Interesse Público

Plano Nacional de Educação e PPA: proximidade necessária

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29 de junho de 2023, 8h00

Em artigo publicado nesta ConJur há pouco tempo, a incansável professora Élida Graziane relembrou o reflexo obrigatório do descumprimento das metas do atual Plano Nacional de Educação (PNE) nos debates do próximo PNE, que deverá ser elaborado para vigorar no decênio seguinte. Trata-se de mais um importante texto por maio do qual a articulista reitera a importância do planejamento e do conhecimento das leis orçamentárias como forma de controlar despesas discricionárias diante da existência de prioridades já definidas na Constituição.

Como escreveu, "falta, porém, às instâncias competentes de controle e à sociedade promoverem a evidenciação da inversão de prioridades e impor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira" [1]. O texto que passo a escrever trilhará caminho semelhante, concordando com as lúcidas razões da professora Élida e também tentando contribuir para o fortalecimento da ideia central defendida, sob enfoque complementar.

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Há tanta coisa acontecendo aqui dentro e lá fora que os leitores e leitoras porventura podem estar imaginando que está faltando criatividade a este articulista. Ainda que essa conclusão não possa ser afastada de pronto, a referência a um fato e a uma evidência talvez justifiquem a insistência no tema: fato — o PNE não está sendo cumprido, sendo que a maioria das metas tem progredido em ritmo insuficiente para o seu cumprimento no prazo estabelecido[2]; evidência (na verdade, composição de evidências) — a educação é fundamental para o desenvolvimento social e econômico de um país, sendo que no Brasil os problemas relativos ao aprendizado tem sido demonstrados em testes internacionais de proficiência [3].

Desta forma, "escolaridade está associada com a produtividade e explica boa parte da diferença da renda dos trabalhadores. A qualidade da educação está positivamente associada com maiores taxas de crescimento econômico. Um aumento de um desvio-padrão nas notas em testes padronizados internacionais está relacionado a um aumento na taxa de crescimento do PIB per capita entre 1 e 2,2 pontos percentuais ao ano" [4].

É comum o sentimento de que haveria um déficit de planejamento na gestão pública brasileira, talvez pela multiplicidade de ações e soluções imediatistas para problemas estruturais que presenciamos. José Celso Cardoso Júnior anota a existência de uma primazia do planejamento frente à gestão, ao longo praticamente de quase todo o século 20, em razão da necessidade de correr contra o tempo (com relação às nações então consideradas desenvolvidas) na busca do desenvolvimento. Essa primazia teria se invertido apenas durante a década de 1990, no contexto de liberalismo econômico, controle de gastos e diminuição da execução direta de atividades pelo Estado. A partir de então, planejar teria se limitado a compatibilizar ações a serem realizadas com os limites orçamentários:

"Em lugar, portanto, de so­fisticar e aperfeiçoar as instituições de planejamento — isto é, instâncias, organizações, instrumentos e procedimentos —, faz-se justamente o contrário, em um movimento que busca reduzir tal função — como se isso fosse possível — a algo meramente técnico-operacional, destituído de sentido estratégico ou mesmo discricionário. A função planejamento passa a ser uma entre tantas outras funções da administração e da gestão estatal, algo como cuidar da folha de pagamento dos funcionários ou informatizar as repartições públicas" [5].

É preciso relembrar que a Constituição de 1988 estabelece diversos instrumentos de planejamento além do plano plurianual (PPA), que estabelece as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (artigo 165, §1º). Instrumentos de planejamento setorial, como o PNE, possuem horizonte temporal distinto e se caracterizam como instrumentos políticos estratégicos que devem ser orientadas para a consecução dos fins principais do Estado. Na educação, felizmente — para os cidadãos e para o desenvolvimento da Nação — existem não somente prioridades alocativas definidas como também direitos já assegurados. Em outras palavras,

"à luz da interpretação sistemática, o PPA encontra limites nos fundamentos e objetivos da República e, enquanto instrumento ordenador do planejamento federal, deve contribuir para viabilizar os direitos individuais e coletivos, particularmente os sociais. É a partir daqui que deve nascer qualquer reflexão sobre o PPA, e não dos seus requisitos formais. O que não significa que os requisitos formais devam ser abandonados, até porque não é necessário. Defende-se, tão somente, que as leituras relativas ao PPA dialoguem com a essência da Constituição Federal. E a vontade do constituinte, reitere-se, é de que haja um plano capaz de contribuir para viabilizar os direitos e garantias fundamentais" [6].

Há uma relação de instrumentalidade entre o PPA e o PNE, que possui assento constitucional no artigo 214: o PPA deve, obrigatoriamente, orientar as leis orçamentárias – no que se refere à alocação de recursos e sua priorização — para permitir a realização dos objetivos, metas e estratégias da educação nacional. Houvesse dúvida a respeito desta obrigatoriedade — e, em consequência, da possibilidade jurídica de exigir o seu cumprimento — estaria ela afastada diante da previsão do art.10 da Lei nº 13.005/14:

"Art. 10. O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução".

