Opinião

Estupro como arma da guerra: as violações sexuais na Guerra da Rússia-Ucrânia

Autores

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

  • Isabelle Gibson

10 de maio de 2023, 6h33

O jornal The Telegraph trouxe a público [1], em recente reportagem, relatos da psicóloga Natalia Potseluieva, responsável pelo atendimento de vítimas de violência sexual nos arredores de Kiev, capital da Ucrânia. Os relatos, que não foram oficialmente registrados na polícia [2], narram estupros coletivos, violações a menores de idade diante de seus pais e todo um universo de perversidade e dominação engendrado por soldados russos às mulheres, meninas e homens residentes das localidades ocupadas desde o início da guerra.

A matéria esclarece ainda que a promotora Irina Didenko, que investiga as violações, relata um mesmo modus operandi no qual, os primeiros dois dias de ocupação eram dedicados à instalação das tropas e os estupros são iniciados no terceiro dia. A questão ganhou tamanho destaque que até mesmo o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, disse em um comunicado à imprensa que centenas de mulheres foram estupradas por soldados russos. As autoridades ucranianas se recusaram a fornecer números exatos ou detalhes sobre onde ocorreram os estupros ou a idade das vítimas.

Em outro documento recente sobre os direitos humanos na guerra divulgado pela ONU, foram documentados 133 casos de violência sexual no território da Ucrânia ocupado pela Rússia (vítimas: 85 homens, 45 mulheres e três meninas). Existem evidências de estupros, eletrochoques e espancamento de órgãos genitais, nudez forçada, revistas íntimas, insultos homofóbicos e ameaças de violência sexual [3]

O relatório também revela alguns casos de violência sexual cometidos no território controlado pelo governo da Ucrânia (24 casos, contra 18 homens e seis mulheres). Esses casos consistiram predominantemente em ameaças de violência sexual, especialmente em contextos de prisão, nudez forçada e espancamento de órgãos genitais.

Em cenários de guerra como este é comum que haja uma profusão da prática de diversos crimes, dentre os quais, não raro encontram-se os casos de violência sexual sistemática, que tem por resultado lesões graves à integridade psíquica e física de vítimas, sobretudo de mulheres e meninas [4].

Assim, em períodos de conflitos armados, a dominação dos corpos, sobretudo pelo estupro, aparece como instrumento de propagação de terror e de humilhação coletiva, tanto é que, historicamente, tem-se o registro de estupros, escravidão sexual, mutilação sexual e outras formas de violência sexual em contexto de guerra, como parte do ataque ao opositor. A marca dessa violência é encontrada nas pilhas de corpos de mulheres, que, tal como narrado pelo The Telegraph guardam sinais de mutilação genital e violência sexual [5].

Esse padrão de violência não é novo. No caso da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, no Tribunal de Nuremberg, em 1945, nenhum caso de estupro foi inserido nos indiciamentos, apesar do grande volume de documentação que explicitava a ampla utilização da violência sexual como arma de guerra. Os Tribunais Penais Internacionais, igualmente, ignoraram as evidências de violência sexual até os anos 90, quando as graves violações ocorridas em Ruanda e na antiga Iugoslávia vieram à tona [6].

A partir desses processos, um grande avanço foi o entendimento de que o estupro é uma prática que pode ser utilizada como tática e arma de guerra, ou seja, não é apenas um efeito indissociável da guerra. Assim, em alguns conflitos, grupos armados usam o estupro como estratégia militar para atingir seus objetivos políticos, efetuando operações destinadas a matar não apenas as vítimas, mas também os supostos inimigos. Devido ao estigma extremo associado à violência sexual, muitas vítimas se sentam impotentes, não revelam a violência sofrida e não procuram a ajuda médica, psicológica e jurídica necessária [7].

O Estatuto de Roma, órgão que criou o Tribunal Penal Internacional Permanente, agora sediado em Haia, contém pela primeira vez como a) crime de guerra: qualquer forma de violência sexual que constitua um desrespeito grave às Convenções de Genebra de 1949 e b) crime contra a humanidade: a agressão sexual ou qualquer forma de violência no campo sexual de gravidade comparável, quando cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil [8].

