Opinião

Encarceramento como manifestação do necrodireito no Brasil

Autores

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

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  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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9 de maio de 2023, 14h16

No dia 30 de março de 2023 o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou a ADPF 334 e decidiu, por maioria, que a prisão especial é inconstitucional. Esse julgamento retomou as discussões, sempre necessárias, a respeito da situação carcerária no Brasil.

Em textos sobre a decisão do STF, escritos nesta revista, autores como Lenio Streck [1], Marcelo Aith [2] e Gina Ribeiro Gonçalves Muniz [3] questionam a decisão e apontam a situação de falência do sistema prisional brasileiro e como a recente decisão pode piorar esse cenário.

Apesar de a questão do sistema carcerário brasileiro já ter sido analisada na ADPF nº 347, oportunidade em que fora reconhecido o estado de coisas inconstitucional, tendo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive, determinado a implementação de medidas ágeis e eficientes para a resolução da questão, a situação de superlotação e violação de direitos continua latente.

Diante de tal situação, questiona-se se a ausência de políticas públicas direcionadas à resolução das questões do encarceramento, reflete, na prática a existência do necrodireito no Brasil.

Inicialmente, destaca-se que, em termos conceituais, o necrodireito seria o uso de mecanismos jurídicos para se constituir uma sociedade em que o Estado determina quem é ou não digno de viver.

O termo "necrodireito" foi idealizado por José Ramón Nervaz Hernandes [4] (2017) e pode ser compreendido, em poucas palavras, como "o direito que mata". A análise sobre essa temática parte de uma construção teórica de que o sistema estatal não contempla tudo e todos, deixando vácuos em razão de uma omissão, ocasionando a morte de pessoas, geralmente indivíduos pertencentes aos grupos vulneráveis.

O necrodireito se materializa, portanto, quando essa política de morte, permeada pela correlação entre os pontos característicos da biopolítica, da necropolítica e do estado de exceção é assimilada pela norma jurídica, desde a sua criação até a aplicação e interpretação. Isso porque essas experiências se inscrevem, cada vez mais, na lógica da política dominante, coexistindo com a normalidade democrática.

Sobre esse ponto, o professor Pedro Serrano [5], ao tratar sobre a temática do autoritarismo líquido e as novas modalidades de práticas de exceção, explica que os mecanismos autoritários adotados pelo poder político estão se constituindo através uma lógica própria. Assim, afirma que estão se operando duas formas de Estado que convivem simultaneamente, qual seja, um Estado democrático "que se realiza formalmente na Constituição e está acessível apenas a uma parcela da sociedade aquela economicamente incluída", e um Estado de exceção, "que não se assume juridicamente como tal, mas que é adotado como técnica de governo, a que também podemos chamar de governança permanente de exceção".

Para Serrano [6] "não há mais a interrupção do Estado democrático para a instauração de um Estado de exceção". Ou seja, a realidade excepcional não se apresenta mais como uma suspensão temporário do ordenamento jurídico, mas sim, como uma realidade que coexiste dentro da rotina democrática.

Destaca-se que, essa coexistência da realidade excepcional dentro da rotina democrática se dá através de leis, atos ou condutas estatais. Segundo Serrano, essas formas de manifestação comporiam o denominado autoritarismo líquido, que seria uma espécie de manifestação mais fluída dessas medidas excepcionais, sem a necessidade de instauração de um governo de exceção típico.

Assim, há a implementação de medidas excepcionais dentro de um cenário de aparente normalidade democrática. Nesse contexto, não há necessidade de instauração de um regime de exceção típico, pois essa nova lógica de atuação política é mais eficaz, justamente por ocorrer em meio a um cenário de anunciada normalidade das instituições.

Esmar Filho/Agência CNJ
Além de mais eficaz, essa lógica é também mais perigosa, porque se externaliza em meio a uma ideia de que as instituições estão em pleno funcionamento e que os direitos humanos estão sendo respeitados em sua plenitude, enquanto as violações sistemáticas ocorrem, muitas vezes fundamentadas no próprio ordenamento jurídico ou a interpretação dada a ele.

Justamente nesse contexto destaca-se que necrodireito pode ser materializado quando a política de morte, permeada pela correlação entre os pontos característicos da biopolítica, da necropolítica e do estado se exceção, é transformada em norma jurídica, desde a sua criação até a aplicação e interpretação.

Seguindo essa lógica de exceção, conforme expressa José Ramón Narváez [7], em obra específica sobre o tema, o Necrodireito subsiste como um modus operandi, como uma atitude e como um sistema, que pode ser compreendido pelo menos de três maneira evidentes: primeiro, quando todos os operadores jurídicos ajustam a peça imediata de um grande maquinário cujos cálculos de subsistência baseiam-se em danos colaterais, bodes expiatórios e relatos minoritários que, atualmente, parecem muito numerosos, ou seja, quando a atuação do Poder Judiciário demonstra uma seletividade e uma ausência de preocupação com dos danos colaterais que resultarão de suas ações; segundo: quando se tornam regular o "estado de exceção permanente", nos termos desenvolvidos por Agamben [8], em que qualquer um pode morrer para que o sistema sobreviva; e por fim, quando o Estado calcula as mortes como uma variável para que o sistema continue funcionando.

