Território Aduaneiro

Interposição fraudulenta: cumulação de sanções ao importador ostensivo

Autores

  • Solon Sehn

    é professor de Direito Aduaneiro e Tributário doutor e mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) advogado graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) ex-conselheiro do Conselho Administrativo Federal de Recursos Fiscais (Carf) e representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

  • Leonardo Branco

    é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

23 de maio de 2023, 8h00

A interposição fraudulenta é tipificada no artigo 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, na redação da Lei nº 10.637/2002, que considera dano ao erário as infrações relativas às mercadorias "estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros", conforme redação da Lei nº 10.637/2002.

Na importação, a infração é configurada nos casos de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, do comprador ou do responsável pela operação, por meio de simulação subjetiva ou de fraude à lei. A sua caracterização pressupõe a coalescência de quatro elementos: (1) o conluio entre as partes (importador ostensivo e o importador oculto); (2) o negócio aparente ou simulado (a importação aparente, que é declarada para as autoridades aduaneiras); (3) o negócio oculto ou dissimulado (a importação oculta); e (4) o intuito de enganar o Fisco ou de afastar a incidência de preceito legal proibitivo [1].

Trata-se de infração sujeita a uma das sanções mais gravosas do direito positivo brasileiro: a pena de perdimento. Essa — quando a mercadoria já foi consumida, revendida ou não for localizada — é convertida em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, conforme previsto no artigo 23, § 1º e § 5º, do Decreto-Lei nº 1.455/1976.

Dessa forma, o importador oculto — na condição de proprietário da mercadoria — é o destinatário legal da pena de perdimento, isto é, aquele que deve sofrer os efeitos patrimoniais negativos previstos pela ordem jurídica. Já o importador ostensivo — como parte hipossuficiente cooptada para a prática do ilícito pelo economicamente mais forte — é penalizado com uma multa mais branda, prevista no artigo 33 da Lei nº 11.488/2007: "A pessoa jurídica que ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas no acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários fica sujeita a multa de 10% do valor da operação acobertada, não podendo ser inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais)", sendo que, nesta hipótese "(…) não se aplica o disposto no art. 81 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996" [2].

Porém, como ressaltado, em caso de não-localização, de revenda ou de consumo do produto, o § 3º do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 prevê a conversão da pena de perdimento em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria importada. Essa sanção substitutiva também tem como sujeito passivo o importador oculto, tal qual ocorre com a pena substituída (perdimento). Não obstante, as autoridades aduaneiras têm responsabilizado solidariamente o importador ostensivo com fundamento no artigo 95, I, do Decreto-Lei nº 37/1966 ("Art. 95 – Respondem pela infração: […] I – conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática, ou dela se beneficie"). Entende-se que, ao servir de "presta-nome" para o real destinatário, o importador ostensivo ou aparente concorre para a prática da infração. Assim, apesar de não ser o destinatário legal da pena, com a conversão do perdimento em multa, acaba respondendo pela sanção.

Essa cumulação é controversa na jurisprudência. No final do ano de 2017, dirimindo divergência entre Turmas de Julgamento [3], a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf admitiu a validade da aplicação simultânea das sanções:

"DANO AO ERÁRIO. INFRAÇÃO. PENA DE PERDIMENTO. CONVERSÃO EM MULTA. VALOR DA MERCADORIA. LEI 10.637/02. CESSÃO DE NOME. INFRAÇÃO. MULTA. DEZ POR CENTO DO VALOR DA OPERAÇÃO. LEI 11.488/07. RETROATIVIDADE BENIGNA. IMPOSSIBILIDADE.

Na hipótese de aplicação da multa de dez por cento do valor da operação, pela cessão do nome, nos termos do art. 33 da Lei nº 11.488/2007, não será declarada a inaptidão da pessoa jurídica prevista no art. 81 da Lei 9.430/96. A imposição da multa não prejudica a aplicação da multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias, pela conversão da pena de perdimento dos bens, prevista no art. 23, inciso V, do Decreto-Lei nº 1.455/76.

Descartada hipótese de aplicação do instituto da retroatividade benigna para penalidades distintas" [4].

Após essa decisão, foi aprovada a Súmula Carf nº 155: "A multa prevista no art. 33 da Lei nº 11.488/07 não se confunde com a pena de perdimento do art. 23, inciso V, do Decreto Lei nº 1.455/76, o que afasta a aplicação da retroatividade benigna definida no art. 106, II, 'c', do Código Tributário Nacional". Com isso, a matéria foi consolidada no âmbito do contencioso administrativo.

