A importância do encontro em Davos
20 de fevereiro de 2023, 11h20
A sociedade internacional depara-se com uma conjunto de crises simultâneas, dentre elas: aumento do custo de vida, polarização social e política, escassez de oferta de alimentos e energia, crescimento baixo e confrontação geopolítica. A resiliência em superar tais desafios confronta-se também com um cenário de baixo crescimento, investimento e cooperação. Esse cenário é produto de um relatório realizado a partir do resultado de um questionário feito com mais de 1.200 especialistas de diferentes áreas do Fórum Econômico Mundial. Da área acadêmica, negócios, governo, comunidade internacional e sociedade civil [1].

Após dois anos de pandemia do Covid-19, o Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum — WEF) ocorreu em janeiro de 2023, na pequena cidade de Davos, em meio aos Alpes Suíços [2].
O Relatório da WEF de 2023 separa os riscos em três períodos: riscos iminentes para o ano de 2024, riscos de curto prazo para 2025 e riscos de longo prazo, para 2033 (dez anos).
Além disso, o relatório categoriza os riscos em cinco áreas, alocando um risco de maior importância para cada: 1) econômica: risco do aumento da inflação; 2) social: risco do aumento do custo de vida; 3) ambiental: risco da crise de oferta de energia; 4) geopolítica: crise da oferta de alimentos; 5) tecnológica: crise de crime cibernético.
Dentre os principais riscos de curto prazo (iminentes e em dois anos), o aumento do custo de vida é o principal, sendo consequência da crise energética regional na Europa e crise de alimentos na África e Ásia, dependentes das exportações de grãos da Ucrânia e Rússia.
A Guerra da Ucrânia logo no início de um período que poderia ser considerado como pós-Covid-19, causou interrupções significativas nas cadeias de produção. A partir do aumento da população vacinada, houve um aumento do consumo e da demanda por produtos, pressionando a oferta de serviços e produtos. Nesse sentido, as interrupções na produção globalizada, altamente dependente de produtos a baixo custo produzidos na Ásia, com destaque para a China [3].
A escassez na disponibilidade energética (gás e petróleo) e de alimentos, provocou um aumento na pressão dos preços dos produtos básicos no comércio de commodities [4]. Além do impacto da escassez (ou vulnerabilidade) energética na Europa, países dependentes da importação de alimentos provenientes da Rússia e Ucrânia, como grãos, encontram-se em situação crítica, frente ao aumento exponencial dos seus preços [5].
Por outro lado, frente as sanções e proibição de importação do gás russo para a Europa, outros mercados foram largamente favorecidos, como os Estados Unidos [6] e o Qatar [7], via exportação de gás liquefeito, mais caro e com maior custo de transporte.
A inflação dos preços dos produtos básicos apresenta consequências diferentes para os países, uma vez que países desenvolvidos possuem a capacidade de proteger suas economias via medidas monetárias e fiscais (expansão de crédito subsídios), enquanto que países em desenvolvimento não possuem orçamento suficiente a absorver choques negativos em suas economias internas. Essa posição também foi ressaltada no relatório do WEF [8].
Interessante observação no relatório é a alegação do retorno de riscos "antigos", ou seja, aqueles que são de conhecimentos dos atuais líderes, por terem convivido com tais crises em suas gerações. Dentre eles, podem ser citados o risco de confronto geopolítico e o temor pela utilização de armas nucleares, em virtude da invasão russa na Ucrânia, a crise de aumento de preços de alimentos e energia, bem como inflação e custo de vida a deteriorar a renda dos indivíduos. Essa realidade possui forte relação com eventos de polarização política e revolta social. A escolha por governos extremistas, baseados em retórica agressiva, é resultado da deterioração da democracia e utilização de práticas populistas.
Contudo, o relatório evidencia a preponderância de riscos de longo prazo relacionados ao fracasso de implantação de medidas de mitigação e adaptação sobre a mudança climática. Dessa forma, indica-se que há um certa cumulação de crises na atualidade a afastar (ou reduzir) a preocupação com efeitos da mudança climática a fim de atender às crises de curto prazo, tais como inflação, energia e alimentos.
