Opinião

ICMS e transferências interestaduais após a decisão do STF na ADC 49

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11 de maio de 2023, 6h37

O STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu recentemente o julgamento dos Embargos de Declaração na Ação Direta de Constitucionalidade nº 49 (EDs na ADC 49), ratificando sua decisão de mérito no sentido da inconstitucionalidade da cobrança de ICMS sobre a simples transferência de mercadorias entre estabelecimentos das empresas, mas modulando os efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade.

A complexidade que se tornou o deslinde de uma causa aparentemente simples, a ponto de o julgamento do caso ter levado quase seis anos no STF, mesmo havendo jurisprudência consolidada há décadas sobre o tema, é bastante revelador do nível de disfuncionalidade do nosso sistema tributário.

O objetivo do presente texto é resumir os principais pontos desse julgamento, esclarecer algumas das dúvidas mais frequentes em torno do tema e procurar antecipar alguns dos prováveis desdobramentos desse precedente.

Em primeiro lugar, cabe destacar o que foi decidido em linhas gerais pelo STF, tanto no julgamento de mérito da ADC quanto nos embargos de declaração.

Por unanimidade de votos, o STF declarou a inconstitucionalidade da parte final do artigo 12, inciso I, da Lei Complementar n° 87/1996 (LC 87/96), que prevê como fato gerador do ICMS a saída de mercadorias destinadas a outro estabelecimento de uma mesma empresa.

Igualmente por unanimidade, o STF esclareceu que o fato de não haver destaque do imposto não acarreta a necessidade de estorno do crédito de ICMS apropriado na operação anterior, como se poderia imaginar a partir de uma leitura rasa e apressada do artigo 155, §2°, II, "b" da CF/1988 [1]. Como já havíamos antecipado aqui, as transferências constituem meras movimentações físicas de bens no âmbito de uma mesma empresa, e não importam propriamente em operações de circulação de mercadorias na acepção jurídica do termo para se cogitar que sejam operações isentas e não tributadas que acarretam a glosa de créditos. Muito pelo contrário, exigir a glosa, nesse caso, tornaria o imposto cumulativo, pois o custo incorrido com o tributo na entrada da mercadoria acabaria ficando com o estabelecimento adquirente, sem que ocorresse o traslado do ônus tributário na cadeia econômica de circulação do produto.

Mas, como fica a questão do próprio destaque de ICMS nessas transferências de mercadorias após o julgamento dos EDs na ADC 49? Foi esse o ponto de maior divergência entre os ministros no julgamento, pois enquanto todos concordaram com a necessidade de modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, houve dissídio com relação à forma como seria feita essa modulação.

Isso fez com que o julgamento dos EDs na ADC 49 no Plenário Virtual acabasse sem a decretação do resultado. Ele só foi anunciado presencialmente no Plenário do STF, em que foi confirmada a modulação de efeitos, acolhida pela unanimidade de votos, mas com prevalência, por maioria, da solução adotada no voto do relator, ministro Edson Fachin.

De acordo com a posição vencedora, até o início do exercício fiscal de 2024, nada muda e o ICMS pode continuar sendo destacado normalmente nessas transferências, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de julgamento até "a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito".

Na prática, interpretando-se o voto vencedor, parece-nos que existem as seguintes situações possíveis até 2024:

1) Contribuintes que não têm qualquer processo administrativo ou judicial questionando a cobrança de ICMS nas transferências de mercadorias poderão continuar destacando normalmente o ICMS nessas movimentações, com a manutenção e o uso dos respectivos créditos do ICMS incorrido nas operações anteriores e, por coerência, com a apropriação do crédito, por parte do estabelecimento destinatário, do ICMS destacado na transferência, em atenção ao princípio da não cumulatividade do imposto.

2) Contribuintes que têm processos administrativos ou judiciais questionando a cobrança de ICMS nessas transferências: seus processos deverão ser julgados de forma favorável, com o reconhecimento da invalidade da cobrança em atenção à eficácia erga omnes da decisão do STF em sede de ADC, que a eles se aplica de imediato, pois estão expressamente ressalvados da modulação.

