Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais e responsabilidade civil ambiental (parte 1)

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17 de março de 2023, 8h00

O direito fundamental a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, tal como consagrado no artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988 (CF), tem, como já amplamente reconhecido na doutrina especializada brasileira e na jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), para além de uma dimensão subjetiva, uma dimensão objetiva. No que diz respeito à dimensão objetiva, isso significa que o Estado tem um conjunto de deveres constitucionais vinculantes de proteção, expressos e/ou implícitos, no sentido de, mediante a sua concretização, assegurar a necessária efetividade aos direitos fundamentais, no caso, ao direito ao meio ambiente.

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Importa consignar, nesse contexto, que um dos meios de cumprir com os seus deveres de proteção é o de criar um sistema eficaz de responsabilização, para que os atos e omissões — do poder público e dos particulares — que impliquem danos ambientais, possam ser devidamente sancionados, ademais de assegurar a necessária compensação dos prejuízos coletivos e individuais causados. Embora tal responsabilização também costume se dar na esfera penal, aqui iremos nos limitar a esboçar algumas noções sobre a responsabilidade civil, já muito avançada na ordem jurídica brasileira, inclusive se comparada ao modelo ainda adotado em boa parte dos outros países.

Antes de avançar, contudo, vale enfatizar que não apenas o legislador encontra-se vinculado aos deveres de proteção, mas, sim, todos os órgãos estatais, seja na esfera executiva, seja no que diz respeito ao Poder Judiciário.

Considerando, ainda em sede de preliminar, a vastidão do tema e as suas inúmeras manifestações e repercussões, iremos, nesta coluna, apresentar uma série de noções gerais sobre o regime legal e constitucional da responsabilidade ambiental, ilustrado com referência a alguns exemplos extraídos da legislação e alguns julgados dos Tribunais Superiores.

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Um primeiro ponto a destacar é que, muito embora a matéria tenha sido de maneira gradual fortemente constitucionalizada, os primeiros passos importantes para a construção de um robusto sistema de responsabilidade ambiental são anteriores à promulgação da atual CF.

Foi com a entrada em vigor da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), em particular no seu artigo 14, § 1º, que no âmbito da legislação brasileira se estabeleceu um regime jurídico especial — no sentido de substancialmente distinto do regime geral previsto no Código Civil de 2002 (artigo 186) ‚— para a responsabilidade civil por danos ambientais, regime que paulatinamente, inclusive por influência direta da CF, foi sendo aperfeiçoado.

Note-se que, a despeito de primacialmente regulado na esfera infraconstitucional, o regime especial reforçado da responsabilidade civil ambiental tem sido — como há de ser — desenvolvido e ampliado pelo Poder Judiciário, destacando-se aqui a sua conformidade com o direito fundamental à proteção ambiental e os princípios constitucionais (e internacionais) do direito ambiental, tudo conforme se poderá verificar na sequência.

Adentrando agora alguns dos eixos estruturantes da responsabilidade civil por dano ambiental no Brasil, iniciamos por um conceito central, qual seja, o de poluidor. Nesse sentido, é de frisar que a legislação brasileira adota um conceito amplo de poluidor ambiental, tal como consagrado expressamente na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), inclusive alcançando o poluidor indireto (artigo 3º, IV), conforme se pode observar da dicção literal da lei: "poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental".

O conceito amplo de poluidor ambiental consagrado na Lei 6.938/81 abarca, portanto, todos os agentes públicos e privados (pessoas físicas e jurídicas) que se encontram na cadeia causal que ensejou a ocorrência do dano ambiental, tanto por suas ações quanto omissões e ainda que a sua participação tenha se dado de modo indireto. A título de exemplo, na condição de poluidor indireto, a doutrina identifica as instituições financeiras pelos danos ambientais gerados pelos empreendimentos e atividades por elas financiados [1]. Igual entendimento vigora em relação ao Estado, por exemplo, na hipótese de dano ambiental decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, conforme expressamente consagrado na Súmula 652 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) [2].

O conceito amplo de poluidor consagrado pela legislação ambiental brasileiro, conforme tratado anteriormente, alcança toda e qualquer "pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (artigo 3º, IV, da Lei 6.938/1981). Ou seja, também aquele que contribui, ainda que indiretamente, para a ocorrência do dano ecológico com a sua conduta omissiva é passível de ser responsabilizado solidariamente juntamente com os demais agentes (públicos e privados) que tenham conjugado ações e omissões no âmbito do espectro causal da ocorrência do resultado lesivo ao bem jurídico ambiental.

O conceito amplo de poluidor ambiental encontra-se igualmente consagrado de modo pacífico na doutrina e na jurisprudência do STJ. É elucidativa a esse respeito a passagem ora transcrita de voto do ministro Antonio Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça: "para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano urbanístico-ambiental e de eventual solidariedade passiva, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem" [3]. A decisão do STJ elenca, de forma apenas ilustrativa, algumas condutas comissivas e omissivas que ensejam o enquadramento do agente (público ou privado) na condição de poluidor, concorrendo para a ocorrência do dano ecológico e caracterizando a solidariedade passiva de todos que se encontrarem amarrados pelo nexo causal (direto e indireto).