No Judiciário, por sua vez, os Tribunais Regionais Federais (TRF) da 4ª Região [5] e da 3ª Região têm julgados acompanhando essa interpretação [6]. Contudo, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu que o importador oculto deve responder apenas pela pena do artigo 33 da Lei nº 11.488/2007:

"TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPORTAÇÃO MEDIANTE INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA DE TERCEIROS. CONVERSÃO DA PENA DE PERDIMENTO DE BENS NA MULTA PREVISTA NO ART. 23, V E § 3º, DO DECRETO-LEI N. 1.455/1976. PENALIDADE APLICÁVEL APENAS AO IMPORTADOR OCULTO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA COM O ART. 33 DA LEI N. 11.488/2007.

1. A controvérsia veiculada nos presentes autos diz respeito à aplicação, em caráter solidário, da multa prevista no § 3º do art. 23 do Decreto-Lei n. 1.455/1976 ao importador ostensivo na hipótese de importação mediante interposição fraudulenta de terceiros efetiva (art. 23, V, do Decreto-Lei n. 1.455/1976) e presumida (§ 2º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 e art. 33 da Lei n. 11.488/2007), quando da impossibilidade da aplicação da pena de perdimento prevista no § 1º de referido decreto.

2. A interpretação sistemática de referidos dispositivos denota que os casos de importação mediante interposição fraudulenta de terceiro – irrelevante seja ela efetiva ou presumida – admite a aplicação primeira da pena de perdimento de bens e, na sua impossibilidade, consequente aplicação da multa correspondente ao valor da operação ao importador oculto (§ 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976), bem como a aplicação da multa de 10% do valor da operação ao importador ostensivo (art. 33 da Lei n. 11.488/2007).

3. A lógica adotada pelo Tribunal de origem faz todo o sentido, uma vez que, com a pena de perdimento da mercadoria decorrente da interposição fraudulenta — seja ela efetiva ou presumida —, o patrimônio que realmente se busca atingir pertence ao importador oculto. Ora, se a própria pena de perdimento decorre justamente da conclusão de que houve interposição fraudulenta, ou seja, de que a importação que se realiza foi custeada por outra pessoa em desacordo com a legislação de regência, é forçoso concluir que a finalidade da norma, no seu conjunto, é atingir o patrimônio do real importador.

4. Tem-se que não foi por outra razão que o legislador, buscando também submeter o importador ostensivo a uma sanção, estipulou a multa de 10% do valor da operação quando ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas ao acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários (art. 33 da Lei n. 11.488/2007).

5. Registre-se, por fim, que não procede a alegativa fazendária de que a multa prevista no § 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 seria aplicada somente quando houver cessão de nome pelo sócio ostensivo, pois a compreensão é que em toda e qualquer importação mediante interposição fraudulenta o importador se vale do seu nome para a realização das operações de comércio exterior de terceiros" [7].

Na esteira desse precedente, destaca-se a liminar deferida pelo TRF da 1ª Região, no qual, de acordo com a exegese adotada pelo relator, o artigo 33 da Lei nº 11.488/2007 estabeleceu pena mais branda para a interposição fraudulenta de terceiros, sem ressalvar a possibilidade de aplicação concomitante de outras penalidades já previstas em lei:

"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA. OPERAÇÕES DE IMPORTAÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO. INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA. DECRETO-LEI 1.455/76, ART. 23. APLICAÇÃO DE PENALIDADE MAIS BRANDA. LEI 11.488/2007, ART. 33. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO SUPERIOR A DEZ POR CENTO DO VALOR DA OPERAÇÃO ACOBERTADA. POSSIBILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.

1. 'O art. 33 da Lei 11.488/2007 estabeleceu pena mais branda (multa) para a interposição fraudulenta de terceiros, sem ressalvar a possibilidade de aplicação concomitante de outras penas já previstas em lei. Assim sendo, não se justifica mais a decretação do perdimento do bem unicamente com base nesse fundamento (…).

2. Na espécie, a pretensão da agravante é de que seja determinada a suspensão da exigibilidade de 90% (noventa por cento) da totalidade do crédito tributário resultante do PAF n. 12466.723650/2011-08. O Juízo de origem deferiu parcialmente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, tendo sido determinada a suspensão da exigibilidade de 90% (noventa por cento) do crédito tributário discutido, decorrente de infração à norma do art. 23, V do Decreto-Lei n. 1.455/76, relativamente à importação de mercadorias no período compreendido entre 09/02/2007 e 27/07/2010, embora no auto de infração impugnado no feito principal aquele período se estenda até 15/02/2011.

3. No Tribunal, o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal foi deferido 'para determinar a suspensão da exigibilidade do valor correspondente a 90% crédito tributário originado do PAF n. 12466.723650/2011-08', tendo o Relator asseverado que "se efetivamente ocorrida a infração, a sanção a que a agravante estaria sujeita corresponderia a multa de 10% (dez por cento) do valor da operação acobertada. Convicção que autoriza concluir, ainda que neste juízo de preambular exame da pretensão ajuizada, que há fortes indícios de que é ilegal a sanção no valor em que aplicada, para todo o período em que a infração foi identificada. Hipótese que evidencia a ocorrência de plausibilidade jurídica necessária e suficiente para autorizar a suspensão da exigibilidade do crédito constituído, relativamente ao valor que exceder ao percentual de 10% (dez por cento), sobre o valor da operação de importação" [8].

