Escritos de Mulher

A mãe e os pacotes de fraldas: Célia e a realidade das mulheres encarceradas

Autor

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

10 de maio de 2023, 18h33

"Ninguém sabe onde esses homens deixam seu coração – posto que o tenham –, mas sem dúvida depositam-no toda manhã em algum lugar, antes de mergulhar nos problemas que angustiam as famílias." Assim Honoré de Balzac se refere aos magistrados, em seu livro A Menina dos Olhos de Ouro, no qual descreve as "fisionomias parisienses" e os diversos profissionais que circulavam pela Cidade Luz do século 19.

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Com todo o respeito aos excepcionais juízes que honram a toga, e ao próprio ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça, impossível não lembrar dessa passagem de Balzac ao ler sua decisão que negou, em parte, habeas corpus da Defensoria Pública de Minas, no dia 6 de maio (HC 225.706/MG). A defesa pretendia ver reconhecida a atipicidade da conduta de Célia, uma "mãe solo" com um trio de filhos, que furtou três pacotes de fraldas nas Lojas Americanas, avaliados em R$ 120, e os devolveu depois. Concedeu o ministro, em parte, o remédio heroico, para autorizar o cumprimento da pena – de 1 ano e 4 meses de reclusão e 11 dias multa — em regime aberto. No entender do julgador:

"Outrossim, somada a contumácia delitiva específica, acrescento que descabe concluir ser ínfimo o valor dos bens subtraídos — 3 pacotes de fraldas, avaliados em R$ 120,00 —, equivalente a mais de 10% do salário mínimo vigente à época da conduta (12/08/2017, R$ 937,00), não sendo a recuperação da res furtiva capaz de desconstituir o dano ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal. Assim, em vista dos pressupostos criados pelo Supremo para aplicação da teoria da insignificância, mostram-se serem consideráveis a reprovabilidade da conduta e a lesão ao bem jurídico tutelado, de modo a inviabilizar a observância do princípio".

Impressiona que esse tenha sido, também, o entendimento do Juízo de primeira instância, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e, até, do Superior Tribunal de Justiça. Em que lugar todos esses magistrados depositaram seus corações ao despertar?

Haverá quem pondere que a decisão, ao menos, concedeu à paciente o direito de cumprir a pena em regime aberto (a decisão originária a mantinha no regime semiaberto no qual, via de regra, a presa deve dormir na prisão).

De fato, o regime aberto é menos gravoso do que as agruras de um sistema penitenciário construído por homens, para homens, e apenas (mal) adaptado para o sexo feminino. Um local sem qualquer perspectiva de gênero, o que torna a privação de liberdade ainda mais cruel para as mulheres.

Todavia, ainda que muitos estados convertam o regime aberto em prisão domiciliar (em Minas assim o é), de toda forma a pena mantida pela mais alta corte do país é demasiado dura para aquela que, não tendo outra escolha, sucumbiu ao desespero de tentar assegurar ao menos um mínimo de dignidade e higiene aos seus filhos menores. O furto dos três referidos pacotes de fraldas — crime sem violência ou grave ameaça — repita-se, sequer foi levado a efeito, pois eles foram devolvidos na mesma ocasião. Para que manter uma condenação criminal por valor tão insignificante?

A atipicidade da conduta é evidente e não justificaria condenação criminal, menos ainda a pena privativa de liberdade. Ainda que possa permanecer com seus filhos (o que não seria possível no cárcere), Célia terá dificuldades de auferir renda lícita para sustentá-los, enquanto permanecer em cumprimento de pena, e mesmo depois disso.

São muitos os empecilhos práticos que impedem a empregabilidade de pessoas presas e egressas do sistema prisional. A título de exemplo, é impossível emitir título de eleitor, enquanto ainda não extinta a pena privativa de liberdade, documento normalmente exigido nas entrevistas laborais. Não bastasse, o preconceito é imensurável.

Argumentar-se-á, talvez, que isso é um problema social, e não do sistema de Justiça Criminal. Não é verdade. O elevado encarceramento feminino alimenta um círculo vicioso: quanto mais mulheres são presas — muitas vezes primárias e sem antecedentes — mais são alijadas do mercado de trabalho, mais acabam se dedicando ao mundo do crime por absoluta ausência de outra perspectiva profissional. "A gente sai do sistema, mas o sistema não sai da gente", disse-me certa vez uma detenta, marcada pela chaga eterna do encarceramento. Por isso, a prisão — e qualquer tipo de condenação criminal — deveria ser a exceção, não a regra.

Na pesquisa "Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro", que realizamos em 2015 [1] na UFRJ, a maioria das entrevistadas era responsável pelo sustento do lar (19% integralmente e 22% em parte) e afirmou que a razão pela qual veio a delinquir estava relacionada a dificuldades financeiras.

