Opinião

Indulto espontâneo foi revogado em 1946 e não repristinado na Constituição de 1988

Autores

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

  • Leonardo David Quintiliano

    é advogado professor especialista em Direito Digital pela FMP mestre em Direito pela Universidade de Lisboa doutor em Direito do Estado pela USP e associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

4 de maio de 2022, 17h01

O decreto de concessão de graça (ou indulto individual) ao deputado federal Daniel Lucio da Silveira expedido pelo presidente Jair Bolsonaro e publicado no dia 21 de abril de 2022 gerou muito debate acerca de sua moralidade, legalidade e constitucionalidade.

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Parte da Assembleia Constituinte de 1946
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Há, todavia, uma questão prejudicial ao tema, que pouco ou nada se tem ventilado: o indulto espontâneo, previsto no artigo 734, parte final, do Código de Processo Penal, de 1941, foi revogado pela Constituição de 1946, e não repristinado pelas Constituições seguintes, em especial a de 1988. Segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), toda repristinação deve ser expressa.

Para melhor compreensão dessa tese, é necessário recorrer à evolução legislativa da matéria.

O decreto em análise enunciou seu fundamento no artigo 734 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

Art. 734 – A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente.

Tal redação é de 1941, data da publicação do Código de Processo Penal. À época, era vigente o artigo 75, "f", da Constituição de 1937, in verbis:

Art. 75 – São prerrogativas do Presidente da República:
(…)
f) exercer o direito de graça.

Quando da promulgação do artigo 734 do atual CPP, portanto, a norma constitucional que amparava o instituto do indulto individual não criava qualquer restrição ao seu uso, razão pela qual a regra era plenamente constitucional.

Ocorre que a Constituição de 1946 alterou o instituto. O que antes era incondicional, passou a contar com uma condição: a audiência dos órgãos instituídos em lei. É o que passou a prever o artigo 87, XIX, daquela Constituição, in verbis:

Art. 87 – Compete privativamente ao presidente da República:
XIX – conceder indulto e comutar penas, com audiência dos órgãos instituídos em lei.

A partir da entrada em vigor da Constituição de 1946, portanto, o indulto e a comutação da pena continuaram previstos, mas sendo vedada sua concessão espontânea pelo presidente da República. Isso, porque a nova Constituição passou a exigir expressamente a audiência dos órgãos instituídos em lei. A lei, no caso o Código de Processo Penal, previa em seus artigos 736 e 737 a manifestação do Conselho Penitenciário e do diretor do estabelecimento penal.

Em razão disso, pode-se dizer que o artigo 734, in fine, do Código de Processo Penal, não foi recepcionado pela Constituição de 1946, uma vez que a concessão espontânea é incompatível com o artigo 87, XIX, daquela constituição.

Ao comentar a Constituição de 1946, Pontes de Miranda assim afirma sob a revogação tácita do indulto espontâneo, incondicionado:

Sob a Constituição de 1891, o poder de perdoar não tinha limite quanto à iniciativa. Tem-no hoje. É indispensável a audiência dos órgãos competentes. Quais são esses órgãos a Constituição não disse, e faz-se mister, a respeito, que se legisle para todo o Brasil.[1]

A norma não recepcionada é considerada revogada. Essa é a lição do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard, no julgamento da ADI 2, de sua relatoria, assim ementada:

CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. (STF, ADI – 2, Rel. Min. Paulo Brossard – grifo nosso)

A norma revogada, quer expressa, quer tacitamente, não é automaticamente repristinada no direito brasileiro, como reconhece o §3º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942):

Art. 2º  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.(…)
§ 3º  Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.

É claro que embora a lei utilize o vocábulo "lei", ele deve ser tido em sua acepção ampla, ou seja, toda norma inovadora, geral e abstrata introduzida no ordenamento pelos veículos constitucionalmente previstos (como aqueles previstos no atual artigo 59 da CF). Incluem-se, portanto, as normas constitucionais.

Desse modo, durante a vigência da Constituição de 1946, o indulto espontâneo previsto no artigo 734 do CPP era inconstitucional (eventual uso do instituto sem questionamento quanto à sua constitucionalidade não o torna constitucional).

