Senso Incomum

Cabe reclamação da não aplicação de Reclamação pelo STJ?

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29 de junho de 2023, 8h00

Segundo a didática matéria de Danilo Vital na ConJur (aqui), o Superior Tribunal de Justiça vive um dilema em relação ao uso do instituto da Reclamação prevista na Constituição.

Spacca
Vejamos. Reclamação cabe toda vez que a autoridade de decisão do tribunal for violada. Segundo a ConJur, o dilema residiria na possibilidade de admissão do uso da Reclamação contra o descumprimento das teses vinculantes que o STJ fixa, por meio dos julgamentos de recursos repetitivos. O entendimento atual, estabelecido pela Corte Especial, é de que isso não é possível, seja para discutir a aplicação errada ou mesmo a não aplicação das teses.

Esse entendimento do STJ foi firmado no julgamento da Rcl nº 36.476/SP (em 2020) e se sustenta na distinção entre incidente de resolução de demandas repetitivas (previsto nos artigos 976-987 do CPC) — no qual é incontroverso (artigo 985, §1º) que cabe reclamação em caso de posterior inobservância — e entre julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos (previsto nos artigos 1.036-1.041).

Até este ponto o argumento sustentado no acórdão da Rcl nº 36.476/SP realmente se sustenta. Veja-se que não há hipótese legal expressa (de cabimento de Reclamação) nem nos artigos 1.036 a 1.041, nem tampouco no artigo 988, IV do CPC — que prevê tal possibilidade apenas nos casos de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (arts.976-987) ou de incidente de assunção de competência. Pela exegese do artigo 928 do CPC, o incidente de resolução de demandas repetitivas é uma entre duas espécies de julgamento de casos repetitivos, sendo que a outra é a decisão proferida em recursos especiais e extraordinário repetitivos.

Desta forma, a inclusão legislativa — no artigo 988, IV — de apenas uma das espécies de julgamento de casos repetitivos (qual seja, o incidente de resolução de demandas repetitivas) acompanhada da manifesta omissão da outra espécie (ou seja, da decisão proferida em sede de recursos especiais e extraordinário repetitivos) parece dar força ao entendimento consubstanciado na decisão do STJ no julgamento da Rcl nº 36.476/SP, no sentido de que "a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição".

Todavia, o problema reside no fato de que essa linha de raciocínio resvala em uma leitura exclusivamente infraconstitucional, construindo um argumento com base em minimalismos terminológicos do CPC, ao mesmo tempo em que ignora sumariamente o comando constitucional do artigo 105, I, alínea "f" da Constituição Federal — que dispõe de forma inequívoca que "Compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente […] a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões".

Ora, como então seria possível falar que o CPC/2015 representaria uma "opção" legislativa de "política judiciária" para "desafogar os trabalhos" no STJ e no STF? Ainda que o entendimento do STJ na Rcl nº 36.476/SP representasse a melhor interpretação sistêmica da norma processual (o que não é o caso), ainda assim estaríamos diante de um "pequeno" problema: está-se diante de uma violação da Constituição.

Mas vou mais longe. A tese da desidratação do instituto da Reclamação não esqueceu apenas de dialogar com o texto da Constituição: esqueceu também de consultar o Supremo Tribunal, que possui entendimento completamente distinto sobre a suposta "opção de política judiciária" visando "desafogar" STJ e STF.

Há também outro ponto. Mesmo em uma exegese unicamente infraconstitucional, o argumento do STJ não se sustenta. Isto porque, no plano da unidade da Constituição, temos de voltar sempre ao caso Marbury v. Madison, que iluminou o controle de constitucionalidade: se a Constituição diz X e o tribunal diz menos X ou mais X, o tribunal está fazendo interpretação contrária à Constituição. E se uma lei diz menos que a Constituição, então há que se fazer uma interpretação conforme, para trazer a regra inferior ao nível da regra fundamental. Ou seja: o CPC não pode ter a força de alterar a Constituição. Nos EUA, tudo começou com um dispositivo da Lei de Organização Judiciária, que fez constar algo que não estava na Lei Maior. Inaugurou-se, então, em 1803, o judicial review.