O afastamento da atenção a potenciais crises ambientais e localizadas como de longo prazo, indica a disposição dos Estados em atender a questões de curto prazo e a evitar a necessidade de reformas estruturais em suas estruturas econômicas, como a transição energética, revisão de políticas de subsídios a indústrias danosas ao meio ambiente, reforma do modelo de transporte público de modelo individual para processo de locomoção sustentável, além de implantação de medidas de suporte ao pequeno agricultor e pesqueiro.
A indicação nos questionários aplicados pelo WEF de que a mudança climática constitui um risco de longo prazo, conforme visto no relatório, também indica certa deturpação de um entendimento de que mudanças estruturais poderiam aguardar alguns anos a serem debatidas [9].
Em outras palavras, seria uma crença de que seria possível resolver questões imediatas como a Guerra da Ucrânia e inflação e, somente depois, debater e aplicar medidas ambientais. Esse entendimento é errôneo, haja vista que o planeta está na iminência de alcançar o ponto de não-retorno, quanto ao aquecimento global [10].
Exemplos que demonstram a urgência das questões ambientais se inserem no risco de extinção de espécies [11], aumento dos desmatamentos como o observado na Amazônia, principalmente no estado do Pará [12], o retorno de investimentos em infraestrutra de extração de carvão, como na Alemanha [13], e a redução de incentivos de carros elétricos em virtude de eminente falta de disponibilidade energética [14].
A evidência dos riscos apurados conforme entendimento de líderes políticos, representantes de empresas e de ONGs não foi acompanhada de declarações importantes no evento em janeiro de 2023 [15]. Ressalta-se que o WEF é uma organização privada com sede em Genebra, Suíça, com o objetivo de congregar chefes de Estado e de Governo e empresas em um fórum para debater questões de interesse global na área tecnológica e econômica. Contudo, o WEF não se trata de uma organização internacional e os países não se constituem como membros a tomar decisões em conjunto.
A exemplo, a Rússia, por decisão da organização do WEF, não foi convidada a participar do evento, o que seria uma perda de representatividade, uma vez que o processo de paz e fim das hostilidades necessita colocar ambas as partes em diálogo construtivo [16].
Por outro lado, a organização do evento não havia impedido a Rússia de participar nos eventos anteriores quando apoiava o governo ditatorial da Síria, cuja situação de conflito interno ainda permanece em hostilidades [17].
A invasão russa na Ucrânia consiste em violação do princípio da integridade territorial previsto na Carta de São Francisco de 1945. Por outro lado, a posição privada do WEF é essencialmente eurocêntrica, cujos conflitos em território europeu possuem maior importância que outras questões críticas em outros continentes, como conflitos na RDC, República Centro-Africana, Burkina Fasso, Sudão do Sul, Somália, Haiti, Myanmar e Mali.
Questão que ficou marcante em 2023 foi a ausência de chefes de Estado e de Governo considerados de maior importância, em termos militares e econômicos. A chefe da Comissão Europeia e o Chanceler da Alemanha foram os principais nomes presentes, sem a presença dos chefes de Estado dos Estados Unidos, Brasil, Índia e China [18].
Dessa forma, o evento se constitui como uma vitrine interessante a demonstrar o posicionamento dos Estados, como ocorreu com a presença do Xi Jinping em 2017, em meio ao governo Trump e sua orientação ao protecionismo comercial [19]. Contudo, resta a questão se o evento poderia realmente contribuir para a solução de crises internacionais.
Quanto a questão da sustentabilidade, a chegada de grande quantidades de jatos privados para a pequena cidade nas montanhas suíças foi criticada por ONGs de proteção ao meio ambiente [20].
A população suíça também criticou o gasto de recursos públicos a assegurar a segurança do local e outros gastos relacionados com o evento, como também o envio de policiais e militares suíços a fim de garantir a segurança do local [21]. Por se tratar de evento privado, a justificativa suíça pelo dispêndio público se enquadraria na questão da magnitude do evento, demonstrando que a Confederação Helvética seria um local adequado para eventos de grande porte, com benefício quanto o retorno financeiro proveniente dos hotéis e restaurantes. De forma semelhante, o evento possui como único objetivo para a Suíça manter a sua característica de boa anfitriã? E qual seria a sua atuação internacional frente ao seu princípio da neutralidade? Tais questionamentos são importantes uma vez que a Suíça assumiu a cadeira de membro não-permanente no Conselho de Segurança da ONU para o período de 2023-2024 [22].