Posteriormente, a Constituição de 1967 manteve a regra da Constituição de 1946:

Constituição de 1967
Art 83 – Compete privativamente ao Presidente:
XX – conceder indulto e comutar penas, com audiência dos órgãos instituídos em lei.

A EC 1/69, no entanto, alterou a redação do dispositivo, a partir de então alocado no inciso XXII do artigo 81, para incluir a expressão "se necessário":

XXII – conceder indulto e comutar penas com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.

Ou seja, com a inclusão da expressão, "se necessário", a redação original do artigo 734, in fine, do CPP, passou a ser constitucionalmente possível. Como visto acima, contudo, o direito brasileiro não admite a repristinação tácita, tampouco a constitucionalidade superveniente.

Isso significa que embora a concessão do indulto espontâneo tenha sido compatibilizado com a Constituição de 1969, sua revogação tácita pela Constituição de 1946 impede sua aplicação.

Em 1984 foi editada a Lei de Execução Penal (LEP), a qual previu em seus artigos 188 a 192 um procedimento específico para o indulto individual, sempre condicionado a provocação (artigo 188), a obtenção de parecer favorável do Conselho Penitenciário (artigos 189-190) e a tramitação pelo Ministério da Justiça (artigo 192). Destaque-se o artigo 188:

Art. 188. O indulto individual poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa.

Ou seja, a expressão "se necessário" contida no então inciso XXII do artigo 81 da Constituição de 1969 não se aplicava ao indulto individual, mas somente ao indulto coletivo, previsto no artigo 193:

Art. 193. Se o sentenciado for beneficiado por indulto coletivo, o Juiz, de ofício, a requerimento do interessado, do Ministério Público, ou por iniciativa do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, providenciará de acordo com o disposto no artigo anterior.

A redação da Constituição de 1969 foi mantida no texto constitucional de 1988 (artigo 84, XII). Diante da manutenção dos textos aplicáveis ao indulto, a interpretação se mantém. Diz a Constituição que o indulto poderá ser concedido pelo Presidente (ou autoridades que obtiverem sua delegação, nos termos do parágrafo único do artigo 84), com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.

A expressão "se necessário", torna o dispositivo uma norma de eficácia contida, ou seja, autoriza o legislador infraconstitucional a regulamentar e, eventualmente, restringir o alcance da competência atribuída ao presidente da República.

Portanto, o referido termo faz uma remissão obrigatória à legislação infraconstitucional e só poderia ser interpretada como compatível com uma avaliação discricionária do presidente da República se a lei não dispusesse de forma contrária. Ocorre que a LEP, posterior à Constituição de 1969, estabelece que a audiência dos órgãos instituídos em lei, em especial o Conselho Penitenciário e a direção do estabelecimento prisional, é obrigatória para o indulto individual.

Inexiste na LEP, portanto, previsão de indulto espontâneo. O presidente da República sequer tem a iniciativa para apresentar o pedido, sendo o termo autoridade administrativa reservado a quem detém a competência para administrar o estabelecimento prisional de execução da pena. É, portanto, a autoridade que administra o estabelecimento.

Alguns caminhos processuais podem ser utilizados para questionar o decreto. Qualquer um dos legitimados ativos universais[2] pode se utilizar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), para pedir a declaração de não recepção da norma inconstitucional, haja visto que o artigo 734 in fine do Código de Processo Penal foi revogado pela Constituição de 1946.

Repise-se que o artigo 734 in fine do CPC já não era válido quando da alteração promovida pela Constituição de 1969, especialmente quando da edição da Lei de Execução Penal, que regulamentou de maneira diversa o instituto do indulto, não prevendo a concessão espontânea.

Como visto na ementa supracitada, o controle de constitucionalidade de normas pré-constitucionais já suscitou grande debate no Brasil e no exterior, como explicam Meireles, Wald e Mendes.[3]

Destacamos que no julgamento da ADI 2, o STF assentou o entendimento de que a colisão entre norma pré-constitucional e a Constituição superveniente não se resolve pelo controle de constitucionalidade, mas segundo princípios de direito intertemporal, como o princípio lex posterior derogat priori (lei posterior derroga lei anterior). Prevaleceu o entendimento do Min. Paulo Brossard:

É por esta singelíssima razão que as leis anteriores à Constitui­
ção não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter
existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que, por outro princípio elementar, a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponbam  (ADI 2-DF, rei. Min. Paulo Brossard, DJU 2 1 . 1 1 1997).

