Opinião

Um aceno à integridade e coerência do Direito Sancionador: o RHC 173.448

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

1 de maio de 2023, 19h17

Recentemente, no RHC 173.448, o colendo Superior Tribunal de Justiça entendeu por trancar uma ação penal, em virtude de ausência de justa causa, face à absolvição do acusado na ação de improbidade administrativa correlata, pela ausência de elemento subjetivo (dolo específico).

No caso, restara demonstrado na ação de improbidade correlata que o Ministério Público não teria se desincumbido de seu ônus probatório, ao não comprovar que determinada pessoa, na qualidade de terceiro (artigo 3º da lei 8.429/99), teria agido dolosamente para induzir ou concorrer para a prática do ato de improbidade administrativa ou dele se beneficiado diretamente.

Note, ademais, que com as alterações promovidas pela Lei 14.230/21, há agora previsão expressa no sentido de que não se aplicam, na ação de improbidade administrativa, a imposição de ônus da prova ao réu, na forma dos §§ 1º e 2º do artigo 373, do Código de Processo Civil (artigo 17, § 19, inciso II, Lei 8.429/92).

Dessa forma, como a ação penal recaiu sobre o mesmo fato, a mencionada decisão do STJ entendeu, acertadamente, pela ausência de justa causa, argumentando que a inexistência de dolo na esfera civil não pode ser ignorada na esfera penal, uma vez que a tipicidade discutida no âmbito penal não admite a modalidade culposa. Vejamos:

"A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça cristalizou-se no sentido de que as esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara criminal" (EDcl no AgRg no REsp nº 1.831.965/RJ, relatora ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 18/12/2020.). É pertinente, todavia, na esfera penal, considerar os argumentos contidos na decisão absolutória na via da improbidade administrativa como elementos de persuasão (REsp n. 1.847.488/SP, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 26/4/2021)

(…)
Nessa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado."

No caso, a decisão da Corte Cidadã fora cirúrgica: não é possível que o dolo da conduta do acusado sobre os mesmos fatos discutidos na ação de improbidade administrativa, que reconhecidamente não fora demonstrado, revele-se depois no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato. Na prática, quem atua e milita nesta área sabe que é quase regra que um agente público seja processado, pelo mesmo fato, na esfera penal e cível, muitas vezes, com as mesmas testemunhas de acusação e defesa, e seguindo a mesma holding de argumentação sendo comum, inclusive, haver compartilhamento de provas e, em outros casos, até a realização de uma única audiência para o julgamento destas duas esferas distintas, tamanha à semelhança entre os processos, acusação, defesa, etc.

Desta forma, é impossível rejeitar que há, no mínimo, um elo principiológico que une estas duas esferas, por questão de coerência e integridade sistêmica, tendo tal fato se tornado mais nítido com as alterações promovidas pela Lei 14.230/21. Em outro artigo, inclusive, já tínhamos iniciado esta discussão, mencionando os possíveis reflexos da (nova) Lei de Improbidade no Direito Penal [1].

Trata-se, em nosso entendimento, de uma questão de lógica, coerência e integridade do sistema sancionador, sendo claro, portanto, que deve haver um diálogo entre estas espécies, de modo a garantir a integridade e coerência do seu gênero, qual seja, o direito sancionador lato sensu.

A lógica, portanto, é que se deve pensar um regime jurídico de núcleo comum à potestade sancionatória da administração pública e à potestade penal do Poder Judiciário, entendendo assim pela integridade do Direito Sancionador, à luz dos princípios gerais que fundamentem o ramo do Direito punitivo único.

Nesse sentido, não há como se desconsiderar uma decisão na seara cível que reconhece, sobre os mesmos fatos, a ausência de elemento subjetivo por parte do acusado em um processo de improbidade administrativa. A comunicação neste caso é, pois, inevitável, justamente por uma racionalização de um sistema de princípios, conciliando os fundamentos e limites para aplicações de sanções administrativas e penais, buscando manter a coerência e integridade do sistema.