Trata-se de interpretação acertada. Em primeiro lugar, porque o importador ostensivo — ao servir como "testa-de-ferro" — é coautor da mesma infração praticada pelo importador oculto. A cessão de nome não é uma ação autônoma, mas parte integrante e indissociável da conduta vedada e sancionada pelo ordenamento jurídico. Logo, não há que se cogitar de concurso formal. O que se tem é uma unidade de fato e uma pluralidade de tipos infracionais concorrentes de aparente aplicabilidade: o § 3º do artigo 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976 e o artigo 33 da Lei nº 11.488/2007.

O concurso aparente é afastado por meio do critério lógico da especialidade. Esse, como se sabe, estabelece que — havendo mais de um tipo infracional com elementos em comum — aplica-se aquele com o maior número de atributos especializantes. O artigo 33 afasta a incidência do § 3º do artigo 23, V, porque descreve especificamente a conduta do importador ostensivo que cede o seu nome para acobertamento da operação de comércio exterior praticada por terceiros. A Lei nº 11.488/2007 — em função da dimensão reduzida do benefício auferido pelo importador ostensivo e da hipossuficiência econômica própria de quem se presta ao papel de testa-de-ferro — estabeleceu uma sanção específica, proporcional à gravidade de sua atuação, valorada objetivamente em 10% [9].

Ademais, a pena de perdimento — transformada em multa substitutiva — não pode resultar em uma consequência jurídica mais gravosa para o sujeito passivo. A responsabilidade pelo perdimento cabe ao importador oculto. Este, na condição de proprietário da mercadoria, é o destinatário legal da sanção, vale dizer, quem deve sofrer os efeitos patrimoniais negativos previstos pela ordem jurídica. A conversão — que nada mais é do que uma hipótese de inaplicabilidade por perda do objeto da pena de perdimento — não pode alterar essa realidade normativa, fazendo com que o importador ostensivo responda cumulatividade por ambas as sanções. A esse – antes e após a conversão — cabe apenas a multa de dez por cento do artigo 33 da Lei nº 11.488/2007. Do contrário, para a mesma infração, a pena substitutiva apresentaria uma dimensão maior que pena substituída [10].

Portanto, embora o Carf tenha admitido a cumulação das penalidades, a matéria está longe de ser pacífica no Poder Judiciário. Espera-se que a confirmação da exegese adotada pela 2ª Turma do STJ no REsp 1.632.509/SP, no acórdão transcrito acima, relatado pelo eminente ministro Og Fernandes.

 


[1] Sobre o tema, cf.: SEHN, Solon. Curso de direito aduaneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 509 e ss.; SEHN, Solon. Comentários ao regulamento aduaneiro: infrações e penalidades. 3. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2023, p. 109 e ss.

[2] “Art. 81. Poderá ser declarada inapta, nos termos e condições definidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, a inscrição no CNPJ da pessoa jurídica que, estando obrigada, deixar de apresentar declarações e demonstrativos em 2 (dois) exercícios consecutivos. (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)”.

[3] 3ª S. 1ª C. 2ª TO. Acórdão nº 3102-00.662. S. 24/05/2010; e 3ª S. 4ª C. 2ª TO. Acórdão nº 3402-002.362. S. 23/04/2014.

[4] Carf. CSRF. 3ª T. Acórdão nº 9303-006.000. S. 29/11/2017.

[5] TRF4. 1ª T. Ac 5015668-94.2017.4.04.7205. Publicação em 21/11/2018.

[6] TRF3. 4ª T. ApCiv 5024327-39.2017.4.03.6100. e-DJF3 de 06/03/2020.

[7] STJ. 2ª T. REsp 1632509/SP. Rel. Min. Og Fernandes. DJe 26/06/2018.

[8] TRF-1ª R. 8ª T. AG 0008663-45.2015.4.01.0000. Rel. Des. Fed. Marcos Augusto de Sousa. e-DJF1 24/02/2017.

[9] SEHN, Curso…, op. cit., p. 521.

[10] SARTORI, Angela; DOMINGO, Luiz Roberto. Dano ao erário pela ocultação mediante fraude – a interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; SARTORI, Angela; DOMINGO, Luiz Roberto (Coord.). Tributação aduaneira à luz da jurisprudência do CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. São Paulo: MP-APET, 2013, p. 64.

Autores

  • é advogado, graduado pela UFPR, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor conferencista no Curso de Especialização em Direito Tributário do Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários), ex-conselheiro do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e autor, entre outras obras, do livro “Curso de Direito Aduaneiro” (2ª ed., Rio de Janeiro: Forense).

  • é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

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