Ainda segundo Meireles, Wald e Mendes, a orientação jurisprudencial do STF sob a Constituição de 1967/1969 não deixava dúvida de que a compatibilidade do Direito anterior com norma constitucional superveniente haveria de ser aferida no âmbito do direito intertemporal (Rp 946-DF, rei. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ, 82(1 )/44; Rp 969-DF, rei. Min. Antônio Neder, R TJ 99(2)/544.[iv]

Também indo ao encontro da exigência de expressa repristinação, entendeu o STF, no julgamento da ADI 2.158/DF, que:

Em nosso ordenamento jurídico não se admite a figura da constitucionalidade superveniente. Mais relevante que a atualidade do parâmetro de controle é a constatação de que a inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor. Caso contrário, ficaria sensivelmente enfraquecida a própria regra que proíbe a convalidação (ADI 2.158, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 16.12.2010)

Assim, a discussão sobre a revogação do artigo 734 in fine do Código de Processo Penal pela Constituição de 1946 pode ser deduzida via ADPF, com fundamento no inciso I do parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999.

Sem embargo, considerando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é defensável que a declaração de não-recepção da norma pré-constitucional possa ser incidentalmente discutida pela via do Mandado de Segurança Coletivo. Aqui o objeto principal seria o próprio decreto, considerando o direito líquido e certo de não reconhecer a validade de um ato fundado em uma lei que não está mais vigente no ordenamento jurídico pátrio trazendo no bojo da ação, de forma incidental, a discussão da revogação da norma.

É pertinente destacar esse ponto, para reforçar que o manejo de medidas que questionem a norma, em sede de controle difuso, não implicam a inobservância do critério de subsidiariedade exigido para ajuizamento da ADPF. O critério, como consabido, é analisado considerando-se, apenas, as demais ações próprias do controle concentrado. A possibilidade de manejo do mandado de segurança coletivo para situações em que se questionam incidentalmente a legalidade ou constitucionalidade de atos governamentais (cf. MS 34070 MC/DF).

Além dessas hipóteses, caberia ao Ministério Público Federal aguardar a aplicação do artigo 192 da LEP:

Art. 192. Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o Juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação.

Segundo a LEP, a discussão sobre a legalidade do indulto poderá ser questionada nos termos dos artigos 194 et seq.

No que toca ao uso da ação popular, a medida poderia ser utilizada, se o pedido principal for a anulação do ato por carecer de fundamento legal. A ausência de amparo legal atenta contra a moralidade pública, tema que é alcançado pelo manejo da ação popular.

O pedido da ação teria por objeto requerer a anulação do ato por violar o princípio da moralidade, considerando-se que atos ilegais são considerados imorais. O debate nesse caso não está sendo proposto em relação ao teor do decreto, mas sim tratando da questão de sua validade. Para que o ato seja reconhecido como ilegal, incidentalmente, cabe a análise da questão da não-recepção do artigo 734, in fine, do Código de Processo Civil.

Conclui-se, portanto, que, diante da revogação do artigo 734, parte final, do Código de Processo Penal, pela Constituição de 1946, e de acordo com o artigo 84, XII, da CF-88 c.c. artigo 188 et seq. da Lei de Execução Penal, inexiste atualmente a possibilidade de o presidente da República conceder indulto individual ex officio por decreto, sem provocação por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa (artigo 188 da LEP), bem como sem audiência do Conselho Penitenciário (artigo 190 da LEP). O decreto de concessão de graça (ou indulto individual) ao deputado Silveira pode se sujeitar, assim, a controle de constitucionalidade ou de legalidade por meio de ações de controle concentrado ou difuso.

[1] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960, t. 3, p. 119.

[2] Art. 103, CF:
 I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
(…)
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;

[3] MEIRELLES, Lopes Hely; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 36 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 420.

[4] Ibid., p. 425.

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