Tribuna da Defensoria

Legitimidade da Defensoria para o pedido de suspensão

Autores

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

14 de março de 2023, 8h00

O presente texto objetiva enfrentar, do ponto de vista teórico e prático, as variáveis envolvendo a legitimidade da Defensoria Pública para apresentar o pedido de suspensão.

Antes de mais nada, é importante aduzir que se trata de instrumento utilizado com o objetivo de obstar o início ou a continuidade de eficácia de tutela provisória, sentença, decisão monocrática ou mesmo acórdão, desde que a situação concreta se enquadre em um dos permissivos previstos nas leis de regência.

Utiliza-se a denominação "pedido de suspensão", com algumas diferenças procedimentais quando manejado em mandado de segurança (artigo 15, da Lei 12.016/09) e nas situações previstas no artigo 4º, da Lei 8.437/92. Aliás, este incidente processual também tem previsão nos artigos 12, § 1º, da Lei 7.347/85, artigo 25 da Lei 8038/90, artigo 1º, da Lei 9.494/97, artigo 16, da Lei 9.507/97, bem como nos regimentos internos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Acerca dos requisitos, a jurisprudência do STF entende que [1]:

"o incidente de suspensão de liminar é meio autônomo de impugnação de decisões judiciais, de competência do Presidente do Tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso. O deferimento da medida demanda demonstração de que o ato impugnado pode vir a causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública (art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992 c/c art. 15 da Lei 12.016/2009 e art. 297 do RISTF)"

Já na SS 5.607 [2], a Corte Suprema asseverou que esta via deve ser utilizada em face de "decisões judiciais que potencialmente provoquem grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas".

Além da comprovação dos requisitos legais citados, é necessária a demonstração da legitimidade para sua apresentação pela pessoa jurídica de Direito Público, Ministério Público, e entes privados prestadores de serviço público. Neste último caso, vale citar julgado da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça:

"Admite-se a formulação do pedido de Suspensão de Liminar e de Sentença pelas pessoas jurídicas de direito privado quando prestadoras de serviço público, desde que na defesa do interesse público primário, correspondente aos interesses da coletividade como um todo e decorrente da prestação do serviço delegado" [3].

Já o STF entende que:

"As pessoas jurídicas de direito privado apenas podem apresentar pedidos de suspensão de liminar quando atuam na defesa estrita do interesse público" [4].

É necessário fazer pequeno corte argumentativo, visando apontar o texto para seu objetivo central: se, em relação aos entes públicos e Ministério Público, a legitimidade para o incidente é aberta, e no que respeita à atuação das pessoas jurídicas de direito privado, há a necessidade de demonstrar a prestação de serviço público e o claro interesse público a ser discutido, a Defensoria Pública, como ente público despersonalizado, possui legitimidade ampla ou restrita no que respeita à utilização do pedido de suspensão?

A resposta não é simples e necessita de apresentação de algumas premissas.

Com efeito, a Defensoria Pública é classificada como órgão público central, autônomo, de autoridade, composto, colegiado e obrigatório [5], com existência e atribuições sediadas na própria Constituição Federal. Ademais, sua atuação deve se dar em observância às missões constitucionais que lhes foram conferidas pelo artigo 134 e à legislação infraconstitucional, especialmente à Lei Complementar 80/94 (Londep).

A partir das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello [6], a atuação institucional da Defensoria Pública, como órgão público, deve se dar de forma a observar o dever de atender ao interesse público, tanto primário quanto secundário.

Podemos chamar de atuação institucional em atendimento ao interesse público primário aquela que visa à realização finalística de sua missão de acesso à ordem jurídica e social justa às pessoas e coletividades vulnerabilizadas; e, em atendimento ao interesse público secundário, como aquela em que são perseguidos os interesses instrumentais e organizacionais da própria instituição [7].

O primeiro grupo de interesses é mais óbvio de distinguir e deflui diretamente da redação do Texto constitucional inscrito no artigo 134, reafirmada essa legitimidade para atuação em prol dos interesses do seu público, e, na verdade, conferida grande amplitude pela Londep ao informar que tal atuação pode se dar em qualquer tipo de ação (artigo 4º, VII e X) e com todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa (artigo 4º, V).

É admissível, por exemplo, a intervenção autônoma da Defensoria Pública em processos que se discutem temas sensíveis ao público-alvo da instituição, desde que possa a "[….] essência da discussão [….] afetar outros recorrentes que não participaram diretamente da discussão da questão de direito, bem como em razão da vulnerabilidade do grupo de consumidores potencialmente lesado e da necessidade da defesa do direito fundamental à saúde[…]" [8]

O segundo conjunto de interesses, embora ínsito a qualquer órgão público, em razão de suas características de gestão e necessidade organizacional, pode ser encontrado expressamente, relativamente à Defensoria Pública, como atribuição institucional prevista na Londep (artigo 4º, XI e XXI). Pode-se citar, verbi gratia, a impetração de mandado de segurança, em nome da Defensoria Pública, para garantir a atuação na curadoria de réu revel [9] ou de impetração de Habeas Corpus para garantir a prerrogativa de remessa dos autos para fins de início da contagem de prazo de ato processual [10].

