Consultor Tributário

MP 1.171 e as novas regras de tributação dos investimentos no exterior

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31 de maio de 2023, 8h00

É com imensa alegria que retorno às páginas desta ConJur, novamente como colaborador da coluna Consultor Tributário, ao lado de grandes expoentes do Direito Tributário brasileiro. Igor Mauler e Heleno Torres já estavam quando eu e Gustavo Brigagão —  que retorna comigo — começamos a escrever neste espaço há dez anos. Hoje, tenho a honra de estar também ao lado de uma querida amiga Elidie Bifano e dos colegas Hugo Segundo e Helenílson Pontes.

Todo o recomeço é difícil. Ainda mais quando não faltam assuntos tributários. Inúmeros casos em disputa no Judiciário, complexas discussões na esfera administrativa e, especialmente, emendas constitucionais, projetos de lei e medidas provisórias sendo apreciadas pelo Congresso, tornaram difícil a escolha do assunto a tratar nesse regresso.

Por isso vou recorrer à memória de uma tarde inesquecível de maio, quando integrei a mesa de debates sobre a tributação da renda do II Congresso Internacional de Direito Tributário do Instituto de Aplicação do Tributo (IAT), organizado com maestria por Tácio Lacerda da Gama e sua equipe.

Sob o céu mágico do entardecer de Trancoso (BA), ao lado de um time de craques — Rodrigo Dias, Karen Jureidini, Everardo Maciel, Daniel Loria, Susy Hoffman, Marcos Neder e Onofre Alves —, regidos com elegância pelo professor Paulo Ayres, tivemos a oportunidade de debater diversos aspectos da chamada reforma da tributação da renda.

Dita reforma é, na verdade, um conjunto de medidas legislativas que modificam alguns aspectos do imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas, indiscutivelmente relevantes, mas sem o mesmo grau de disruptividade da ordem constitucional originária provocado pelas PECs 45 e 110 que tratam da tributação do consumo.

Na mesa de debates em Trancoso tivemos o privilégio de ouvir Daniel Loria, advogado e estudioso brilhante, atual Diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária. Daniel esclareceu-nos a respeito das diversas frentes da reforma do imposto de renda, dentre elas a nova disciplina de tributação de investimentos no exterior das pessoas físicas domiciliadas no Brasil, que acabara de ser introduzida pela MP 1.1.71, de 30 de abril de 2023, que escolhemos como tema da primeira coluna nesse regresso.

Spacca
Pareceu-nos que referida MP andou bem no que concerne à nova disciplina de tributação do investimento direto das pessoas físicas em aplicações financeiras no exterior, que passa a se sujeitar às mesmas alíquotas que incidem sobre aplicações realizadas no Brasil (artigo 2º), e torna mais simples a apuração e recolhimento do tributo, que passa a ser devido na DAA do ano-base em que ocorrer o resgate, a amortização, a alienação, o vencimento ou a liquidação das aplicações financeiras (art. 3º).

Já, porém, no que diz respeito à tributação do investimento indireto, isto é, aqueles investimentos realizados em empresas offshore, que têm por função a realização concentrada de aplicações em ativos financeiros, o regramento merece aperfeiçoamentos.

 

Com efeito, para essas modalidades de investimento, a MP criou um regime de tributação automática dos lucros apurados no balanço das empresas, que deverão ser declarados na DAA e sujeitos ao pagamento do imposto de renda de 15% ou 22,5%, mesmo que não tenham sido distribuídos aos sócios (artigo 4º).

Indiscutivelmente está se propondo — tal como já sucede no domínio das pessoas jurídicas — que os lucros apurados por sociedades domiciliadas no exterior, controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, em certas hipóteses (investimentos em empresas situadas em países ou dependências de tributação favorecida ou beneficiárias de regime fiscal privilegiado ou que apurem renda ativa própria inferior a 80% da renda total), sejam tributados antes da sua efetiva percepção pelo contribuinte, ou seja, uma vez mais está se pretendendo taxar, por ficção legal, renda indisponível, em contrariedade ao artigo 43 do CTN.

Mesmo temperando-se essa antinomia com a invocação do caráter anti evasão da norma, como feito pelo ministro Joaquim Barbosa no famoso julgamento da ADI 2.588, que conduziu à declaração da constitucionalidade parcial das regras de tributação automática para as pessoas jurídicas dos lucros de controladas em paraísos fiscais, é indiscutível que alguns ajustes normativos devem ser feitos no Congresso, especialmente no que diz respeito à forma de apuração do lucro tributável.

