Observatório Constitucional

Por uma interpretação feminista sobre as vidas, corpos e liberdade das mulheres

Autores

  • Estefânia Maria de Queiroz Barboza

    é mestre em Doutora em Direito pela PUC-PR professora de Direito Constitucional dos cursos de graduação mestrado e doutorado da UFPR e do mestrado da Uninter.

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

11 de março de 2023, 8h00

O Secretário Geral da ONU alerta para os dados preocupantes a respeito dos direitos das mulheres ao redor do mundo: serão necessários mais 300 anos para se alcançar a igualdade de gênero no mundo. Os dados são alarmantes e escandalosos. Décadas de avanços em conquistas de direitos à igualdade e à liberdade das mulheres enfrentam retrocessos com os avanços autoritários no mundo. Avanços do neoconservadorismo e do autoritarismo andam junto com discurso de proteção à família contra a igualdade e liberdade das mulheres. Aliam-se também a movimentos antiaborto. Guerras também colocam mulheres e meninas em risco, na medida em que elas sofrem mais violência física e sexual na guerra, na fuga e nos campos de refugiados.

No Brasil, a situação não é animadora, a começar pela representação política no Congresso Nacional. Temos apenas 91 deputadas, ao lado de 422 deputados homens (17,7%); no Senado, 11 senadoras mulheres e 70 senadores homens (15%). Na última legislatura o Brasil ocupava a 142º posição no ranking de participação política das mulheres entre 192 países, ficando na frente apenas do Haiti na América Latina. A igualdade de gênero nos Parlamentos só será adquirida daqui a 40 anos, em 2063, segundo a ONU. Mas os números brasileiros são vergonhosos, escandalosos, aliados a bancadas religiosas, que reproduzem a ideologia de dominação de séculos, colocando ainda no século XXI as mulheres no espaço privado e com a principal ocupação sobre a família.

Os dados de violência doméstica e feminicídios também não trazem conforto, com uma mulher morta a cada seis horas em 2022. Reportagem do UOL da semana passada mostra que todas as formas de violência contra a mulher aumentaram em 2022, com mais de 50 mil mulheres sofrendo violência diariamente, apesar do silêncio de mais da metade das que sofrem violência.

Por outro lado, somos o 4º país em casamento infantil no mundo, muitos destes casamentos são realizados para garantir a honra da família, quando as meninas engravidam e geralmente o casamento se dá com seus abusadores. Um problema grave que também envolveria a discussão sobre o aborto legal, já que o estupro de menores é presumido. Mas a onda neoconservadora aliada aos movimentos religiosos, impõem sempre o ônus do controle e dominação sobre os corpos das meninas. E o número de estupros de meninas é de cerca de 822 mil casos por ano, segundo estudo do Ipea, sendo que mais de 58% destes números são estupros de meninas menores de 13 anos.

É preciso compreender este cenário de desigualdade mas também de violência sobre os corpos das mulheres e meninas e imaginar quais os espaços de luta legítimos numa democracia em que as mulheres não chegam a ter 20% das cadeiras do Congresso Nacional e que nos últimos anos tiveram Damares como ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, retrocedendo em políticas de defesa das mulheres, num autêntico feminismo abusivo.

Neste cenário é preciso compreender a importância do Supremo Tribunal Federal em promover a igualdade e liberdade real das mulheres, asseguradas não apenas em diversos dispositivos da Constituição, mas também em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. O espaço contramajoritário passa a ser essencial num cenário de tanta desigualdade estrutural. Cortes normalmente são mais progressistas em matéria de proteção de direitos das mulheres, porque sua legitimidade se dá numa argumentação racional, e numa argumentação racional sem influências morais ou religiosas há maior chance de proteção das mulheres.

Neste sentido, podemos celebrar muitas das decisões do Supremo Tribunal Federal, que de algum modo, protegeram direitos das mulheres: 1) ADI n° 3.510: Lei de biossegurança — pesquisas com células tronco embrionárias; 2) ADI n° 4.424: violência doméstica — ação penal pública incondicionada; 3) ADC n° 19: violência doméstica — constitucionalidade da Lei Maria da Penha; 4) ADPF n° 54: interrupção da gestação de feto anencefálico; 5) RE n° 658.312: intervalo antes da jornada extraordinária da mulher; 6) RE n° 778.889: licença-adotante; 7) ADI n° 5.617: financiamento eleitoral de candidaturas femininas; 8) RE n° 1.058.333: igualdade material, liberdade individual, direito à saúde, a maternidade e ao planejamento familiar; 9) ADI n° 5.93B: proteção constitucional à maternidade e trabalho insalubre; 10) ADPF n° 457: exclusão de material didático sobre gênero da rede municipal de ensino. 11) ADPF n° 467: exclusão da diversidade de gênero e da orientacão sexual da Política Municipal de Ensino; 12) ADPF n° 738: candidaturas de mulheres negras; 13) ADPF n° 779 MC: legitima defesa da honra e igualdade de gênero.