A violência sexual também pode ser reconhecida como genocídio, pois é uma ofensa grave contra a integridade física ou mental dos membros do grupo, desde que  o ato seja cometido com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Apesar dos esforços na tipificação de crimes sexuais e também crimes baseados no gênero no Estatuto de Roma, constata-se que, até o momento, não houve condenação por crime sexual ou crime em razão de gênero no âmbito do Tribunal Penal Internacional [9].

No caso Akayesu, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda emitiu sua primeira condenação de genocídio e crimes contra a humanidade por estupro. Ao definir o estupro, o Tribunal do ICTR considerou o crime como uma forma de agressão com elementos fundamentais que não podem ser definidos na definição mecânica de um objeto ou parte do corpo. 

Assim, o estupro pode ser usado para intimidar, humilhar, humilhar, discriminar, punir, controlar ou destruir uma pessoa. De acordo com essa definição, estupro é "invasão física de natureza sexual, cometido em face de uma pessoa em circunstâncias coercivas. A violência sexual, que inclui estupro, é considerada qualquer ato de natureza sexual cometido por uma pessoa sob circunstâncias que são coercivas" [10].  Essa definição de estupro ajuda a reconhecer que em casos de violência sexual em circunstâncias extremamente desiguais, como a guerra, as circunstâncias são tão coercitivas que o consentimento da vítima não é possível.

Na guerra Rússia-Ucrânia, o padrão identificado no relato das vítimas demonstra que a violência sexual nesta guerra, mais uma vez, não configura casos isolados, mas indica que está havendo o uso sistemático dessa forma de violência. Tais características são ainda mais visíveis em centros de detenção, especialmente pelas evidências de estupros generalizados não só contra mulheres, mas também contra homens [11].

Isso demonstra que, em crimes de guerra, pessoas de qualquer gênero ou orientação sexual podem ser alvo de violência sexual e de gênero, sendo certo que a misoginia, homofobia e o racismo impactam diretamente no cometimento desses crimes [12].

Infelizmente, a guerra continua e tais violações gravíssimas de direitos humanos seguem sendo perpetradas contra a população dos locais em conflito.

 


[2] Na cidade de Bucha, ao menos 24 mulheres relataram estupros à psicóloga, entretanto, nenhuma delas apresentou queixa formal por medo de retaliações do exército russo.

[4] PEREIRA, Isabelle Dianne Gibson. Julgamento De Estupros como Crimes Internacionais: Análise dos Casos Furundžija E Akayesu (ICTY E ICTR). In: BOTTEGA, Clarissa; OLIVEIRA, Fabiano; OLIVEIRA, Mariana Gomes de; GUEDES, Maurício Pires (org.). Instituições e Políticas Públicas. Rio de Janeiro, Pembroke Collins, 2021.

[5] Seguindo o padrão desenhado por Kelly Askin em ASKIN, Kelly. Prosecuting Wartime Rape and Other Gender-Related Crimes under International Law: Extraordinary Advances, Enduring Obstacles. Berkeley Journal of International Law, Vol. 21, 2, 2003.

[6] MOURA, Samantha Nagle Cunha de. Estupro de mulheres como crime de guerra sob as perspectivas feministas. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Universidade Federal da Paraíba, 2016, p. 54-66.

[7] MOURA, Samantha Nagle Cunha de. Estupro de mulheres como crime de guerra sob as perspectivas feministas. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Universidade Federal da Paraíba, 2016, p. 55.

[8] BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm Acesso em 30 abril 2023.

[9] INTERNATIONAL CRIMINAL COURT (ICC). Cases. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/cases?f%5B0%5D=accused_states_cases%3A358 Acesso em 30 abril 2023.

[10] INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA – ICTR. Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu. Case nº ICTR-96-4-T. 2 set 1998. Disponível em: https://www.internationalcrimesdatabase.org/Case/50/Akayesu/#:~:text=On%202%20September%201998%2C%20Trial,ever%20trial%20before%20the%20Tribunal.

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