3) Contribuintes que não possuem processos administrativos ou judiciais contestando a cobrança do ICMS nas transferências, mas não destacaram o imposto: essa situação parece-nos ser a mais controversa, tendo em vista que não foi expressamente contemplada no voto vencedor proferido nos EDs da ADC 49 e merece uma reflexão mais detida.

Talvez esse último ponto possa até mesmo ser objeto de novos embargos de declaração para que haja manifestação explícita do STF sobre o tratamento tributário a ser dado. Todavia, parece-nos, com base no que já foi decidido pelo STF, que há ótimos argumentos para se defender que esses contribuintes não deveriam ser prejudicados com a possibilidade de cobrança retroativa ou mesmo prospectiva do imposto, inclusive com multa e juros. Isso, porque a própria razão de ser da modulação de efeitos foi, consoante consignado no voto vencedor: "segurança jurídica e interesse social (artigo 27, da Lei n.9.868/1999) que justifiquem eficácia pró-futuro da decisão preservando-se as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes, sobretudo, aqueles beneficiários de incentivos fiscais de ICMS no âmbito das operações interestaduais".

O STF destacou, aliás, que a modulação se deu "no cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal". Nessa ordem de ideias, entendemos que permitir a cobrança do imposto nessas hipóteses significaria desconsiderar a posição do contribuinte que confiou na estabilidade da jurisprudência sedimentada, em nada menos do que três precedentes com eficácia vinculante: na Súmula STJ nº 166, no Resp Repetitivo nº 1.125.133 (Tema 259 do STJ) no RE ARE 1255885 (Tema nº 1.099 da Repercussão Geral), e até mesmo contrariar a própria eficácia imediata e erga omnes do julgamento de mérito da ADC 49.

Além disso, admitir a cobrança retroativa do ICMS nessas hipóteses implicaria uma discriminação odiosa entre aqueles contribuintes que porventura tenham sido autuados pelos Fiscos estaduais e já estejam se defendendo da cobrança administrativa ou judicialmente ao tempo do julgamento, e aqueles que deixaram de recolher o tributo com base na jurisprudência pacífica e, por qualquer motivo, acabaram não litigando com o Fisco porque simplesmente não tinham interesse de agir em face de uma cobrança que não se efetivou.

Na nossa visão, a modulação se deu exclusivamente para uma proteção do Fisco e do contribuinte para se evitar inúmeras ações de repetição de indébito e eventuais glosas de crédito nos estabelecimentos de destino das mercadorias. Como o próprio STF acentuou, o que se quis evitar foi precisamente preservar o tratamento fiscal dado a essas operações realizadas, evitando-se o que a própria Corte chamou de um "indesejável cenário de macrolitigância fiscal". Ora, não parece fazer sentido permitir que se instaure agora tal macrolitigância fiscal, cobrando-se o ICMS em uma situação em que a jurisprudência histórica do STF e do STJ, mais uma vez reafirmada pelo STF, inadmite a cobrança.

Portanto, até 31.12.2023, o cenário deverá permanecer razoavelmente estável, com a preservação do status quo. Mas o que ocorrerá após 1°.1.2024, a data definida pelo STF para o término da modulação de efeitos e início da eficácia plena da declaração de invalidade da cobrança de ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa?

Neste ponto, a partir dos votos da corrente majoritária que se formou no julgamento do ED da ADC 49, é possível vislumbrar algumas perspectivas. O STF sinalizou que a cobrança do ICMS nas transferências não será mais permitida, mas que, em atenção ao princípio da não cumulatividade do ICMS, deverá haver alguma regulamentação que permita a transferência do crédito do ICMS do estabelecimento de origem da mercadoria para o estabelecimento de destino, em linha com o que já havíamos proposto aqui para solução da ADC 49. Caso essa regulamentação não ocorra até 1º.1.2024, os contribuintes poderão continuar se valendo da sistemática atual para transferência do crédito de ICMS. Ou seja, continuarão podendo debitar o ICMS no estabelecimento de origem para creditá-lo no estabelecimento de destino.