Entender de maneira diversa seria permitir, portanto, que um sujeito não seja punido por improbidade administrativa, pelo reconhecimento da ausência de comprovação de elemento subjetivo necessário ao tipo e, lado outro, possa ser punido no âmbito penal, que deve ser a ultima ratio, pelo mesmo fato. Como uma conduta que não é passível de punição no âmbito do direito administrativo sancionador, por ausência de ofensa mínima ao bem jurídico tutelado, pode ser punida no âmbito do direito penal?

Note-se, portanto, que a discussão não é sobre possível vinculação da esfera penal à esfera civil, com ofensa à independência de esferas, como alguns podem querer argumentar, mas sim, sobre coerência, integridade e lógica do sistema sancionador. Este é o ponto.

Ademais, é imperioso observar que, acertadamente, o RHC 173.448 não vinculou a ação penal à ação civil; apenas utilizou-a para a análise probatória da justa causa da ação penal, uma vez que versavam sobre os mesmos fatos. Portanto, reconhecida a ausência de elemento subjetivo em ação de improbidade correlata sobre os mesmos fatos, e sendo este elemento subjetivo um dos elementos do tipo, a consequência óbvia é que deixa de existir uma das condições da ação penal.

Isto porque, para a instauração de uma eventual ação penal, requer-se que a peça acusatória preencha os requisitos do artigo 41, do Código de Processo Penal, e conforme já mencionamos em outro artigo [2], à luz dos ensinamentos de James Goldschmidt (2018, p.57) [3], a carga desta prova cabe exclusivamente ao órgão acusador. Em outras palavras, é ônus exclusivo da acusação preencher estes requisitos mínimos.

Em outras palavras, conforme leciona Gustavo Badaró [4], o membro do Ministério Público deve apresentar a justa causa como condição de possibilidade da ação, exigindo-se suporte probatório mínimo que se relaciona com os indícios de autoria, materialidade de uma conduta típica e alguma prova de seu dolo específico. Na inexistência desses elementos, não é possível o recebimento da ação penal.

Portanto, não há como negar a existência de realidades normativas que se apresentam em uma perspectiva unitária, ou seja, normas que veiculam um conteúdo mínimo que deve ser observado em qualquer forma de exercício do poder punitivo estatal, seja na esfera penal, seja na esfera administrativa, e especialmente, quando versem sobre os mesmos fatos e mesmas partes.

Observa-se que, no caso ora em análise, o STJ não vinculou a ação penal à decisão na ação de improbidade administrativa, e nem poderia. Não obstante, de forma acertada, utilizou-se desta como instrumento de análise da justa causa, especificamente quanto aos requisitos da tipicidade do crime, no que diz respeito ao elemento do dolo, que deveria necessariamente estar presente.

Assim, se o tipo discutido na esfera penal exige o dolo específico e este não está devidamente comprovado na denúncia, além de que, na ação de improbidade administrativa, já se decidiu, com trânsito em julgado, pela sua inexistência em relação à determinada pessoa e sobre os mesmos fatos, não há lógica sistêmica que justifique que esta pessoa responda uma ação penal.

Desde os tempos de Goldschmidt, sabe-se que o órgão de acusação tem o dever de investigar para propor a ação, e não o inverso. Assim, entendendo o princípio da ultima ratio como princípio norteador do Direito Penal, no sentido de que a lei penal se aplica quando somente ela é capaz de evitar a ocorrência de atos ilícitos ou de puni-los à altura da lesão ou do perigo a que submeteram determinado bem jurídico, bem como, à luz do caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, não pode uma conduta que não é passível de punição no âmbito do direito administrativo sancionador, por ausência de ofensa mínima ao bem jurídico tutelado, ser punida no âmbito do direito penal, de modo que andou bem a decisão do STJ ao fazer interessante e necessário aceno à integridade e coerência sistêmica do direito sancionador.

 


[3] Goldschmidt, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal / James Goldschmidt; tradução Mauro Fonseca Andrade, Mateus Marques. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, págs. 57-58.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas do Tribunais, 2016, p. 175.

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  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC/SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

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