Nesse sentido, é necessário estabelecer definições claras sobre o que consiste em uma organização internacional frente a existência do WEF, um fórum dedicado à interação entre empresas e Estados. O Fórum Econômico Mundial, portanto, é essencialmente um "club d'élite transnationale" [23] que, de fato, não contribui para o processo democrático de debate de questões sociais e econômicas de importância global. Em outras palavras, é ausente a legitimidade do WEF em tratar de tais temas, não se igualando em outros fóruns como o G20 ou mesmo quanto aos trabalhos da ONU e OMC. De forma semelhante, seria um pouco contrassenso supor que os CEOs, reunidos em Davos por três ou quatro dias, estivessem preocupados em resolver questões globais como mudança climática, fome, miséria e desigualdade social.
[1] WORLD ECONOMIC FORUM. Global Risks Report 2023. January 11, 2023. Disponível em: <https://www.weforum.org/reports/global-risks-report-2023/>. Acesso em: 1 fev. 2023.
[2] WORLD ECONOMIC FORUM. World Economic Forum Annual Meeting. January 16-20, 2023. Disponível em: <https://www.weforum.org/events/world-economic-forum-annual-meeting-2023>. Acesso em: 1 fev. 2023.
[3] UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT. World Investment Report 2022. June 9, 2022. Disponível em: <https://unctad.org/system/files/official-document/wir2022_en.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2023.
[4] HURST, Luke; HUET, Natalie. Eurozone inflation dropped for a third month. Which countries in Europe are still feeling the pinch? February 1st, 2023. Disponível em: <https://www.euronews.com/next/2023/02/01/record-inflation-which-country-in-europe-has-been-worst-hit-and-how-do-they-compare>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[5] UNITED NATIONS NEWS. Global food imports on track to reach all-time high: FAO. November 11th, 2022. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2022/11/1130467>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[6] MOENS, Barbara; Vela, Jacob H.; BARIGAZZI, Jacopo. Europe accuses US of profiting from war. Politico. November 24, 2022. Disponível em: <https://www.politico.eu/article/vladimir-putin-war-europe-ukraine-gas-inflation-reduction-act-ira-joe-biden-rift-west-eu-accuses-us-of-profiting-from-war/>. Acesso em: 1 fev. 2023.
[7] HUBBARD, Ben. The West's Scramble for Gas Could Enrich and Empower Tiny Qatar. The New York Times. May 16, 2022. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2022/05/16/world/middleeast/russia-gas-ukraine-qatar.html>. Acesso em: 1 fev. 2023.
[8] Sobre o tema no WEF, vide: WHITING, KATE. Cost of living: This chart shows how the price of products has risen in the US. May 25, 2022. Davos 2022. Disponível em: <https://www.weforum.org/agenda/2022/05/cost-of-living-price-rises/>. Acesso em: 1 fev. 2023.
