Opinião

O acordo de não persecução penal e o Supremo Tribunal Federal

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2 de março de 2023, 15h16

O acordo de não persecução penal (ANPP) completa aproximadamente três anos de existência no Código de Processo Penal. Mesmo assim, diversas questões ainda desafiam os operadores do Direito, dentre elas a questão da (ir)retroatividade do ANPP, de acordo com a natureza jurídica  processual penal pura ou mista  do artigo 28-A, do diploma processual penal.

Por sua vez, em razão da importância do assunto e sua repercussão nos tribunais, o Habeas Corpus nº 185.913 foi submetido à deliberação do Plenário do Supremo Tribunal Federal, a fim de responder às seguintes questões: O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no artigo 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

Diante disso, o remédio constitucional foi incluído em pauta por diversas oportunidades, mas, infelizmente, ainda não foi julgado, permanecendo até o momento a discussão nas cortes do país. Atualmente, o Habeas Corpus estava com previsão de julgamento para o dia 2 de março de 2023, oportunidade na qual se esperava a solução do tema. No entanto, foi excluído da pauta pela Presidência mais uma vez.

A posição da doutrina foi se consolidando pela retroatividade da norma, sobretudo pelo conteúdo seu conteúdo misto [1], em decorrência do mandamento constitucional do artigo 5º, XL e do artigo 2º do Código Penal [2]. Essa delimitação é fundamental para responder às indagações propostas anteriormente. Não há como fugir da natureza mista da norma, pois o cumprimento da avença entabulada entre Ministério Público e acusado/investigado implica na extinção da punibilidade (artigo 28-A, §13, CPP), o que impõe a aplicação retroativa do instituto.

Todavia, na prática, tem-se observado divergências jurisprudenciais relevantes [3] e que poderão impactar diretamente no sistema de justiça criminal, cabendo rememorar que um dos argumentos frequentemente empregados para justificar, sob o prisma utilitário, a existência de mecanismos negociais no processo penal, é justamente reduzir o número de processos criminais [4]. Vale dizer, seja sob o prisma dogmático ou meramente utilitário, a solução adequada é a incidência do instituto negocial de forma retroativa.

Não se desconhece a compreensão de que o marco final para o oferecimento do acordo deveria ser a sentença condenatória [5], mas os próprios defensores dessa perspectiva observam que, nos casos de aditamento à denúncia, desclassificação da imputação ou procedência parcial da acusação, com o consequente preenchimento dos requisitos legais pelo acusado, é cabível a remessa dos autos ao Ministério Público para a análise do cabimento do acordo, mesmo em se tratando de processo em curso. Situação similar ocorreria com a recusa do acordo pelo membro do Parquet em primeiro grau, com a posterior reforma do entendimento pelo órgão superior do Ministério Público [6].

Essas hipóteses, segundo nossa compreensão, inviabilizam impor-se o recebimento da denúncia ou mesmo a sentença penal condenatória como óbices ao acordo [7].

A partir daí, importante traçar alguns prognósticos quanto à votação da Corte Suprema, em especial diante da divergência existente entre a 1ª (interpretação restritiva) e a 2ª Turma (interpretação ampliativa) do Tribunal.

A 1ª Turma tem decidido que o ANPP somente seria cabível até o oferecimento da denúncia. Isso porque a Lei 13.964 (Pacote Anticrime) foi publicada em 24 de dezembro de 2019, com vigência a partir de 23 de janeiro de 2020. Desse modo, o ANPP seria possível aos fatos praticados antes da nova lei, desde que a denúncia ainda não tenha sido recebida. Ou seja, a partir da admissão da peça acusatória, estaria superada a possibilidade de ANPP, visto que os atos praticados em conformidade com a lei anterior devem permanecer vigentes.

O principal precedente citado é o Habeas Corpus nº 191.464, julgado em 11 de novembro de 2020, no qual participaram os ministros Roberto Barroso, Marco Aurélio, Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Na época, o ministro Luiz Fux estava na presidência da corte, no entanto, é possível encontrar precedentes em que o ministro votou acompanhando a posição acima citada (vide, por exemplo, Habeas Corpus 219.316).

Já a 2ª Turma tem adotado posição distinta, isto é, o voto do ministro Gilmar Mendes no Habeas Corpus nº 185.913 chegou a ser divulgado em razão do início no julgamento, no qual entendia pela possibilidade de retroatividade do ANPP, por interpretar a norma do artigo 28-A, do Código de Processo Penal, como processual penal mista. Depois disso, alguns votos foram proferidos de forma monocrática, permitindo também a retroatividade do ANPP.

