Opinião

Gravidade da lesão subjetiva como questão federal relevante: leitura da EC nº 125

Autores

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

15 de maio de 2023, 16h21

A impactante alteração no patrimônio, a pena, a perda de direitos políticos. São essas as consequências possíveis das causas nas quais a Constituição estabelece a presunção de relevância, para fins de admissibilidade de recurso especial.

A "relevância da questão federal", que após a regulamentação da Emenda Constitucional nº 125/2022 as partes precisarão demonstrar para ver julgados seus recursos especiais, é conceito jurídico indeterminado. Tudo bem: a transcendência e a repercussão geral, suas irmãs adotivas na família dos recursos de revista e na dos recursos extraordinários, também o são. Talvez por isso, a doutrina, sem maiores constrangimentos, tenha afirmado de modo quase automático: a relevância é a repercussão geral do recurso especial.

O próprio anteprojeto de lei encaminhado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) ao Senado, para regulamentar a relevância, refere-se a "questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo".

Não parece, no entanto, ser esse o caminho indicado pelo texto da EC nº 125 de 2022.

A EC nº 125 de 2022, ao modo da EC nº 45 de 2004, que estabeleceu a repercussão geral, não se preocupou em apontar os contornos para a concretização do conceito de relevância. De modo diverso da EC nº 45, no entanto, estabeleceu que em algumas hipóteses, expressamente listadas, essa relevância é presumida.

O caso é de presunção; o texto não diz que nos casos listados a relevância será dispensada, mas que será presumida. Não faria sentido, portanto, estabelecer um conceito de relevância que não pudesse abranger as hipóteses de presunção estabelecidas pela própria Constituição.

Parece difícil, no entanto, conciliar todas as hipóteses de presunção e encontrar um denominador comum que permita estabelecer um significado de "relevância" que guarde coerência com as hipóteses da própria emenda. É que, nos termos do atual artigo 105, §3º, com a redação da EC nº 125 de 2022, haverá relevância 1) em "ações penais"; 2) em "ações de improbidade administrativa"; 3) em "ações cujo valor da cusa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos"; “4) em "ações que possam gerar inelegibilidade"; 5) em "hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça"; 6) em "outras hipóteses previstas em lei". São situações as mais variadas.

Em primeiro lugar, fica claro que o conceito de "relevância" a ser editado pelo legislador não poderá coincidir com o da repercussão geral para o recurso extraordinário e o da transcendência para o recurso de revista. Basta ver a presunção de relevância para causas de valor acima de 500 salários mínimos (artigo 105, §3º, III, da CF/1988). É plenamente possível que uma causa com valor muito superior a esse piso não tenha repercussão geral ou transcendência alguma (exceto a suposta transcendência econômica, que é bastante criticável), ficando restrita à esfera patrimonial das partes.

Para visualizar a constatação acima, basta analisar a quantidade de arbitragens societárias que envolvem valores astronômicos no Brasil, e que — por dizerem respeito apenas às partes — ficam resguardadas pelo sigilo arbitral. Se a exorbitância do valor da causa presume a relevância, então relevância não pode ser transcendência. Causas que tenham repercussão apenas para esfera das partes terão, segundo a Constituição, relevância presumida, mesmo sem terem, mutatis mutandis, transcendência ou repercussão geral.

O conceito de relevância é, por si, polêmico. É famosa a afirmação feita de J. J. Calmon de Passos de que "não há injustiça irrelevante!" [1]. Em certo sentido, toda questão federal é relevante, por se configurar como potencial situação de injustiça

De toda sorte, a Constituição optou por usar o conceito de "relevância", e ao legislador infraconstitucional foi incumbida a missão de estabelecer o que seria relevante para fins do filtro da relevância. Em uma interpretação sistemática, pela observação das hipóteses de presunção da relevância estabelecidas pelo próprio legislador constitucional, parece-nos que o conceito de relevância, ao menos se o concebermos com base nas hipóteses previstas na EC 125, teria como denominador comum a seguinte circunstância: a gravidade da repercussão do julgamento equivocado da causa em relação à esfera das partes ou à coletividade.

A relevância, portanto, não seria a replicação para o STJ da ideia de repercussão geral ou de transcendência. O critério com base no valor da causa, em montante de 500 salários mínimos, não possibilita a associação da relevância a essas duas noções. Mas, se olharmos todas as hipóteses de presunção, veremos que o denominador comum é, salvo nas hipóteses de afronta à jurisprudência dominante (quando a Corte exerce função meramente fiscalizadora), a constatação da gravidade da repercussão do julgamento equivocado da causa em relação à esfera das partes ou à coletividade: a impactante alteração no patrimônio, a pena (quiçá privativa de liberdade), a perda de direitos políticos.

Esse é, a nosso ver, o contorno implícito dado pelo novo texto constitucional à relevância da questão federal — e a interpretação que confere maior respeito a esse dado primário: o texto, democraticamente aprovado no Congresso.


[1] PASSOS, J.J. Calmon de. Da arguição de relevância no recurso extraordinário. In: PASSOS, J. J. Calmon de. Ensaios e artigos. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 249 e ss.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, membro do Grupo de Pesquisa Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq FD/UnB) e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • é advogado, doutorando e mestre pela Universidade de Brasília, onde atua como professor voluntário.

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