A forma pela qual virá essa regulamentação — lei complementar ou convênio interestadual no âmbito do Confaz  talvez possa ser objeto de polêmica, haja vista os votos divergentes sobre esse ponto no STF. Na nossa visão, todavia, o mais relevante é que, independentemente do diploma adotado, haja observância a esse standard mínimo para proteção da não cumulatividade do ICMS. Neste ponto, o STF foi muito prudente ao assegurar que não haja um vácuo normativo criando o cenário indesejado, em que o estabelecimento que transfere a mercadoria acumula créditos de ICMS na entrada da mercadoria e o estabelecimento que a recebe a acumula débitos na saída.

Talvez a melhor solução seja a criação de um sistema binário e alternativo para o contribuinte com as seguintes opções: 1) o contribuinte continua destacando o ICMS sobre o valor da mercadoria na saída em transferência no estabelecimento de origem, aproveitando o crédito de ICMS no estabelecimento de destino; ou 2) o contribuinte não destaca o ICMS na saída da mercadoria, mas transfere apenas o crédito de ICMS originário da entrada no estabelecimento de origem para o estabelecimento de destino.

A opção poderia ser realizada pelo contribuinte de forma autônoma em cada um dos seus estabelecimentos, considerando a situação existente em cada Estado, até pelo fato de o princípio da autonomia do estabelecimento ter sido mantido para essas outras finalidades no julgamento dos EDs na ADC 49.

Assim, respeita-se a opção do contribuinte em cada um de seus estabelecimentos: tanto a possibilidade de contribuintes que pretendam não tributar a operação de transferência, em atenção à decisão da ADC 49, quanto aqueles contribuintes que pretendam continuar destacando o ICMS nessa operação em razão de particularidades de sua operação (ex: créditos presumidos concedidos para centros de distribuição, agregação de valor no estabelecimento de origem, entre outros motivos perfeitamente legítimos).

Como se sabe, essas sistemáticas alternativas de tributação são muito frequentes e perfeitamente admissíveis no Direito Tributário (ex: lucro real ou lucro presumido; declaração de IRPF completa ou simplificada, etc). Até mesmo no âmbito do ICMS, alguns Estados permitem que o contribuinte tenha a opção de não recolher a complementação do ICMS-ST na hipótese de a base de cálculo efetiva da operação ser superior à presumida, desde que opte também por abrir mão do ressarcimento na hipótese inversa. Evidentemente que essa é uma situação mais polêmica, passível de questionamento, como defendemos aqui, mas o fato é que esse regime alternativo foi criado justamente em função de uma decisão do STF no Tema 201 da Repercussão Geral, RE 593849.

Uma coisa é certa: a decisão do STF veio para referendar a jurisprudência histórica a respeito do tema, impedindo-se a cobrança do ICMS em uma situação de mera movimentação física de bens, fora da hipótese de circulação jurídica mercantil de compra e venda, que legitima a incidência do imposto. Até pelo cuidado que a Corte teve ao modular os efeitos da decisão, a intenção foi preservar a estabilidade das relações havidas e consolidadas entre Fisco e contribuinte, bem como o equilíbrio federativo, de forma muito semelhante ao que defendemos aqui em meio ao julgamento.

Isso significa, evidentemente, respeitar o direito adquirido a incentivos fiscais estaduais, muitos dos quais convalidados, no âmbito da guerra fiscal, além, é claro, do princípio constitucional da não cumulatividade do ICMS.

Assim, parece-nos que o melhor caminho da regulamentação sinalizada pelo STF seria continuar zelando por esses princípios tão caros ao sistema tributário. Mesmo no pior cenário, em que essa regulação não venha no prazo assinalado, o Supremo já criou um mecanismo autoaplicável para que segurança e estabilidade normativas sejam resguardadas.

Se foram necessários mais de 50 anos de litígio para que prevalecesse, ao final, uma posição tão singela no âmbito do ICMS, de que simples movimentações físicas não devem ser tributadas, devemos investir, nos próximos anos, tempo e esforços para aprimorar o ICMS e torná-lo um imposto mais simples, verdadeiramente não cumulativo e mais seguro. O sistema tributário não precisa de novos problemas, mas, sim, de novas soluções.

 


[1] Artigo 155. (…)

§2° (…)

(…)

II – a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

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