O Plano Nacional de Educação, desta forma, não contém exortações, conselhos, pedidos ou súplicas: trata-se de lei, em sentido formal e material, com expressa previsão constitucional e que condiciona todo o processo jurídico orçamentário [7]. Tentando ser simples, direto e didático: a Constituição estabelece um direito fundamental à educação de qualidade, estabelecendo diretrizes, requisitos e fontes de financiamento -> esse direito fundamental é realizado por meio de uma série de políticas públicas que necessitam de ações e também de recursos financeiros, ambos precedidos de detido planejamento -> o plano plurianual deve estar em conexão com os demais instrumentos de planejamento – como o PNE – para oferecer condições de efetivamente alcançar as metas estabelecidas.

Certificar se a administração pública vem assegurando a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias do PNE e dos Planos Educacionais subnacionais (dos estados e municípios) é dever das instituições de controle. Por essa razão, as entidades do sistema Tribunais de Contas [8] elaboraram recomendações com parâmetros mínimos de verificação a serem observados nas ações de fiscalização para aferir a compatibilização entre as peças orçamentárias dos entes federados e os seus planos de educação, incluindo a realização de audiências públicas e promoção da transparência, acompanhamento e controle social. A fiscalização da execução orçamentária e financeira mereceu atenção especial (artigo 14): os Tribunais de Contas são orientados a fiscalizar se os recursos da educação foram imediatamente repassados ao órgão responsável pela educação (artigo 69, §§ 5º e 6º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação), se o Executivo estabeleceu a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso, se houve limitação de empenho (com obediência aos critérios legais) e, finalmente, acompanhar as dotações orçamentárias que não foram executadas ou que apresentaram baixa execução.

O tempo urge: até o final deste semestre deve ser enviado o projeto de lei do novo Plano Nacional de Educação, relativo a 2025/2035; o Plano Plurianual da União para o período de 2024-2027 está em fase de discussão e elaboração, devendo ser encaminhado ao Congresso até o dia 31 de agosto [9]. É hora de encarar definitivamente planejamento e gestão como etapas de um mesmo processo complexo e de pensar em como atingir as metas que foram traçadas e desconsideradas — trata-se de uma exigência do nosso presente e de um compromisso com nosso futuro.

 


[2] https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/00_BalancoPNE_Cartelas2022_ok_1.pdf. A tabela que resume o estágio do descumprimento das metas foi replicada no artigo da profa. Élida Graziane. O TCU, por seu turno, em ação de acompanhamento do PNE, constatou que "as ações colaborativas desenvolvidas pelos entes federados na área educacional são incipientes, com baixo nível de governança do Ministério da Educação na condução de políticas públicas educacionais em prol do atingimento das metas do PNE 2014-2024 […]O baixo nível de governança do MEC, com reflexos no alcance das metas do PNE 2014-2024, é atribuído a fragilidades nos planejamentos estratégicos das secretarias finalísticas do ministério, à incipiência da gestão de riscos na implementação das metas e estratégias do plano e à ausência de monitoramento contínuo e de avaliações periódicas da execução do PNE. Essa falta de planejamento estratégico acarreta prejuízo à eficiência e à efetividade das ações adotadas, desalinhamento entre as metas estabelecidas para as secretarias finalísticas do MEC e para o PNE 2014-2024, além de dispersão das ações adotadas pelas diversas unidades do ministério." https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-acompanha-plano-nacional-de-educacao-2014-2024.htm

[3] Thomas Kang e Isabela Menetrier analisam detidamente estimativas de despesa em educação e apontam um indicador de viés elitista nas políticas educacionais no Brasil entre 1933 e 2010. https://ibre.fgv.br/sites/ibre.fgv.br/files/arquivos/u65/kang_e_menetrier_2023_-_despesas_em_educacao_wp.pdf

[5] CARDOSO JR., José Celso. Planejamento governamental e gestão pública no Brasil: elementos para ressignificar o debate e capacitar o Estado. Texto para discussão n. 1584. Brasília: IPEA, 2011.

[6] DOS SANTOS, Eugênio Andrade Vilela. O confronto entre o planejamento governamental e o PPA. In: CARDOSO JR., José Celso. A reinvenção do planejamento governamental no Brasil. Brasília: IPEA, 2011, p. 307-336.

[7] Élida, mais uma vez, ensina com acerto: “Por tais razões é que, na nova redação dada ao caput do art. 214 da CR/1988, pela EC nº 59, o foco foi o de revitalizar a força normativa do Plano Nacional de Educação (PNE), atribuindo-lhe periodicidade definida (decenal) e exigindo-lhe a fixação de diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação. Tudo isso para que o Plano não caísse na estrita dimensão de uma exigência meramente formal, como incorria no risco de cair com a redação originária do caput do art. 214 que vigeu até a promulgação da citada emenda, em novembro de 2009”. PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: uma perspectiva constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p.70.

[8] A Nota Recomendatória nº 03/2023 foi editada pelo Instituto Rui Barbosa – IRB, Associação dos Membros dos Tribunais de Contas – Atricon; Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas – CNPTC e Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios – Abracom. Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Nota-Recomendatoria-IRB-ATRICON-CNPTC-ABRACOM-n%C2%B0-032023.pdf

[9] Também os PPAs dos Estados devem ser elaborados e encaminhados ao Legislativo neste ano.

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