O necrodireito se manifesta quando as garantias inerentes ao devido processo legal, aos direitos humanos, ao acesso à justiça e todas as demais pedras de toque do sistema de justiça estão formalmente postas, ao tempo em que se opera, sob uma lógica implícita, a gestão daqueles indivíduos considerados indesejáveis.

Alexandre Araújo Costa [9] traz como conclusão do seu estudo sobre Judiciário e interpretação que o ordenamento jurídico apresenta em seus textos normas que reconhecem uma série de direitos, mas que, na prática, não passam de promessas abstratas. O que se nota, ademais, é que o sistema de Justiça, através das ações de seus agentes, oferece a fundamentação para a legitimação e institucionalização da política de morte dos indesejáveis, ou seja, daqueles grupos vulneráveis.

Nesse sentido, José Ramón Narváez Hernández expõe que o necrodireito subsiste através de um discurso inconsciente inserido no operador do direito que não consegue perceber os danos colaterais advindos do sistema. O autor menciona a questão nazista, em que todas as mais diversas atrocidades foram realizadas e foi efetivamente aplicada uma política de morte, sendo que tudo isso se operava sob o manto da legalidade. Todas as práticas realizadas no período tinham uma base legal e os agentes agiam de acordo com o que previa o ordenamento jurídico à época.

E é justamente dessa forma que se materializa o necrodireito, quando as políticas de morte e extermínio estão enraizadas no ordenamento jurídico, findando por legitimar e legalizar essas práticas, à medida em que não se questiona aquilo que está posto nas leis e legitimado pela ação dos agentes e das instituições.

Observa-se, com isso, que as instituições não servem aos fins para os quais foram criadas, havendo um desvirtuamento de sua finalidade e a legitimação de uma política em que o direito aceita uma margem justificável de mortes, como uma forma de garantir o funcionamento de todo o ordenamento.

Nesse ponto, segundo Araújo e Pompeu [10], sabe-se que o Estado de Direito não é capaz de tratar a todos de forma exatamente igual; no entanto, o Estado deve ser garantidor de condições dignas a todos os seus cidadãos e não apenas a parcelas singulares.

Por fim, quando se observa os casos práticos corriqueiramente ocorridos no Brasil, percebe-se que essa lógica do necrodireito está inserida na lógica de atuação do estado, manifestando o caráter suicidário do Estado brasileiro, na medida em que legitima práticas que expõem seus próprios cidadãos (parte componente da sua essência) a uma lógica de convívio com políticas de morte e extermínio.

Feitas tais considerações, retoma-se ao ponto inicial deste texto citando-se a situação do encarceramento no país como uma manifestação do necrodireito no Brasil. Esse fenômeno pode ser melhor compreendido através da correlação com o processo de eleição dos criminosos como inimigos, que, no Brasil, iniciou-se com a guerra às drogas, mas nos dias atuais, estende-se, de forma geral, à criminalidade como um todo.

Essa lógica se justifica, pois, segundo Serrano, "a figura do inimigo deixou de estar dispersa por toda a sociedade e, hoje, se identifica com a figura mítica do 'bandido', o agente da violência, aquele que quer destruir a sociedade e que, necessariamente, se confunde com o preto, pobre, morador da periferia". Assim, sob a alegação de se combater esse inimigo o Estado se destitui da sua função de garantidor de direitos fundamentais e passa a atuar como um verdadeiro agente da exceção, suspendendo aqueles direitos, por meio de seus mecanismos legais e atuações sistêmicas.

A lógica do necrodireito no Brasil se verifica, dessa forma, inicialmente, pela eleição/identificação daqueles que serão considerados inimigos e sobre os quais recaíram as medidas excepcionais. Em seguida, há toda uma atuação do sistema de justiça e do aparato estatal para aplicar as medidas excepcionais em desfavor desse inimigo.

Retornando ao ponto inicial desta proposição, a situação do sistema prisional brasileiro merece um alerta, uma vez que revela indicativos de problemas sociais mais graves, inclusive, como já dito, reconhecido pelo STF, por meio da ADPF 347, como um Estado de Coisas Inconstitucional. Ademais, não há, na prática, ações concretas e políticas públicas direcionadas à resolução da questão, o que demonstra, em termos concretos que, no tocante à situação prisional do Brasil, o sistema estatal não contempla a todos, deixando vácuos em razão de uma omissão, ocasionando permanentemente a violação sistemática de direitos básicos de uma específica e bem delimitada parcela da população.

 


[4] HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. Necroderecho. México. Ed. Libitum, 2017.

[5] SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo líquido e as novas modalidades de prática de exceção no século XXI. THEMIS: Revista da Esmec, v. 18, n. 1, p. 197-223, 2020.

[6] SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo líquido e as novas modalidades de prática de exceção no século XXI. THEMIS: Revista da Esmec, v. 18, n. 1, p. 197-223, 2020.

[7] HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. Necroderecho. México. Ed. Libitum, 2017.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

[9] COSTA, Alexandre Araújo. Judiciário e interpretação: entre Direito e Política. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas (Unifor), Fortaleza, v. 18, n. 1, p. 9-46, jan/abr. 2013. Disponível em: <https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/2448/0>.

[10] ARAÚJO, Liane Maria Santiago Cavalcante e POMPEU, Gina Vidal Marcílio. Dignidade humana e combate ao racismo ambiental: acordo regional de Escazú e Programa E-Carroceiros, em Fortaleza, Ceará. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL] (unoesc.edu.br). Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/20090.

Autores

  • é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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