Essa necessidade de atendimento ao interesse público, primário e secundário, também deve ser observado no que se refere à legitimidade para a suspensão de segurança/tutela antecipada/liminar [11].

Contudo, embora as normas constitucionais e legais (em especial da Londep) determinem a atuação da Defensoria Pública utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa dos interesses das pessoas e coletividades necessitadas, as cortes têm variação de entendimento quanto à legitimidade da instituição para o manejo do pedido de suspensão.

Em alguns julgados, a Corte Suprema reconhece às Defensorias Públicas tal legitimidade, desde que o manejo da suspensão vise a assegurar suas prerrogativas institucionais [12].

Porém, percebe-se que, para as cortes superiores, há diferenciação entre a atuação em defesa de seus assistidos e aquela visando assegurar suas prerrogativas institucionais, havendo decisões autorizativas para a apresentação da suspensão pela Defensoria Pública apenas na segunda hipótese.

De fato, sob o argumento de que "não se lhe atribuiu legitimidade processual ativa para propor o incidente de suspensão de segurança para a defesa de seus assistidos" [13], o Supremo Tribunal Federal indeferiu pedido de extensão dos efeitos de liminar deferida em suspensão ajuizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para sustação dos efeitos dos pronunciamentos judiciais proferidos em ação de reintegração de posse.

No caso concreto, o ministro relator cita o artigo 15 da Lei nº 12.016/2009, como previsão legal impeditiva de reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública, ao argumento de que esta norma teria somente atribuído às pessoas jurídicas de direito público interessadas e ao Ministério Público tal legitimidade.

No mesmo sentido, importante transcrever passagem da Ementa do Acórdão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça:

2. Hipótese em que se trata, na origem, de ação de reintegração de posse proposta por empresa de energia contra particulares, em que foi deferido o pedido de atribuição de efeito ativo para a reintegração da empresa na posse do imóvel, não havendo que se falar em prejuízo do Poder Público que autorize o cabimento da medida suspensiva, tampouco em legitimidade da Defensoria Pública para atuar na defesa dos interesses privados dos assistidos [14].

Em verdade, muitas vezes há aproximação dos interesses institucionais primários e secundários, razão pela qual deveria ser reconhecida sem maiores óbices a legitimidade para a Defensoria Pública nos casos em que atuação na defesa de seus assistidos que, em última análise, também é sua função pública institucional.

Aliás, no tema, vale informar que Maia e Almeida Filho citam como precedente de reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública para o manejo de suspensão de segurança a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Amazonas no processo 0009640-54.2014.8.04.0000, em que se discutia "litígio agrário entre empresa privada e mais de duzentos e cinquenta famílias". A decisão — que contou com pareceres favoráveis do Ministério Público Estadual e Federal — atendeu ao pedido em razão dos "valores afeitos ao princípio da dignidade humana que ora se acham violados", suspendendo os efeitos da decisão impugnada [15].

Recentemente a ConJur noticiou o caso também do Tribunal de Justiça do Amazonas em que a desembargadora presidente determinou a suspensão de uma ordem de reintegração de posse proferida pela 16ª Vara Cível e de Acidentes do Trabalho de Manaus. Na decisão, ficou expresso que "tendo em vista que a demanda envolve interesse de pessoas hipossuficientes (…) reconheço a legitimidade ativa da Defensoria Pública do Estado do Amazonas, em atuação na qualidade de custos vulnerabilis, independentemente da referida Comunidade estar representada por advogado nos autos da ação principal" [16].

Esta necessidade de atendimento ao interesse público, tanto primário quanto secundário, é, portanto, um ônus da instituição, devendo-se compreender que, em razão da Teoria dos Poderes Implícitos, não se pode impor um dever e, ao mesmo tempo, não disponibilizar os meios adequados e eficientes para que sejam cumpridos. Aliás, na decisão inicial da STA 800, o relator ministro Ricardo Lewandowski lembrou do posicionamento do STF, de que "tal legitimidade existe quando o órgão despersonalizado, por não dispor de meios extrajudiciais eficazes para garantir seus direitos-função contra outra instância de Poder do Estado, necessita da tutela jurisdicional" [17]. A defesa dos interesses institucionais também é reconhecida em súmula do STJ como fundamento para a capacidade judiciária [18].

Ora, se até as pessoas de direito privado em alguns casos podem apresentar pedido de suspensão "na defesa do interesse público primário, correspondente aos interesses da coletividade como um todo e decorrente da prestação do serviço delegado", quais as razões para a restrição de legitimidade para a Defensoria Pública?

A Defensoria Pública guarda, entre os seus objetivos institucionais, conforme o expressamente incluído na sua Londep, a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais, a afirmação do Estado Democrático de Direito, a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (Artigo 3º-A ). Não haveria, portanto, nenhum óbice à sua atuação "na defesa do interesse público primário, correspondente aos interesses da coletividade" vulnerabilizada afetada por uma lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas.

