Opinião

Abolição do crime de evasão de divisas pela LCCI (parte 2)

Autor

18 de maio de 2023, 9h20

Continuação da parte 1

Como demonstrado na primeira parte deste artigo, com o advento da LCCI (Lei de Câmbio e Capitais Internacionais — nº 14.286/2021), condutas tipificadas como evasão de divisas passaram a ser submetidas ao crivo exclusivo do processo administrativo sancionador (PAS) na esfera de atuação do Banco Central (BC), o que traduz percepção evolutiva do injusto penal da evasão de divisas, ensejadora de abolitio criminis.

Com relação a modalidade do delito de evasão de divisas conhecida como imprópria, descrita na parte final do parágrafo único do artigo 22, da Lei nº 7.492/1986, pertinente a manutenção, no exterior, de "depósitos não declarados à repartição federal competente", a LCCI contempla disposições capazes de infirmar até mesmo a existência do remanescente ilícito administrativo, como passo a expor.

A denominada evasão imprópria se consuma, de modo instantâneo, quando o dever de informar não se efetivar, ou seja, quando o sujeito ativo não declarar ao BC, de forma tempestiva e adequada, a detenção de disponibilidades no exterior em valores superiores ao limite estabelecido pela autoridade monetária, independentemente da licitude da origem dos recursos.

Do ponto de vista regulatório, a partir da edição da Circular nº 3.071/2001, autorizada pela Resolução 2.911/2001 do CMN (Conselho Monetário Nacional), o BC passou a editar norma onde estabelece a forma, os prazos, os limites e as condições de declaração de bens e valores detidos fora do território nacional por pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no País, a denominada Declaração Anual de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE). Tais ativos são contabilizados nas reservas cambiais brasileiras (artigo 8º, I, da LCCI).

Os dados compilados nas DCBEs são utilizados pela autoridade monetária para monitorar o volume de ativos externos do País. Somadas às reservas internacionais, as estatísticas compiladas via DCBE formam o estoque de ativos demonstrado na Posição Internacional de Investimentos (PII), peça estatística fundamental das contas externas, ao lado do balanço de pagamentos.

Tais informações são consideradas estratégicas na formulação da política econômica e no monitoramento de riscos de liquidez. As estatísticas produzidas a partir destes dados são igualmente utilizadas para o cumprimento de compromissos internacionais firmados pelo Brasil, relativos à adequação aos padrões e pesquisas estabelecidos pelo FMI, além de serem compartilhadas, de forma anonimizada, com o mercado, a academia e a imprensa.

A diretoria executiva do FMI, em 12 de março de 2010, aprovou mudanças nas exigências pertinentes à frequência dos dados da PII, de anual para trimestral, e nesse diapasão, o BC passou a exigir a apresentação de declarações trimestrais, quando os bens e valores detidos por residentes no exterior totalizarem quantia igual ou superior a US$ 100 milhões, ou seu equivalente em outras moedas, nos termos do que dispõe a Resolução BCB 3.854/2010.

Com o advento da Resolução CMN nº 4.841/2020, o piso para a obrigatoriedade da declaração anual passou a ser igual ou superior a US$ 1 milhão, ou seu equivalente em outras moedas.

A Resolução BCB nº 279/2022, que regulamenta a LCCI com disposições sobre fluxos, estoques e prestação de informações de capitais estrangeiros no exterior, revogou expressamente a regulamentação supracitada, mas manteve os pisos declaratórios e a periodicidade das declarações. Foi ampliado o campo de ilicitude com a equiparação, a capital brasileiro no exterior, de financiamentos, empréstimos diretos e créditos comerciais concedidos no país a não residentes (artigo , paragrafo único).

Por outro lado, foi eliminada a equiparação a capital brasileiro no exterior da moeda estrangeira em espécie detida no país por pessoa jurídica residente, de modo que não serão mais solicitadas informações relativas à manutenção, em tesouraria, de divisas em espécie. O Banco Central tem acesso a essa informação em outras bases de dados, na hipótese de pessoa jurídica financeira [1], e nos demais casos, a informação é considerada estatisticamente irrelevante.

Em síntese, a Resolução BCB n° 279/2022 dispõe que devem ser prestadas informações relativas a: 1) participação em capital de sociedades não residentes; 2) certificados de depósito de valores mobiliários (BDRs) emitidos por sociedades não residentes; 3)  cotas de fundos de investimento no exterior; 4) títulos de dívida emitidos por não residentes; 5)  empréstimos e financiamentos concedidos a não residentes; 6) depósitos em instituições não residentes; 7) créditos comerciais concedidos a não residentes; 8)  imóveis localizados no exterior; 9) ativos virtuais; 10) derivativos negociados no exterior; 11) receitas de exportações mantidas no exterior e sua utilização; 12) rendas de capitais brasileiros no exterior; e 13) patrimônio fora do País, cuja titularidade foi transferida por qualquer arranjo, revogável ou não, a agente fiduciário no exterior, para administração em favor de beneficiários residentes especificados.

Atualmente, a situação típica geradora do dever de agir é a seguinte: estão obrigados a fazer a declaração CBE Anual ao BC pessoas físicas ou jurídicas residentes no país, detentoras de ativos no exterior cujos valores somados totalizarem montante igual ou superior ao equivalente a US$ 1 milhão na data-base de 31 de dezembro; e a declaração CBE Trimestral, o residente que detiver ativos no exterior em valor igual ou superior a US$ 100 milhões, nas datas-bases de 31 de março, 30 de junho e 30 de setembro. Não existe declaração para o quarto trimestre, pois será a data-base da DCBE anual.

