de casos que ainda não aconteceram. Mas confesso que essa batalha está perdida. O STF e o STJ compraram uma tese sobre as teses. E o Brasil se transformou no único país em que precedentes são feitos para o futuro. Qual é a regra no mundo? Simples: o Judiciário cuida do passado, o Legislativo cuida do futuro."

Efeito limitado
Segundo os ministros e os especialistas consultados, a fixação de teses em HC e em recursos em HC se deve principalmente a dois fatores: a tramitação prioritária, em especial quando envolve pessoas presas, e as limitações para interposição e processamento de recursos especiais e extraordinários. 

O problema da tese em Habeas Corpus é que o mecanismo tem efeitos limitados. Não é possível produzir provas, nem entrar no mérito da ação penal atacada. O acórdão não pode ser usado como paradigma para a interposição de recurso especial (no STJ) ou extraordinário (no STF), nem servir como base para reclamações. 

Para a advogada Danyelle Galvão, que escreveu o livro "Precedentes judiciais" (Editora Juspodivm, R$ 74,90), é possível dizer, "ao menos em tese", que o Código de Processo Civil de 2015 permite a interpretação de que as decisões colegiadas em HC e em recurso em HC têm efeito vinculante, apesar das limitações do remédio heroico. 

Ela usa como argumento o artigo 927 do CPC, segundo o qual decisões proferidas pelo Plenário ou órgão especial dos tribunais devem ser seguidas pelas instâncias inferiores. O dispositivo não cita os Habeas Corpus, mas, segundo a especialista, é possível entender que sua aplicação vale também para o remédio heroico. 

"Essa hipótese pode ser transportada ao processo penal quando se fala de Habeas e recurso em Habeas. A questão é: se para o Processo Civil a estabilidade de jurisprudência e o estabelecimento de padrões decisórios são importantes, quando falamos de Processo Penal, isso ganha ainda mais relevância, uma vez que estamos cuidando de liberdade e de tratamento isonômico de acusados que têm situações fáticas e jurídicas coincidentes." 

A constitucionalista Vera Chemim discorda. Para ela, em nenhuma hipótese é possível argumentar que teses em Habeas Corpus têm efeito vinculante. O que há, afirma, é um precedente de natureza penal que serve no máximo para orientar as decisões dos juízos e tribunais inferiores. 

"A extensão ou o alcance de uma tese eventual (a depender da relevância ou de muitas divergências entre tribunais superiores acerca de um determinado tema) fixada no âmbito de um HC é limitado ao caso concreto em julgamento." 

"A despeito da relevância do Habeas Corpus, enquanto ação constitucional que tenta garantir a liberdade ao paciente (preventivamente ou repressivamente), há de se observar um certo limite para a sua aplicação, o que equivale a remeter à cautela em seu julgamento no controle difuso de constitucionalidade, sob risco de se alargar o seu alcance, quando se trata de elaboração de teses que, a rigor, devem ser fixadas em sede de repercussão geral e nas ações de controle abstrato de constitucionalidade", conclui Vera Chemim. 

Saídas possíveis
Durante o IV Encontro Nacional de Precedentes Qualificados, o ministro Rogério Schietti, do STJ, defendeu a possibilidade de o HC ter um status similar ao dos recursos especiais.

Com isso, disse ele, "poderíamos construir um entendimento de que ele (o Habes Corpus) também forma precedentes qualificados, com o mesmo efeito vinculante de um recurso repetitivo". "É questão de construirmos uma normatização que corresponda à evolução e à importância desse remédio heroico." 

Para Danyelle Galvão, há outras saídas para fortalecer decisões colegiadas em matéria penal. Ela cita, por exemplo, a utilização do CPC para instaurar incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) quando há muitos casos sobre um mesmo tema jurídico, ou os incidentes de assunção de competência (IAC) quando há matéria de relevância social, política, econômica ou jurídica.

"Esses dois incidentes têm previsão legal e regimental, e estão listados entre as decisões vinculantes do artigo 927 (do CPC). Há a escolha de um ou mais casos 'piloto', que podem ser inclusive em sentidos opostos, mas sobre a mesma matéria jurídica, e o colegiado ampliado (no caso do STJ, a 3ª Seção, e no Supremo, o Plenário) fixam a tese, que será replicada aos casos terceiros", explica ela.

A advogada pondera, no entanto, que o ideal seria existir uma disciplina legal específica sobre os processos penais, para que não fosse mais necessário recorrer ao CPC para sustentar a necessidade de estabilização de jurisprudência.

Exageros 
Apesar da força que os HCs têm, o uso exagerado do mecanismo está, segundo ministros, dificultando o trabalho. Em agosto do ano passado, a 6ª Turma do STJ chegou a fazer um apelo para que a advocacia atuante na corte adotasse uma postura mais responsável na impetração dos pedidos e cogitou acionar a OAB. 

Há, segundo a turma, impetrações seguidas de HCs contra a mesma decisão, sobre a mesma questão jurídica e com os mesmos pedidos. Essa postura, no entendimento dos ministros, gera tumulto no dia a dia dos gabinetes, que precisam filtrar os pedidos para saber o que já foi decidido e evitar pronunciamentos conflitantes.

A restrição do uso e do cabimento do HC, no entanto, é não apenas controversa, mas também objeto de grande resistência. Apesar dos exageros, todas as tentativas de limitar sua utilização foram derrubadas ou tornaram-se tiros que saíram pela culatra.

A mais relevante delas foi a ideia de não conhecer de Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário, inaugurada na 1ª Turma do STF em 2012, com a alegação de que a prática configura tentativa de saltar instâncias. Seu criador, o hoje ministro aposentado Marco Aurélio, depois diria ao Anuário da Justiça que "se arrependimento matasse", ele "estaria morto".

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