Mas ainda será preciso avançar para discutir a ADPF 442 sobre a descriminalização do aborto e é preciso que o Supremo não se deixe cair por armadilhas sobre a tese a ser discutida. O aborto deve ser enfrentado a partir do direito à liberdade e à autonomia sobre o corpo, aplicando-se precedentes sobre teses já firmadas neste tema.

Sobre a autonomia do corpo, pensando abstratamente, podemos utilizar o exemplo colocado por James Thomson:

Una mañana , usted se despierta y se encuentra en el lecho, espalda contra espalda, con un violinista inconsciente, un famoso violinista en estado de coma. Se le ha encontrado una enfermedad renal fatal, y la Asociación de Amigos de la Música, habiendo examinado todos los registros médicos disponibles, ha averiguado que sólo usted tiene el grupo sanguíneo apropiado para ayudarle. En consecuencia, le han secuestrado y, la noche anterior, han acoplado el sistema circulatorio del violinista al suyo, de manera que los riñones de usted puedan utilizarse simultáneamente para extraer las toxinas de la sangre del violinista y de la suya. El director del hospital le dice entonces:

— Mire usted, lamentamos que la Asociación de Amigos de la Música le haya hecho esto. De haberlo sabido, no lo habríamos permitido; sin embargo, lo ha hecho, y el violinista está ahora acoplado a usted. Para librarse de él, tendría que matarlo pero no se preocupe, es sólo cuestión de nueve meses. Para entonces, se habrá restablecido de su enfermedad y podrá, sin riesgo, ser separado de usted [1].

O trecho acima demonstra uma situação hipotética que pode parecer absurda e que nos faz questionar se o corpo do homem pode ser instrumental para a vida de outro ou se deve ser um fim em si mesmo. Certamente, não aceitaríamos tal solução de termos nosso corpo como instrumento à vida de outro. Entretanto, quando tratamos do tema do aborto, a discussão não se coloca com a mesma racionalidade. Argumentos religiosos e morais prevalecem e defendem que o corpo da mulher deve ser instrumental à vida de outro ser humano, que seu corpo e sua vida não são um fim em si mesmo.

Argumentos religiosos ainda trazem uma ideia de que o sofrimento é algo divino e que, portanto, sofrer pode dar a mulheres espaço no paraíso. Mulheres devem ser instrumentais para formação da família e para o objetivo da procriação e maternidade. Tais argumentos ainda parecem mais presentes num momento em que o neoconservadorismo aparece com toda força no Brasil, buscando a dominação masculina no casamento e num movimento antifeminista, já que para este grupo, o feminismo "teria colocado as mulheres contra a reprodução, seu dever e chamado natural" [2].

Esta é a arena política neoconservadora no Brasil, não há espaço para direitos de igualdade e liberdade das mulheres, que dirá direitos sexuais e reprodutivos. Mulheres representam apenas 17,7% das cadeiras no Congresso Nacional e temos ainda uma Bancada Evangélica e uma Frente Parlamentar Evangélica, que se articulam contra temas de igualdade de gênero, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros.

Neste contexto, o Judiciário e as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais ao redor do mundo, têm funcionado como um locus democrático de afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como decorrência da proteção de seus direitos à igualdade e à liberdade.

Neste sentido, pretende-se apresentar algumas possibilidades de interpretação constitucional feminista, bem como, uma interpretação constitucional que busque reparar a desproporcionalidade da lei que criminaliza o aborto e restringe a liberdade da mulher sobre seu corpo, sua vida e seu futuro

A interpretação feminista é um projeto que pretende repensar o direito constitucional e explorar sua relação com o feminismo examinando, desafiando e redefinindo a própria ideia do constitucionalismo a partir de uma perspectiva feminista [3]. Os estereótipos e abordagens discriminatórias deixaram marcas no direito constitucional e nas tradições legais. O feminismo pode desempenhar um papel na neutralização dessas influências e a interpretação feminista pode ser uma ferramenta muito eficaz a serviço da mudança jurisprudencial gradual, além disso, oferece uma nova perspectiva interpretativa do conhecimento humano, incluindo a esfera do Direito. Alguns exemplos clássicos da influência de estereótipos e discriminação na interpretação vêm de casos em que documentos aparentemente neutros foram interpretados de forma excludente às mulheres por causa de vieses culturais [4].