Caso os ativos sejam mantidos em conta conjunta ou, por qualquer outra forma, pertençam a duas ou mais pessoas, cada qual deverá considerar o valor integral do bem para fins de enquadramento quanto à obrigatoriedade de apresentar a declaração. Cada declarante informará a apenas a respectiva parcela, mesmo que o valor total declarado, individualmente considerado, seja inferior ao piso de obrigatoriedade.

Expirado o prazo regulamentar de entrega das declarações CBE, o sistema on-line permanece disponível na página do BC. Declarações em atraso podem ser realizadas a qualquer tempo, mas estão sujeitas à penalidade de multa, passível de cobrança em até cinco anos, contados a partir do fim do prazo de entrega de cada declaração.

A Resolução BCB nº 131/2021, que consolida normas sobre o rito do PAS na esfera de atuação da autarquia monetária, faculta ao obrigado a apresentar a DCBE a possibilidade de reconhecer, voluntariamente, o cometimento de ilícito, e optar por um procedimento simplificado, conduzido no sistema eletrônico da autarquia (artigo 67). O infrator optante renunciará ao prazo de defesa e será intimado da decisão para o pagamento da multa. Se houver contestação, o feito tramitará pelo rito ordinário (artigo 69).

A desconexão regulatória ora em evidência ostenta contornos surreais em razão de o BC, na qualidade de ente regulador, qualificar a evasão imprópria como reles infração administrativa de baixo potencial ofensivo, enquanto os tribunais superiores ainda classificam a mesma conduta como grave ilícito criminal, merecedor de reprimenda penal de até 6 anos de reclusão e multa.

Noutro giro, sob o prisma da Lei 13.874/2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado e dá outras providências, proposta de edição e alteração de ato normativo referente à obrigatoriedade de apresentação de DCBE deve ser obrigatoriamente precedida de realização da respectiva análise de impacto regulatório (AIR), para fins de verificação da razoabilidade do ônus causado aos obrigados (artigo 5º).

Depreende-se da exposição de motivos da aludida Resolução BC n° 279/2022, que o Banco Central dispensou a realização de AIR previamente a edição do ato normativo regulamentar, em razão de sua pretensa desnecessidade, "uma vez que se trata de norma eminentemente consolidadora e que as inovações empreendidas reduzem obrigações, resultando em desoneração regulatória". A resolução mencionada, todavia, consolida obrigações estampadas em outros atos normativos onerosos, igualmente editados sem a prévia AIR obrigatória, dispensada com base na mesma fundamentação pouco convincente.

Nos termos do que dispõe o artigo 2º, inciso VI, do Decreto nº 10.411/2020, o BC tem o dever de atualização de seu estoque regulatório, mediante o exame periódico de atos normativos, com vistas a reavaliar a pertinência de sua manutenção ou a necessidade de alteração ou revogação.

A exigência de apresentação de DCBE resulta em expressivo ônus de observância para os obrigados, sujeitos a multas elevadas e outros custos de compliance. As penalidades administrativas de multa relativas à obrigação de prestação de informações estão elencadas no artigo 66 da aludida Resolução BC nº 131/2021, assim como os respectivos critérios de gradação e a causa de aumento de pena (§2º). Os valores são relativamente expressivos e podem chegar a R$ 250 mil, no caso de prestação de informação falsa (artigo 66, VI).

Há fortes indícios de que o custo de observância ultrapassará os pretensos ganhos de qualidade das estatísticas compiladas pela autarquia monetária. O BC dispõe de uma moderna plataforma tecnológica de comunicação com as instituições reguladas e acesso à base de dados complementares, onde as informações exigidas podem ser coletadas de forma alternativa e eficiente. Por outro lado, técnicas estatísticas avançadas permitem a realização de estimativas idôneas com base em dados amostrais, sem perda de qualidade informacional.

Nessa toada, a LCCI estabelece que na regulamentação do requerimento de informações para a compilação de estatísticas macroeconômicas, o BC deverá considerar as melhores práticas internacionais em matéria de padrões estatísticos e a razoabilidade do custo de sua observância para as pessoas físicas e jurídicas obrigadas ao fornecimento de informações (artigo 11, §4º).

A LCCI também dispõe que o BCB poderá firmar convênios para compartilhamento de informações com órgãos e entidades da administração pública federal, consoante suas áreas de competência, observada a legislação sobre o sigilo bancário e fiscal (artigo 17). Nessa ordem de ideias, os dados exigidos pelo BC na DCBE podem ser facilmente obtidos através da Receita Federal, que recebe anualmente informações sobre os ativos detidos no exterior por pessoas físicas e jurídicas residentes no país.

Burocracias desnecessárias nas operações cambiais são igualmente vetadas pela LCCI, a fim de facilitar o fluxo e estoque de valores na arena global, e prevenir abuso de poder regulatório, caracterizado por aumento infundado de custos associados as transações econômicas, que não dizem respeito ao serviço prestado ou bem fornecido. Neste sentido, não poderão mais ser exigidos do cliente documentos, dados ou certidões que estiverem disponíveis nas bases de dados das instituições autorizadas, ou em bases de dados públicas e privadas de acesso amplo (artigo 27).

Com o advento da LCCI, a regulação do BCB e do CMN pertinente a prestação de informações sobre capital brasileiro no exterior deve ser pautada por efetividade dos direitos fundamentais e respeito aos princípios regentes da Administração Pública. A autoridade monetária tem o dever legal de demonstrar, através da pertinente AIR, que não existe outro meio menos gravoso para obter as informações requeridas, sem o que a exigência regulatória que preenche o branco da norma penal referente à evasão imprópria será abusiva e inconstitucional, inclusive na esfera administrativa.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!