Escritos de Mulher

Alterações promovidas pela Lei nº 14.550/23 e a palavra da vítima

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17 de maio de 2023, 9h20

No mês passado, a Lei nº 14.550/23 promoveu importantes alterações na Lei Maria da Penha. Neste artigo, abordaremos as mudanças legislativas que reafirmam a importância da palavra da vítima, em análise ao artigo 19, no qual foram introduzidos os parágrafos 4º, 5º e 6º.

O artigo 19 dispõe sobre a concessão e aplicação das medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei. O parágrafo 4º, recém introduzido pela Lei nº 14.550/23, dispõe, em sua primeira parte, que "as medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas".

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Tal disposição ratifica a importância do relato e da vontade da vítima, bem como a credibilidade de sua palavra, que por muito tempo e em muitos casos fora relativizada. Não raras vezes, a palavra da vítima que buscava a concessão de medidas protetivas de urgência foi considerada insuficiente. Para alguns magistrados, a concessão destas medidas demandaria a apreciação de laudos, documentos, a oitiva de testemunhas.

Mais do que isso, em outros tantos casos, a palavra da mulher que batia às portas do Poder Judiciário em busca de proteção foi ouvida com suspeitas: estaria a vítima pleiteando a concessão das medidas protetivas para auferir apenas e tão somente uma vantagem econômica em procedimento diverso?

Podemos "avançar" ainda mais. Certa vez, estas escritoras que vos escrevem acompanharam uma mulher vítima de violência doméstica — violentada durante 15 anos — que buscava proteção estatal. Feito o pedido para a concessão das medidas protetivas de urgência, sobreveio a manifestação do Ministério Público. Nesta, fora consignado que não havia situação de perigo e que a mulher, na realidade, estaria “descontente” com o fim do relacionamento. Em outras palavras, afirmou-se que o pedido de concessão de medidas protetivas caracterizaria, na realidade, uma tentativa de vingança da vítima. Frise-se: ela havia dado o ponto final à relação.

Por essas e outras, a previsão contida no novel parágrafo 4º do artigo 19 é tão importante. Porque ainda vivemos em uma sociedade patriarcal na qual os homens são privilegiados em detrimento das mulheres, em todos os âmbitos e espaços. Uma sociedade na qual as mulheres são julgadas — mesmo quando estão na posição de vítimas — com base em estigmas enraizados em uma construção social que pode e deve ser desconstruída.

Reconhecendo que a função jurisdicional também reproduz estes vieses inconscientes, a partir de março deste ano as diretrizes contidas no Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero[1], lançado pelo CNJ em 2021, por meio de Resolução do CNJ, tornaram-se obrigatórias para todo o Poder Judiciário nacional.

No prefácio do aludido Protocolo, afirma-se que se trata de instrumento que deve servir de guia para que "o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos".

Sobre a palavra da vítima, o protocolo estabelece que "as declarações da vítima qualificam-se como meio de prova, de inquestionável importância quando se discute violência de gênero" e que "faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual".

O especial relevo da palavra da mulher vítima de violência doméstica e familiar também já fora reconhecido tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. Assim, o parágrafo 4º do artigo 19 vai ao encontro — além do Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero — do posicionamento das Cortes Superiores. [2]

Em sua parte final, o parágrafo 4º estabelece as medidas protetivas de urgência "poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes". Há, portanto, uma presunção do perigo com a transposição da fundamentação da autoridade, que deve justificar o indeferimento da concessão na ausência de perigo.

Além disso, o parágrafo 5º do artigo 19 passou a prever expressamente a autonomia das medidas protetivas de urgência, estabelecendo que "serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência". Ou seja, reconhece-se as medidas protetivas de urgência como medidas satisfativas e autônomas, com natureza jurídica de tutela cível de urgência — pois prescindem da vinculação a um tipo penal específico ou a uma investigação policial em curso.

Na qualidade de medidas autônomas, devem vigorar enquanto subsistir a situação de risco à mulher e esta é, justamente, a disposição do parágrafo 6º, também introduzido ao artigo 19 da Lei Maria da Penha: "as medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes".

E a persistência ou não da situação de risco deve levar em conta, mais uma vez, a palavra da vítima. Este é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça que, em decisão proferida em abril deste ano — com fulcro no Parecer Jurídico emanado pelo Consórcio Lei Maria da Penha, bem como no Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero —, sedimentou que "a revogação de medidas protetivas de urgência exige a prévia oitiva da vítima para avaliação da cessação efetiva da situação de risco à sua integridade física, moral, psicológica, sexual e patrimonial". [3]

Nos termos da decisão, "enquanto existir risco ao direito da mulher de viver sem violência, as restrições à liberdade de locomoção do apontado agente são justificadas e legítimas", pois "o direito de alguém de não sofrer violência não é menos valioso do que o direito de alguém de ter liberdade de contato ou aproximação".

Assim, a Lei nº 14.550/23 trouxe avanços importantes relacionados à concessão, aplicação e manutenção das medidas protetivas de urgência e, consequentemente, à prevenção da violência baseada no gênero.

Falar em medida protetiva de urgência é falar em prevenção. O Brasil desponta entre as nações com o maior número de feminicídios e este, o ápice da violência física contra a mulher, é um delito anunciado. Deriva de um escalonamento da violência. Como tal, deve ser prevenido.

Nesse contexto, as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha — além de salvaguardar a integridade psicológica, moral, sexual e patrimonial das vítimas — salvam vidas.


[2] STF, ARE 694813/RS; STJ, AgRg no AREsp 213796/DF;  STJ, HC 318.976/RS; STJ. AgRg no AREsp 936222/MG.

[3] STJ, AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1775341.

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