Ainda assim, há precedente relevante da relatoria do ministro Edson Fachin, pois no Habeas Corpus nº 220.249 compreendeu-se que o ANPP configura norma híbrida, razão pela qual deve retroagir. Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski (HC 224.654), Nunes Marques e André Mendonça acompanharam o entendimento, este último com ressalvas, pois não se comprometeu com a tese.

Desse modo, embora obviamente não se possa afirmar a posição adotada ao se julgar o remédio constitucional em Plenário, denota-se que a decisão provavelmente será em placar apertado.

Espera-se o julgamento do importante processo  da forma mais célere possível  para que a orientação sirva de precedente às demais instâncias do Judiciário, estabelecendo a retroatividade do ANPP a todos os processos, inclusive com trânsito em julgado, porque é a solução que atende aos reclamos da doutrina e melhor contribui para a redução do encarceramento [8]. Por fim, cabe recordar que a própria Suprema Corte já reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" do sistema carcerário brasileiro, de modo que se está diante de uma grande oportunidade de se dar respostas efetivas aos velhos problemas do sistema de justiça criminal.

 


[1] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de não persecução penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p. 38. O autor, no entanto, estabelece como marco final para o oferecimento do ANPP o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ressalvando apenas a hipótese na qual, havendo negativa do oferecimento do acordo na fase de conhecimento, o recurso defensivo ao órgão ministerial superior seja provido quando iniciada a fase de execução da pena (p. 157-158). Alguns autores destacam a natureza essencialmente material do instituto (WUNDERLICH, Alexandre; LIMA, Camile Eltz de. Direito Público Subjetivo. In: WUNDERLICH, Alexandre [et al]. Acordo de não persecução penal e colaboração premiada após a Lei Anticrime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 43).

[2] Defendendo a aplicação do instituto aos processos em trâmite, independentemente da fase em que se encontram, bem como, àqueles com trânsito em julgado cf.  BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo. O respeito à Constituição Federal na aplicação retroativa do ANPP. In: BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo [Orgs.]. Acordo de não persecução penal. 2ª. ed. Belo Horizonte/São Paulo, 2021. p.127-143; BITTAR, Walter Barbosa; SOARES, Rafael Junior. Capítulo 4  Código de Processo Penal  Decreto-Lei 3.689/41. In: BITTAR, Walter Barbosa [Org]. Comentários ao Pacote Anticrime Lei 13.96/2019 (artigo por artigo  incluindo a rejeição de vetos). São Paulo: Tirant lo Blanch, p. 2021. p. 65.

[3] Sobre o tema cf. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; SAAD, Marta. Acordo de não persecução penal: desafios já diagnosticados da reforma trazida pela Lei n. 13.964/2019. In: SALGADO, Daniel de Resende; KIRCHER, Luis Felipe Schneider; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de [Orgs]. Justiça Consensual: Acordos Penais, Cíveis e Administrativo. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 398-405.

[4] A resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público que instituiu o ANPP por regulamentação interna do órgão, previa que a normativa se baseava, entre outros, nos seguintes fundamentos: "Considerando a carga desumana de processos que se acumulam nas varas criminais do País e que tanto desperdício de recursos, prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais; Considerando, por fim, a exigência de soluções alternativas no Processo Penal que proporcionem celeridade na resolução dos casos menos graves, priorização dos recursos financeiros e humanos do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento dos casos mais graves e minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, reduzindo os efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogando os estabelecimentos prisionais (…)".

[5] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal à luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 252-253.

[6] Idem, p. 261.

[7] "O tema, porém, gera muito debate, sobretudo quando se observa que a própria jurisprudência da Corte Cidadã admite que, na hipótese de negativa de oferecimento do benefício pelo Ministério Público caberá à defesa se insurgir e requerer a remessa ao órgão superior do Parquet no momento da resposta à acusação. Nesse caso, a eventual reforma da decisão do membro do Ministério Público oficiante em primeiro grau acarretará o oferecimento do acordo após o recebimento da denúncia, o que contraria a razão de ser dos precedentes que negam a benesse após esse marco processual". SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio. Desafios na aplicação dos acordos de não persecução penal e cível nos processos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-26/soares-borri-acordos-nao-persecucao-penal. Acesso em 21.02.2023.

[8] Em consulta realizada ao Banco Nacional de Mandados de Prisão verificou-se que até o dia 21/02/2023 havia 820.987 pessoas privadas de liberdade no Brasil, além de 343.218 mandado de prisão pendentes de cumprimento.

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