Opinião

Fundamento de ordem processual no julgamento do indulto a Daniel Silveira

Autores

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

  • Leonardo David Quintiliano

    é advogado professor especialista em Direito Digital pela FMP mestre em Direito pela Universidade de Lisboa doutor em Direito do Estado pela USP e associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

3 de maio de 2023, 11h19

O STF (Supremo Tribunal Federal) retomou o julgamento que irá decidir a validade do decreto de indulto que foi concedido pelo ex-presidente da Jair Bolsonaro ao deputado federal Daniel Silveira [1]. Quatro arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs, 964, 965, 966, 967) foram apresentadas pelos oartidos Rede Sustentabilidade, PDT (Partido Democrático Trabalhista), Cidadania e PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), respectivamente.

As petições trazem argumentos diversos, mas principalmente apontam que houve desvio de finalidade e abuso de poder. As teses mencionam que o presidente concedeu o indulto a um aliado político com base em alegações que não se sustentavam diante dos fatos, como: "comoção social" e "defesa da liberdade de expressão". O decreto presidencial foi exarado um dia depois da decisão do Supremo, em notória resposta adversa ao posicionamento da Corte.

O procurador-geral da República, em sua sustentação oral, alegou que o decreto é legítimo, pois se trataria de uma decisão privativa do chefe de Estado, ato dito de império, não administrativo, logo, incabível a alegação de desvio de finalidade. O argumento encontra respaldo na doutrina constitucional. Há um motivo lógico para não haver uma revisão de atos do chefe do Poder Executivo, em especial quando estes são próprios de chefia de Estado, a necessária observância da separação dos poderes.

As três funções de Estado encontram sua origem na Antiguidade e foram inspiradas nas três formas clássicas de governo: monarquia, aristocracia e República. Políbio, historiador grego, escreveu sobre a teoria da Constituição Mista, estudo que serviu de subsídio para Montesquieu trazer a ideia da Tripartição do Poder em sua célebre obra Do Espírito das Leis [2]. O Poder Executivo trás características da monarquia; o Poder Legislativo da República e o Poder Judiciário da aristocracia.

A característica central da monarquia que foi adotada e se traduz na essência do Poder Executivo é ser uma forma de governo exercida por uma pessoa capaz de tomar decisões difíceis de forma rápida, em tempo hábil para que sejam eficazes. Um único centro de poder produz eficácia na forma de governar. Ou seja, de forma bastante simples, o chefe do Poder Executivo é eleito para tomar decisões que não são e não devem ser, em regra, objeto de deliberação sob pena do esvaziamento da principal competência do Poder Executivo.

No caso em questão, todavia, sequer há a necessidade discussão da legitimidade da decisão, fato que poderia ensejar um longo debate a respeito de uma possível violação à Separação dos Poderes. É despiciendo lembrar que as decisões do STF formam precedentes e, na hipótese em análise, um precedente muito perigoso que pode ser utilizado posteriormente para interferir em decisões tomadas pelo chefe do Poder Executivo de forma indevida.

Com efeito, como já escrevemos aqui nesta ConJur [3], o referido decreto possui um erro formal insanável, consistente na manifesta ausência de amparo legal, uma vez que o artigo 734 do Código de Processo Penal, que serve de fundamento expresso para o ato, não está mais em vigor no nosso sistema, tendo sido revogado tacitamente já sob a vigência da Constituição de 1946 e jamais expressamente repristinado. Não bastasse, a matéria sofreu ab-rogação com o advento da Lei de Execução Penal. Esclarecemos.

Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook

Consoante explicado no artigo acima citado, o texto constitucional prevê como prerrogativa do presidente da República conceder o indulto: "Artigo 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…) XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;".

A legislação que regula o indulto presidencial é o Código de Processo Penal, de 1941, que em seu artigo 734 assim preceitua: "A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente".

Contudo, esse trecho in fine, foi revogado pela Constituição de 1946.

O que antes era incondicional, passou a contar com uma condição: a audiência dos órgãos instituídos em lei. É o que passou a prever o artigo 87, XIX, daquela Constituição, in verbis:

"Artigo 87 – Compete privativamente ao presidente da República:
XIX – conceder indulto e comutar penas, com audiência dos órgãos instituídos em lei.

A partir da entrada em vigor da Constituição de 1946, portanto, o indulto e a comutação da pena continuaram previstos, mas sendo vedada sua concessão espontânea pelo presidente da República. Isso, porque a nova Constituição passou a exigir expressamente a audiência dos órgãos instituídos em lei." [4]

Desta feita, o mérito do decreto não precisaria sequer vir à lume nos votos, bastando  observar-se a questão de ordem pública. Uma norma revogada, obviamente, não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Logo, o Decreto Presidencial seria nulo, já que pautado em legislação revogada e não repristinada expressamente no ordenamento jurídico atual.

Por fim, é relevante pontuar que o decreto trouxe em seu bojo a afirmação de que o indulto individual faz parte do sistema de freios e contrapesos [5]. É altamente recomendável que a Corte se valha do julgamento para deixar sedimentado qual é a função do indulto e o que deve ser considerado pelo chefe do Poder Executivo ao exará-lo:

"O indulto individual não tem o condão de corrigir um julgado do Poder Judiciário. O manejo do instrumento não se dá em relação ao Poder Judiciário, mas sim do Chefe de Estado em relação ao condenado." [6]

O sistema de freios e contrapesos não pode ser manejado como forma de um Poder usurpar a competência de outro, de acordo com o conceito e com a teoria que defendemos [7]:

"O indulto individual não pode servir para usurpar a competência precípua de outro Poder. Os instrumentos do sistema de freios e contrapesos servem para coibir os abusos, não para praticá-los. A ideia, de per se, de que a decisão do Supremo Tribunal Federal não foi acertada não atribui a prerrogativa ao Chefe de Estado de se substituir à Corte e realizar um novo julgamento." [8]

Assim, o decreto deve ser considerado nulo, porquanto expressamente fundamentado em dispositivo revogado, o que não retira da Corte a oportunidade de consignar a finalidade do instituto do indulto e os limites constitucionalmente estabelecidos para o seu manejo. 

 


[2] Vide "A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos", SANTOS, Adriana Cecilio M. dos. Ed. Amanuense: São Paulo, 2022.

[5] "Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;".

[6] SANTOS, Adriana Cecilio M. dos, A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. Ed. Amanuense: São Paulo, 2022, pg. 197.

[7] O sistema de freios e contrapesos é um mecanismo formado por diversos dispositivos constitucionais que possibilitam a interferência de um poder em outro, sem usurpar a competência precípua daquele poder.

A função do sistema é evitar o abuso de poder. Para tanto, os mecanismos servem para contrabalancear decisões (contrapesos) ou suprimir atos, bem como retirar agentes públicos (freios) que violem preceitos estabelecidos no ordenamento jurídico.

[8] Ob. Cit. pg, 199.

Autores

  • é professora de Direito Constitucional, advogada, especialista em Direito Constitucional, mestra em Direito, autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos e consultora de Direito Constitucional da Comissão de Observatório Eleitoral da OAB-SP.

  • é professor de Direito Constitucional e Administrativo, advogado, mestre pela Faculdade de Direito de Lisboa e doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Autor de obras jurídicas.

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