Não bastasse, o encarceramento empobrece ainda mais as mulheres. Segundo o CadÚnico, em 2018, a média per capita familiar mensal das mulheres encarceradas era de R$ 40, valor inferior aos já baixos R$ 100 das mulheres livres identificadas pelo referido Cadastro.

Nesse cenário, não raro elas acabam arregimentadas pelo mundo do tráfico de drogas: no Brasil, 54,85% das mulheres estão presas por esse tipo de crime (Depen, 2022) [2]. As propostas são sedutoras, pois mesmo as mães podem praticar a atividade de mercancia, instalar um ponto de vendas de entorpecentes em sua residência, transportá-los e comercializá-los enquanto cuida de seus filhos, sem que precise praticar qualquer ato de violência para a realização do ilícito.

Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.

Não à toa, o Brasil possui a terceira maior população prisional feminina do mundo (atrás, apenas, de Estados Unidos e China): 42.694 mulheres e meninas presas em regime provisório ou condenadas, segundo dados de 2022, da World Female Imprisonment List [3]. Um posto que não nos orgulha. Um índice que não para de crescer: de 2000 a junho de 2022, houve um aumento de 512% no número de encarceradas [4].

Muitas delas estão presas provisoriamente, como ressaltou o Ministro Ricardo Lewandowski no memorável voto proferido no Habeas Corpus coletivo 143.641, que concedeu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes:

"Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da corte, uma falha estrutural que agrava a 'cultura do encarceramento', vigente entre nós, a qual se revela pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças".

Tal decisão, contudo, apesar de tomada pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, é frequentemente ignorada por nossos tribunais. Não raro, o que se vê são grávidas, lactantes ou com filhos delas dependentes, aguardarem presas o julgamento de seus processos, pelos quais, ao final — meses ou anos depois —, podem ser absolvidas ou condenadas a uma pena não privativa de liberdade.

Os magistrados possivelmente desconhecem o fato de que não há estrutura mínima de saúde para as grávidas no Sistema: não há médicos e as frequentes demoras no atendimento podem ser fatais. Ao contrário de se solidarizarem com as gestantes, algumas agentes — mulheres, mães — culpam as presas por trazer ao mundo um filho no cárcere e despejam sobre elas toda a crueldade de seu mal exercido poder. Que sistema é esse que não se sensibiliza nem com gritos de parto? Também elas depositam seus corações em algum lugar no raiar do dia?

São frequentes os partos nas celas ou nas viaturas — estas só chegam após uma súplica generalizada. Nos hospitais, as presas, em geral, dão à luz ou amamentam algemadas — verdadeira tortura psicológica imposta por agentes e acatada por profissionais de saúde, evidenciando que a pena imposta às mulheres é muito superior à privação de liberdade.

Não bastasse a crueldade do Estado, tais mulheres muitas vezes não encontram apoio nem no âmbito familiar. Mesmo quando ingressam no mundo do crime por amor ou por medo dos companheiros, são abandonadas por eles quando detidas. Se não houver outra mulher — mãe, avó, irmã — para cuidar de seus filhos, a família se desfaz.

Esse efeito do encarceramento feminino faz das unidades prisionais verdadeiros "cemitérios de mulheres vivas", no dizer de Nelson Rodrigues, algo que não possui equivalência no universo masculino. Abandonadas à própria sorte, sem visitas, as presas sonham com os mais elementares itens de higiene e limpeza, invariavelmente não fornecidos pelo Estado. Enquanto isso, na prisão ao lado, centenas de mulheres varam a madrugada, enfrentam filas e revistas vexatórias para visitar seus filhos e companheiros, levando todos os mimos cuja entrada seja autorizada pelo sistema.

Em um ambiente predominantemente masculino, as presas são invisíveis e silenciadas e, como disse Joana Suarez, transformadas em "números" e "sobreviventes" [5]. Ariano Suassuna dizia que "bom mesmo é ser um realista esperançoso", mas é difícil ver luz no fim do túnel, se nem mesmo no mês das mães o nosso Supremo Tribunal Federal teve compaixão diante do manifesto estado de necessidade de três crianças e das angústias de uma família.

 


[1] FERNANDES, Maíra; BOITEUX, Luciana; PANCIERI, A. C. ; CHERNICHARO, L. . MULHERES E CRIANÇAS ENCARCERADAS: UM ESTUDO JURÍDICO-SOCIAL SOBRE A EXPERIÊNCIA DA MATERNIDADE NO SISTEMA PRISIONAL DO RIO DE JANEIRO. In: !3o. Women's World Congress / 11o. Fazendo Gênero, 2017, Florianópolis. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women?s Worlds Congress (Anais Eletrônicos). Florianópolis-SC: UFCS, 2017. v. 1. p. 1-13.

[4] https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNWQ0ODM1OTQtMmQ2Ny00M2IyLTk4YmUtMTdhYzI4N2ExMWM3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9

Autores

  • é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC-Rio e da FGV-Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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