Desta forma, ainda que se analise a atual jurisprudência (é ela mesma um precedente qualificado?) do STJ sobre a Reclamação com base tão somente em uma leitura sistêmica do CPC, não há dúvidas de que a finalidade da Reclamação (toda norma tem um telos) é fundamento para se entender que o desrespeito aos precedentes estabelecidos pelo STJ podem ser "vigiados" (e "punidos") quando aplicados fora dos parâmetros. O telos da Reclamação é esse.

Em relação a isso, verifica-se também um descompasso do STJ em relação ao histórico de seus próprios procedimentos, o que se pode ver na Resolução nº 3/2016. Disso cabe questionar: se os Tribunais de Justiça têm a atribuição de "garantir a observância de precedentes" do STJ, no âmbito de decisões de turmas recursais estaduais, então por que o próprio STJ não teria o dever de exercer este mesmo papel, no âmbito de decisões oriundas dos Tribunais Regionais?

Fica difícil compreender a dinâmica: ao mesmo tempo em que entende que, no âmbito das turmas recursais (Res. nº 3/2016) a uniformização dos precedentes está sujeita à fiscalização e controle por meio de Reclamação (a ser processada e julgada pelos tribunais de justiça), o STJ entende, por outro lado, que não há necessidade de nenhum controle similar no âmbito das decisões proferidas pelos próprios tribunais estaduais!

Numa palavra final:
Parece inadequado que o tribunal que fixa uma tese ou uma súmula não queira vigiar o sistema. Não parece haver razão jurídica para que a Reclamação não seja aceita — a não ser o de política judiciária, que, todavia, não é um argumento constitucional.

Talvez, para além do já posto, reste um outro problema que acaba criando um problema "sistêmico". Explico. Como mostrou a ConJur, o STF tem vivido uma explosão desse incidente processual. Isso ocorre justamente porque, ao contrário do STJ, o Supremo permite seu uso para controlar a aplicação das teses que fixa. Em uma corte constitucional, isso é muito importante.

Acrescento: isso é importante não somente em uma corte constitucional; também em um tribunal que deve controlar a interpretação e aplicação das leis infraconstitucional isso é igualmente importante.

Por isso, cabe a pergunta: se o STF, que é o guardião da CF, cumpre-a atendendo a Reclamações, por qual razão o STJ descumpriria a CF? Já não seria a não aceitação de Reclamações pelo STJ, per se, um descumprimento da Constituição, passível de recurso à Suprema Corte? Por isso o título desta coluna: você pode reclamar da não aceitação de Reclamação?

Indo mais longe: o direito constitucional à Reclamação em relação a um não cumprimento de um provimento vinculante (chamemos de precedente "qualificado" — vinculante) não é, em si mesmo, um direito fundamental de acesso à justiça e ao cumprimento do devido processo legal? Pode-se afirmar que tais preceitos fundamentais estão sendo violados. Também o direito fundamental a um tratamento isonômico — uma vez que, em matéria constitucional, no STF há esse direito ao manejo da Reclamação. Há um mais completo direito de acesso à justiça em matéria constitucional do que em matéria infraconstitucional?

De todo modo, a questão é ainda mais complexa, que demanda uma profunda reflexão de teoria do direito, uma vez que a dogmática jurídica tem se mostrado insuficiente, refém do velho criterialismo, como venho denunciando.

Se não há dúvida sobre se tese ou súmula são provimentos vinculantes (sendo chamados, assim, lato senso, de "precedentes"), a questão que fica é: o que são os demais provimentos e decisões do tribunal? A própria decisão do STJ que diz que não acatará Reclamações é, ela mesma, um precedente nos moldes do que se convencionou chamar de precedente "qualificado"?

Precisamos falar sobre precedentes e de reclamações de Reclamações.

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