É fundamental, para ser minimamente adequada à capacidade contributiva de um contribuinte pessoa física, e equânime com o regime de tributação do investimento direto, que a legislação preveja que o lucro dessas sociedades, especificamente para fins de tributação automática, será aquele apurado segundo o regime de caixa, tal como sucede hoje internamente, de forma optativa, com as sociedades do lucro presumido.

Com efeito, pelo regime de caixa os ganhos obtidos apenas são considerados "lucro" quando efetivamente realizados, nada interferindo, para fins fiscais, as flutuações de cotação ocorridas ao longo do tempo. Somente assim evita-se que um contribuinte titular de ações de uma empresa no exterior que detém, por seu turno, uma carteira de investimentos composta, por exemplo, de ações de companhias abertas, títulos de dívida, como notes e bonds, e cotas de fundos de investimento de private equity, seja obrigado a pagar imposto sobre um lucro meramente potencial, decorrente de uma variação positiva da cotação das ações ou da avaliação das cotas do fundo.

Já os rendimentos de títulos de dívida, sempre irão concorrer para a formação de um caixa que poderia ser considerado como lucro da empresa. A adoção do regime de caixa será, inclusive, mais benéfico para o Fisco, pois caso prevaleça o regime proposto na MP 1.171, os rendimentos de renda fixa não seriam alcançados pela tributação no Brasil caso a empresa estrangeira registre perdas com a queda da cotação das ações ou em razão de uma nova avaliação menos otimista do fundo de private equity.

Também reputamos problemática a aplicação da norma a quaisquer empresas, mesmo que não domiciliadas em países ou dependências de tributação favorecida ou beneficiárias de regime fiscal privilegiado, apenas pelo fato de terem preponderantemente rendimentos de origem dita “passiva” que, nos termos da norma, são os juros, dividendos, royalties, ganhos de capital, aplicações financeiras, aluguéis, participações societárias e intermediação financeira.

Ora, não nos parece razoável submeter a um regime tributário mais gravoso contribuintes acionistas de empresas que auferem rendas dessa natureza quando elas estão domiciliadas em países de tributação dita normal e incorreram em investimentos e custos relevantes para serem titulares dos ativos geradores de tais receitas.

Acresce que tal regramento é totalmente incompatível com o artigo 7 dos tratados contra a dupla tributação firmados pelo Brasil segundo o modelo OCDE, que asseguram competência tributária exclusiva para o país de residência da controlada no exterior e que repudiam a tributação de dividendos fictos, somente autorizando exigências, nos termos do artigo 10 das referidas convenções, sobre dividendos pagos.

E nem se alegue — como se fez no caso das pessoas jurídicas — que o regime não violaria os tratados, pois o objeto da tributação seria o resultado positivo da equivalência patrimonial registrado no balanço da controladora no Brasil. Ora, no caso de pessoas físicas, evidentemente, não há que se falar em equivalência patrimonial, sendo, pois, manifesta a extraterritorialidade da tributação pretendida.

Também não se nos afigura razoável a revogação da isenção de tributação da variação cambial para bens adquiridos por residentes no exterior antes da fixação de residência fiscal no Brasil. Tal revogação ignora o princípio segundo o qual o custo de aquisição dos bens e direitos é a medida da existência ou não de um efetivo acréscimo patrimonial. A supressão da isenção fará com que pessoas físicas que incorreram em custos para aquisição de bens e direitos em moeda estrangeira, na prática, percam o direito de manter seus valores atualizados para, quando de eventual alienação, serem tributadas apenas sobre o ganho real e efetivamente obtido na moeda da compra do bem ou direito.

Reputamos, ao fim, que ainda merece debate e aprimoramento a disciplina criada de forma inovadora para os trusts, que ficaram sujeitos a um regime de transparência fiscal, sem que tenha havido distinção entre os trusts revogáveis e os irrevogáveis, o que poderá causar discussões judiciais sobre a titularidade e disponibilidade dos rendimentos tributados (artigo 7º).

Apenas para registro final, não podemos deixar de criticar a escolha do governo de se valer de uma medida provisória para introdução dessas novas regras, atropelando, mais uma vez o processo legislativo. Recorde-se que muitas dessas alterações já haviam sido tratadas na MP 627/2013 e foram suprimidas na lei de conversão 12.973/2014. Além disso o PL 2337 tentou introduzir regras de tributação semelhantes que foram rejeitadas pelo Congresso na legislatura anterior.

O vício do novo governo de revisitar a agenda legislativa, "empurrando goela abaixo" dos parlamentares regras que já tinham sido por eles rejeitadas, revela seu inconformismo com as escolhas feitas no passado recente pelos congressistas e abala de forma indelével a segurança jurídica e a proteção da confiança dos cidadãos na estabilidade das normas jurídicas.

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