O segundo ponto a sublinhar nesta coluna, é o de que a legislação brasileira consagrou a denominada responsabilidade objetiva do poluidor pelo dano ambiental, conforme dispõe expressamente o artigo 14, §1º, da Lei 6.938/81: "Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. (…)". Não é, portanto, exigida a verificação de culpa do poluidor para caracterizar a sua responsabilização e dever de reparação integral dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais ocasionados. O regime jurídico especializado estabelecido pela legislação brasileira para a responsabilidade civil ambiental atende, entre outros, aos princípios do poluidor-pagador, da prevenção e da precaução, de modo a internalizar os custos ecológicos e sociais e riscos decorrentes da atividade produtiva, não permitindo que tais ônus recaem em desfavor da sociedade, na medida em que os lucros são privatizados.

Além da Lei 6.938/81, outros diplomas ambientais de incidência da matéria ora articulada, igualmente consagram a responsabilidade objetiva do poluidor [4]. É o caso da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), ao prever expressamente, no seu artigo 51, que: "Art. 51. Sem prejuízo da obrigação de, independentemente da existência de culpa, reparar os danos causados, a ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importe inobservância aos preceitos desta Lei ou de seu regulamento sujeita os infratores às sanções previstas em lei, em especial às fixadas na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que 'dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências', e em seu regulamento".

Também a Lei da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei 12.334/2010) igualmente passou a prever dispositivo expresso sobre o tema a partir das alterações levadas a efeito no seu texto pela Lei 14.066/2020, conforme se pode apreender da previsão do seu artigo 4º, III: "a responsabilidade legal do empreendedor pela segurança da barragem, pelos danos decorrentes de seu rompimento, vazamento ou mau funcionamento e, independentemente da existência de culpa, pela reparação desses danos" [5].

De acordo com os diplomas legislativos referidos, o elemento subjetivo ou volitivo (dolo ou culpa) no agir do poluidor, que se expressa por meio da ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (artigo 186 do Código Civil), é dispensado pela legislação ambiental para ensejar a sua responsabilização civil em matéria ambiental, bastando apenas a caracterização dos demais elementos: autoria, nexo causal e dano. A ausência de culpa do agente causador do dano ambiental, portanto, como ocorre nas hipóteses de negligência, imperícia e imprudência, é absolutamente incapaz de afastar a sua responsabilização civil. A caracterização da responsabilidade civil pelo dano ecológico independe da presença de culpa ou má-fé na conduta (ação ou omissão) do agente poluidor (privado ou público).

Como já adiantado, a especialização do regime jurídico ambiental e a previsão expressa da responsabilidade civil objetiva na legislação brasileira (Lei 6.938/81, artigo 14, parágrafo 1º) afastam a incidência do artigo 186 do Código Civil (responsabilidade subjetiva), o qual prevê: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" [6].

Ademais, note-se que o próprio Código Civil também consagra a responsabilidade objetiva, ao prever, no seu artigo 927, parágrafo único, que "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Além de corroborar a afirmação acima da prevalência da legislação especial, no caso a legislação ambiental, o dispositivo igualmente reconhece a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil objetiva derivada da natureza e riscos inerentes a determinadas atividades, como é característico da atividade minerária de grande porte [7].

Além disso, o reconhecimento da natureza objetiva da responsabilidade civil ambiental reflete entendimento absolutamente pacífico na doutrina e na jurisprudência brasileira, notadamente no STJ, conforme decisão proferida pela 2ª Seção no Recurso Especial nº 1.374.284/MG, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, em 27 de agosto de.2014, no julgamento de Recurso Repetitivo (Tema 707) submetidos à sistemática dos processos representativos de controvérsia (artigos 543-C do CPC/1973 e 1.036 e 1.037 do CPC/2015).

A despeito de os dois tópicos ora apresentados — conceito amplo de poluidor e responsabilidade objetiva — constituírem apenas dois dentre os vários que estruturam o regime especial da responsabilidade civil ambiental no Brasil, trata-se, por si só, de instrumentos poderosos no que diz respeito à tarefa constitucional de efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado consagrado na CF. Mais adiante, em outra (s) coluna (s) teremos ocasião de avançar no tratamento do tema.

Continua na parte 2

 


[1] RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade civil ambiental do financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[2] "Súmula 652 – A responsabilidade civil da administração pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária."

[3] Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.071.741/SP, 2ª Turma, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 24/3/2009.

[4] A Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005): "Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa".

[5] O dispositivo é complementado pelo conteúdo do § 5º do art. 17-C do mesmo diploma: "§ 5º A multa simples pode ser convertida em serviços socioambientais, a critério da autoridade competente, na bacia hidrográfica onde o empreendimento se localiza, sem prejuízo da responsabilidade do infrator de, independentemente da existência de culpa, reparar os danos causados" (Incluído pela Lei nº 14.066/ 2020).

[6] O dispositivo é complementado pelo caput do art. 927 do diploma civilista: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

[7] A prova cabal de que o gerenciamento de barragem de resíduos minerários se enquadra como atividade de risco é dada pela própria legislação, notadamente a Lei 12.334/2010 (artigo 7º), a prever a classificação das barragens de acordo com o
"risco"
maior ou menor que representam."

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