[9] HERSHER, Rebecca. The U.S. pledged billions to fight climate change. Then came the Ukraine war. May 14th, 2022. Disponível em: <https://www.npr.org/sections/goatsandsoda/2022/05/14/1098000374/the-u-s-pledged-billions-to-fight-climate-change-then-came-the-ukraine-war>. Acesso em: 2 fev. 2023; MEREDITH, Sam. The Ukraine war has upended the energy transition — and it’s not good news for the planet. May 20th, 2022. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2022/05/20/ukraine-crisis-what-does-russias-war-mean-for-global-climate-goals.html>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[10] HARRIS, Donna. How the war in Ukraine derails future climate negotiations: Can we put ourselves back on track for COP27? September 2022. Disponível em: <https://www.opml.co.uk/blog/how-war-ukraine-derails-future-climate-negotiations-back-track-cop27>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[11] UNITED NATIONS NEWS. UN climate report: It’s "now or never" to limit global warming to 1.5 degrees. April 4th, 2022. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2022/04/1115452>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[12] INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA. Desmatamento na Amazônia cresceu 56,6% sob governo Bolsonaro. 2 de fevereiro de 2022. Disponível em: <https://ipam.org.br/desmatamento-na-amazonia-cresceu-566-sob-governo-bolsonaro/>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[13] DW. Germany reactivates coal-fired power plant to save gas. August 8th, 2022. Disponível em: <https://www.dw.com/en/germany-reactivates-coal-fired-power-plant-to-save-gas/a-62893497>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[14] RTS. Les restrictions imposées aux voitures électriques en cas de pénurie font réagir. 12 décembre 2022. Disponível em: <https://www.rts.ch/info/suisse/13622138-les-restrictions-imposees-aux-voitures-electriques-en-cas-de-penurie-font-reagir.html>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[15] RTS. Un WEF de Davos sans tête d'affiche, mais "avec de la substance" se termine. 20 janvier 2022. Disponível em: <https://www.rts.ch/info/economie/13699030-un-wef-de-davos-sans-tete-daffiche-mais-avec-de-la-substance-se-termine.html>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[16] SWISSINFO. WEF guest list reflects world geopolitical and economic woes. January 13th, 2023. Disponível em: <https://www.swissinfo.ch/eng/business/wef-guest-list-reflects-world-geopolitical-and-economic-woes/48196822>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[17] CNBC. It’s Putin's "moment" all over the Middle East, says Hermitage Fund's Bill Browder. January 21th, 2020. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2020/01/21/davos-russia-and-putin-rising-all-over-the-middle-east-bill-browder-says.html>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[18] CNN BUSINESS. Davos draws record crowds, but its relevance is fading. January 16th, 2023. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2023/01/16/business/world-economic-forum-davos-deglobalization/index.html>. Acesso em: 2 fev. 2023; HEATH, Ryan. Who's not coming to Davos. Politico. January 16th, 2023. Disponível em: <https://www.politico.eu/article/davos-world-economic-forum-guest-list-politics-business/>. Acesso em: 2 fev. 2023; REID, Jenni. Just one G-7 leader will join the Davos elite this year as regular people battle cost-of-living crisis. January 13th, 2023. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2023/01/13/germanys-scholz-only-g7-leader-set-to-attend-davos.html>. Acesso em: 2 fev. 2023; POWER, John. Is globalisation dead? At Davos, that’s the big question. Al Jazeera. January 20th, 2023. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/economy/2023/1/20/is-globalisation-dead-at-davos-thats-the-big-question>. Acesso em: 2 fev. 2023; THAROOR, Ishaan. The worry in Davos: Globalization is under siege. The Washington Post. January 17th, 2023. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/world/2023/01/17/davos-globalization-wef-economic-seige/>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[19] GOODMAN, Peter. In Era of Trump, China’s President Champions Economic Globalization. The New York Times. January 17th, 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/01/17/business/dealbook/world-economic-forum-davos-china-xi-globalization.html>. Acesso em: 2 fev. 2023.
[20] SWISSINFO. Greenpeace blasts number of private jets heading to WEF. January 13th, 2023. Disponível em: <https://www.swissinfo.ch/eng/business/greenpeace-blasts-number-of-private-jets-heading-to-wef/48201912>. Acesso em: 2 fev. 2023..
[21] LE MATIN. Jusqu'à 5000 soldats pour la sécurité du WEF à Davos. 9 janvier 2023. Disponível em: <https://www.lematin.ch/story/jusqua-5000-soldats-pour-la-securite-du-wef-a-davos-881362241707>. Acesso em: 2 fev. 2023..
[22] RTS INFO. La Suisse démarre son mandat au Conseil de sécurité de l'ONU. 3 janvier 2023. Disponível em: <https://www.lematin.ch/story/jusqua-5000-soldats-pour-la-securite-du-wef-a-davos-881362241707>. Acesso em: 2 fev. 2023; BUSSARD, Stéphane. La Suisse ne doit pas aller au Conseil de sécurité à reculons. Le Temps. 2 janvier 2023. Disponível em: <https://www.letemps.ch/opinions/suisse-ne-aller-conseil-securite-reculons>. Acesso em: 2 fev. 2023..
[23] GRAZ, Jean-Chirstophe. Qui gouverne ? Le Forum de Davos et le pouvoir informel des clubs d'élites transnationales. A contrario, 2003/2 (Vol. 1). Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-a-contrario-2003-2-page-67.htm>. Acesso em: 2 fev. 2023.
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