Opinião

STF, ICMS e transferências interestaduais: uma proposta de solução para a ADC 49

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8 de fevereiro de 2022, 16h06

O STF inicia o ano com um grande desafio para resolver: como conciliar os interesses do Fisco e dos contribuintes em torno da cobrança de ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa. É esse o tema discutido na célebre ADC 49. O mérito da ação está decidido desde abril de 2021, com o reconhecimento da inconstitucionalidade das disposições da LC 87/1996, que preveem a cobrança do ICMS nessas operações. A questão são as implicações práticas dessa decisão, que foram debatidas pelo STF no julgamento dos embargos de declaração ao longo de todo o ano de 2021 sem que se chegasse até o momento a um desfecho. 

O caso reflete bem o nível de complexidade do nosso sistema tributário. Há mais de 50 anos, existe posicionamento do STF e do STJ de que o ICMS não deve ser recolhido nesses casos. Os tribunais entendem que não se verifica o fato gerador do imposto (que pressupõe operações mercantis com troca de titularidade da mercadoria) nessas hipóteses em que há o simples deslocamento físico de bens entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte. 

No entanto, para demonstrar o grau de insanidade da nossa legislação tributária, por diversos motivos, muitos contribuintes são levados a continuar destacando o ICMS nessas operações, por exemplo, porque: 1) essa é a única forma viável de se transferir na prática o crédito de ICMS apropriado no estabelecimento de origem para o estabelecimento de destino; 2) existem benefícios fiscais na forma de créditos presumidos que dependem do destaque do ICMS nessas transações para serem utilizados; ou 3) querem evitar maiores contratempos nas barreiras fiscais.

Em função da jurisprudência existente, a decisão de mérito foi relativamente simples e previsível. O grande problema começou a aparecer quando, em embargos de declaração, tanto o Fisco quanto os contribuintes suscitaram uma série de questionamentos legítimos com relação ao alcance da decisão. Ambos pediram a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade dessas disposições, por uma série de razões, notadamente para se evitar a necessidade de devolução de valores recolhidos, a possibilidade de manutenção de créditos de ICMS na aquisição originária ou nas transferências das mercadorias, e mesmo a necessidade de alteração da legislação de cada estado. 

O STF tem debatido profundamente a matéria e procura dar uma solução razoável ao tema. De uma forma geral, os ministros bem sinalizaram que não deve haver qualquer estorno de crédito de ICMS apropriado na operação anterior quando há simples transferência de mercadorias, já que inexiste nessa hipótese uma operação mercantil que possa ser qualificada de isenção ou não incidência, a autorizar a glosa de créditos. Além disso, a corte atentou para a necessidade de se dar uma resposta à problemática da transferência de créditos entre estabelecimentos para se evitar o acúmulo de créditos em um estado e de débitos em outro.

O ponto mais sensível é o que fazer com todas as transferências tributadas ou não tributadas realizadas antes da ADC 49, ou até que ela venha a ser definitivamente julgada. Nesse ponto, por maior que tenha sido o esforço do STF, não nos parece que as soluções aventadas até o momento façam jus à proteção da segurança jurídica daqueles que confiaram anos a fio na sua jurisprudência e sequer ajuizaram ações para debater tão pacífico tema. Afinal, é difícil haver questão tributária objeto de tantos mecanismos de uniformização de jurisprudência como essa, que está sedimentada na Súmula 166 do STJ, de 14/8/1996, no Resp Repetitivo nº 1.125.133, julgado em 25/8/2010 e no ARE nº 1.255.885, julgado com repercussão geral em 14/8/2020, para reafirmação da jurisprudência. Muitos estados pararam de lavrar autuações sobre essa matéria, o que, na prática, fez com que os contribuintes não ajuizassem novas ações sobre o tema.

Além disso, não se está tutelando os contribuintes que, em razão da eficácia processual imediata e erga omnes da decisão de mérito da ADC 49, em abril de 2021, simplesmente deixaram de destacar o ICMS nessas transações a partir de então. É o cúmulo da insegurança permitir, com a modulação de efeitos, que os estados possam simplesmente cobrar o que os tribunais há anos vinham dizendo que não deveria ser cobrado, em especial quando é justamente isso que o STF mais uma vez confirmou. 