É necessário que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a interrupção voluntária da gravidez, compreenda que é possível combater não só as formas públicas de injustiça, suspostamente neutras. Neste sentido, uma possibilidade seria o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett [5], "the woman question", para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. E pode ser utilizado no caso do aborto. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais.

"The woman question" busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres apresentando as seguintes questões: "have women been left out of consideration? If so, in what way, how might that omission be corrected? What difference would it make to do so?" [6].

O método busca de alguma maneira explorar se há proporcionalidade e, portanto, igualdade no tratamento e na elaboração de uma lei e seus impactos na vida da mulher. Se a lei só tem impactos de restrição sobre a vida, a liberdade e o corpo da mulher, não é possível pensar em neutralidade ou imparcialidade.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, perguntar "the woman question" é perguntar e examinar como a criminalização do aborto traz standards normativos em desvantagem para mulheres. A pergunta assume que as leis, especialmente aquelas elaboradas no início e meados do século passado não só podem não ser neutras, mas também impactar de forma desvantajosa para as mulheres e serem "machistas" num sentido específico. A proposta da pergunta "the woman question" quando dos julgamentos, pode ajudar a expor esta disparidade e desproporcionalidade no impacto da norma punitiva sobre a vida e sobre o corpo das mulheres, sugerindo a correção do direito pela declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte.

É preciso enfrentar se o tema afeta só mulheres, se afeta apenas mulheres grávidas, se este impacto prejudica as mulheres. Se há impacto maior sobre mulheres pobres e sobre mulheres negras. Para além disso, é necessário perguntar se o Estado atua de forma proporcional para evitar a interrupção da gravidez com incentivos econômicos e sociais para as mulheres.

O Estado mantém políticas de assistência social específica para mães de baixa renda? O Estado mantém políticas de estabilidade no emprego para mulheres gestantes? E para mulheres gestantes que vivem em subempregos no mercado informal de trabalho, de que modo o Estado protege? Às mulheres executivas é garantido promoções na carreira? Há uma preocupação de gênero em promover mulheres mães nas corporações? Optar pela continuidade da gestação e maternidade impacta no desenvolvimento das mulheres? Impacta negativamente em seu desenvolvimento profissional? Mulheres pesquisadoras têm incentivos e equiparação justa para equiparar a maternidade? Quais as políticas de inclusão e equiparação são feitas pelos governos? Homens que optam por não levar a gravidez adiante sofrem algum tipo de punição? São estas as questões que devemos fazer para devidamente enfrentar o tema do aborto.

Fazer a pergunta "the woman question" pode ser um método inicial para os debates sobre interpretação constitucional a respeito do aborto e nos resultados desproporcionais que sua criminalização causa às mulheres. As perguntas acima podem demonstrar com maior transparência se há de fato uma preocupação na proteção da vida do feto para o momento posterior ao seu nascimento e se há políticas para acolhimento das mulheres que desejam levar sua gravidez adiante. Se a lei impacta apenas sobre as mulheres e é a única política desproporcional existente para restringir suas liberdades e tratá-la de maneira desproporcional, então deve a corte apontar a sua inconstitucionalidade porque não atende parâmetros de igualdade material preconizados na Constituição Federal.

Neste mês de março, há mais temas a refletir do que a celebrar, e o espaço de interpretação feminista deve ser um espaço de luta, a interpretação não é neutra, é disputa e aqui só defendemos a interpretação que possa garantir igualdade e igual liberdade às mulheres.

 


[1] Thomson, James. Defensa del aborto. In: DWORKIN, Ronald. La Filosofía del Derecho. México: FCE, 2014, p.245-246.

[2] Lacerda, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019, p. 40.

[3] BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012. p. 1.

[4] BARAK-EREZ, Daphne. Her-menutics: feminism and interpretation. In: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012. p.85.

[5] BARTLETT, Katherine. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, vol. 103, 1990, n.4, p. 837.

[6] Ibidem.

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