Tanto no que se refere à legitimidade para as atribuições institucionais relacionadas ao interesse público primário — realização finalística do acesso à Justiça — quanto no que se refere à legitimidade para as atribuições institucionais relacionadas ao interesse público secundário — instrumental ou orgânica, trata-se de legitimidade ordinária da Defensoria Pública para, atuando em nome próprio, realizar a sua missão constitucional.

Mesmo que se compreenda que a atuação da Defensoria Pública em prol de seus assistidos na suspensão de segurança configura nítida legitimação extraordinária, estaria plenamente legitimada, tal como ocorre na ação civil pública (STF, ADI 3.943).

Naquela ocasião, a corte entendeu que a Instituição poderia ser substituta processual seja para a tutela de interesses transindividuais (coletivos strito sensu e difusos) seja para a tutela de interesses individuais homogêneos.

De mais a mais, a ausência expressa de legitimidade na Lei nº 12.016/2009 e nas outras normas citadas anteriormente não poderia ser óbice ao seu reconhecimento em relação à Defensoria Pública, tendo em vista que o Código de Processo Civil de 2015 provocou importante modificação em relação ao instituto da legitimidade extraordinária comparativamente ao Código anterior. Neste, a legitimação apenas poderia estar presente mediante autorização legal (artigo 6º), enquanto naquele (artigo 18) permite esta autorização pelo ordenamento jurídico [19]. E o ordenamento jurídico — mais precisamente a Lei Complementar 80/1994 — o faz.

O que se pretende com estas linhas, portanto, é provocar reflexões acerca da legitimidade ativa da Defensoria Pública para a apresentação do Incidente, inclusive aproximando, na grande maioria das vezes, o debate de sua manifestação em nome dos interesses dos assistidos, e de sua atuação institucional, como forma de observar o comando constitucional de que a Instituição é expressão e instrumento do regime democrático.

 


[1] SL 1395 MC-Ref, relator(a): LUIZ FUX (presidente), Tribunal Pleno, DJe 04-02-2021. neste sentido SL 1411, red. para acórdão min. Alexandre de Moraes – J. em 29.03.2021 – DJe 14.05.2021

[2] Rel. min. Rosa Weber – Tribunal Pleno – J. em 13.12.2022 – DJe 19.12.2022

[3] AgInt na SLS 3111 / RS – rel. min. Maria Thereza de Assis Moura – Corte Especial – J. em 11/10/2022 – DJe 19/10/2022

[4] STA 778 AgR – rel. min. Dias Toffolli. Tribunal Pleno. J. em 24/5/2019. DJe 14/6/2019.

[5] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklin Róger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

[6] Classificação inspirada nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre interesse público primário e secundário (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato administrativo e direitos dos administrados. São Paulo: RT, 1981).

[7] ROCHA, Jorge Bheron. Amicus Democratiae: Acesso à Justiça e Defensoria Pública. São Paulo: Tirant lo Blanch. 2022

[8] ED no REsp 1712163. Relator: min. Moura Ribeiro. Julgamento: 25 set. 2019

[9] RMS n. 64917. Min. Isabel Gallotti. Julgamento: 7 jun 2022. Informativo nº 742. 27 de junho de 2022.

[10] HC 296759. Relator: min. Rogerio Schietti Cruz. Julgamento: 23 ago 2017

[11] ALMEIDA FILHO, Carlos Alberto Sousa; MAIA, Maurilio Casas. O Estado-Defensor e sua legitimidade para os Pedidos de Suspensão de Liminar, Segurança e Tutela Antecipada. Revista de Processo, ano 40, n. 239, p. 247-262, 2017.

[12] STF – STA 800/RS, rel. min. Ricardo Lewandowski e suas extensões. Neste sentido: STA 183

[13] Pedido de extensão formulado na SS 5.049 – DJe 4/10/2019

[14] AgInt na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3.156 – rel. min. Maria Thereza de Assis Moura – J. em 22.11.2022):

[15] ALMEIDA FILHO, Carlos Alberto Sousa; MAIA, Maurilio Casas. O Estado-Defensor e sua legitimidade para os Pedidos de Suspensão de Liminar, Segurança e Tutela Antecipada. Revista de Processo, ano 40, n. 239, p. 247-262, 2017.

[17] RE 595.176-AgR/DF, Rel. min. Joaquim Barbosa

[18] SÚMULA Nº 525. A Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica, apenas personalidade judiciária, somente podendo demandar em juízo para defender os seus direitos institucionais

[19] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Legitimidade extraordinária no CPC/15: ajustes e poderes das partes e do assistente processual. Revista Brasileira de Direito Processo, Belo Horizonte, ano 25, nº 99, p. 207-220, jul./set. 2017.

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

  • é doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Fortaleza-Capes 6, mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Estágio de Pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen, professor do Centro Universitário Christus (UniChristus), defensor público do Ceará e conselheiro do Conselho Penitenciário do Ceará.

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