Se alguma modulação há de ser feita, com a concessão do prazo de 12 ou 18 meses para eficácia da decisão, é absolutamente necessário, ao menos, que seja preservado o status quo ante, protegendo-se tanto o destaque de ICMS e subsequente crédito do imposto, em atenção aos que cumpriram à lei, como o não recolhimento de ICMS, em observância ao cenário jurisprudencial há muito pacífico.

Dentro desse contexto, apenas deveria restringir-se o direito dos contribuintes que tributaram normalmente essas operações de se valerem dessa decisão da ADC 49 para, após a publicação da ata de julgamento de mérito em 29/4/2021, pedirem a restituição do indébito (ressalvados os processos administrativos ou judiciais discutindo esse ponto existentes até aquela data).

Por sua vez, ao Fisco deveria continuar sendo vedada a cobrança do imposto que deixou de ser destacado nessas transferências, em atenção à jurisprudência pacífica, reafirmada pela ADC 49.

Por fim, deveriam ser validados os créditos de ICMS aproveitados nesse período e até o final do prazo de 12 ou 18 meses da modulação, abrangendo-se tanto os créditos no estabelecimento de origem  que o STF entendeu que devem ser mantidos, independentemente do destaque ou não de ICMS na simples remessa física  quanto os créditos na entrada do estabelecimento de destino, apropriados em razão de a operação ter sido tributada.

Com isso, na nossa visão, compõem-se de forma mais equilibrada os interesses do Fisco e dos contribuintes nesse caso. Trata-se de uma solução semelhante àquela que a corte adotou na ADI nº 1945, quando resguardou tanto o direito daqueles que recolheram ICMS, quanto dos que pagaram ISS sobre o licenciamento de software até a conclusão do julgamento daquela ação, impedindo-se apenas novas repetições de indébito após o julgamento pelo Pleno do STF, mas validando-se ambas as posições adotadas pelos contribuintes, tidas por aceitáveis, porque amparadas na lei ou na jurisprudência.

É preciso deixar claro que se está falando aqui da ADC 49 e da situação nela em debate: os dispositivos da Lei Complementar nº 87/96. Não se está tratando das situações específicas das legislações estaduais que preveem benefícios fiscais com destaque de ICMS em situações especiais, que não são objeto desse processo e devem ser regidas por essas normas, em especial observando-se o disposto na LC 24/1975, na LC 160/2017 e no Convênio 190/2017.

Com relação à possibilidade da transferência de créditos de ICMS nessas operações sem incidência do ICMS entre estabelecimentos da mesma empresa, talvez o mais conveniente seja admitir que isso possa ser feito de imediato. O fato é que a LC nº 87/1996, ao criar a ficção da autonomia dos estabelecimentos, cindiu uma mesma pessoa jurídica em várias e exigiu tributo nesses simples deslocamentos. É como se o Brasil fosse dividido em feudos, o contribuinte pudesse ser mutilado e o ICMS não fosse um imposto nacional, de tal sorte a não poder consolidar seus créditos ou transferi-los juntamente com as mercadorias, a exemplo do que se faz dentro de cada estado, atendendo-se ao que autoriza a própria lei complementar. O fato é que não há uma omissão da lei. O que existe é uma restrição imposta por ela e declarada inconstitucional pelo STF na ADC 49. Sem prejuízo de os estados disciplinarem a forma mais adequada de se operacionalizar essa transferência e até como um estímulo para que ela seja feita com a maior celeridade possível, em coerência com o próprio julgamento de mérito da ADC 49, deve-se, desde já, reconhecer esse direito do contribuinte.

A verdade é que nesse ponto estamos muito atrasados, pois temos uma visão absolutamente segmentada dos negócios, quando na União Europeia e em outras jurisdições permite-se até mesmo a transferência de créditos entre países e contribuintes distintos quando são participantes de operações integradas (VAT Group).

Com a ADC 49, o STF tem a oportunidade de dar um desfecho razoável e equilibrado a uma controvérsia que dura mais de 50 anos. O tribunal vem se empenhando firmemente nesse propósito. No entanto, diante da complexidade do tema e do seu alcance, é preciso muita atenção a todos os pontos, notadamente à preservação da segurança jurídica, de modo que, a pretexto de resolver uma controvérsia simples e já pacificada, a decisão do STF não termine por instaurar novos problemas que precisarão de outros 50 anos para serem equacionados.

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