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Descumprimento do atual PNE constrange envio do projeto do próximo plano

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

16 de maio de 2023, 8h00

Na forma do artigo 12 [1] da Lei 13.005, de 25 de junho de 2014, até o final deste semestre deve ser enviado o projeto de lei do Plano Nacional de Educação (PNE) relativo a 2025/2035. Aludido projeto deverá incluir diagnóstico, diretrizes, metas e estratégias para o próximo decênio.

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A despeito desse comando legal e do lastro constitucional da matéria (artigo 214 da CF/1988), falta pouco tempo e quase nenhum debate amplo tem sido empreendido com a sociedade a respeito do planejamento decenal da educação pública brasileira.

A bem da verdade, o PNE 2014/2024 concluirá seus nove primeiros anos de vigência daqui a cerca de um mês, com um quadro crônico de descumprimento das suas principais metas e estratégias.

Trata-se de impasse normativo de significativa grandeza termos um plano setorial de tamanha relevância, cuja densificação cotidiana não se verifica. Para além dos limites impostos pela pandemia da Covid-19 e da anistia conferida pela Emenda 119/2022, o descumprimento da maioria das obrigações a termo fixadas no PNE guarda íntima relação com a baixa aderência das leis orçamentárias dos diversos entes da federação com o planejamento da educação. Ora, a esse respeito, não é demasiado lembrar o artigo 10 da Lei 13.005/2014:

"O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução."

Parafraseando Umberto Eco, o nome da rosa reside na colossal contradição entre o elevado nível de inadimplemento das metas e estratégias do PNE, de um lado, e a existência de recursos vinculados à política pública educacional, notadamente o piso em manutenção e desenvolvimento do ensino e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), regulados, respectivamente, pelos artigos 212 e 212-A da Constituição Federal de 1988, de outro lado.

É inegável que o descumprimento do atual PNE constrange e delimita o espaço de debates do próximo PNE. Para aprender com os erros do plano vigente e formular um próximo plano educacional que seja amplamente executado e devidamente fiscalizado, todas as instâncias competentes de controle precisam chamar para si a responsabilidade de avaliar as razões pelas quais não se assegurou financiamento adequado ao cumprimento das metas e estratégias do PNE.

Revela-se imprescindível, ao nosso sentir, contrastar as despesas discricionárias computadas nos recursos vinculados à educação com o risco de descumprimento das metas e estratégias do PNE em cada ente da federação, impondo sobre aquelas uma presunção relativa de irregularidade, somente passível de ser afastada por meio de motivação circunstanciada.

Desde a promulgação da Lei 13.005/2014, defendemos que as metas e estratégias do PNE perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb (artigo 10 da Lei 13.005/2014). Como tal, não deveriam ser preteridas por despesas discricionárias alheias ao planejamento educacional.

Tal dever de motivação é necessário, para que seja possível evidenciar o custo de oportunidade da execução orçamentária educacional quando são realizados, por exemplo, gastos em subfunções alheias à atribuição municipal, como ensino médio e superior; aquisição de material apostilado, a despeito da gratuidade do Programa Nacional do Livro Didático; contratação de servidores comissionados e temporários computados na folha da educação, mas cedidos a outros entes políticos etc.

Insistimos em denunciar que o núcleo do problema reside no desvio dos recursos educacionais para atender a finalidades outras que não aquelas identificadas como metas e estratégias do respectivo planejamento setorial, em afronta — reiteramos — ao artigo 10 da Lei 13.005/2014.

Segundo balanço feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação [2], é inquestionável o elevado nível de descumprimento das suas metas e estratégias, conforme demonstra a imagem a seguir:

Reprodução

O alto nível de descumprimento do PNE decorre, em grande medida, do fato de que muitos gestores passam despesas discricionárias à frente das obrigações de fazer fixadas no correspondente planejamento setorial. Tal inversão de prioridades compromete não só o alcance do planejado, mas também fragiliza o debate acerca da qualidade do gasto público em educação.

É premente que seja imposto, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do que foi inscrito no §10 do artigo 165 da Constituição de 1988, pela Emenda 100/2019, a pretexto de impositividade orçamentária.

Não se trata de mera aferição contábil-matemática a análise acerca do dever de aplicação do piso em manutenção e desenvolvimento do ensino, bem como da aplicação dos recursos do Fundeb, previstos, respectivamente, nos arts. 212 e 2012-A da Constituição de 1988. Há obrigações substantivas definidas no planejamento educacional que orientam qualitativamente os rumos da execução orçamentária dos recursos vinculados ao setor, tal como expresso no artigo 10 da Lei do PNE.

Falta, porém, às instâncias competentes de controle e à sociedade promoverem a evidenciação da inversão de prioridades e impor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira.

Eis o constrangimento que se abateu sobre o atual PNE e que pode vir a comprometer a consistência e a tempestividade do debate em torno do PNE 2025/2035, que deveria começar já agora em junho de 2023.

 


[1] Cujo inteiro teor é o seguinte: "Art. 12. Até o final do primeiro semestre do nono ano de vigência deste PNE, o Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional, sem prejuízo das prerrogativas deste Poder, o projeto de lei referente ao Plano Nacional de Educação a vigorar no período subsequente, que incluirá diagnóstico, diretrizes, metas e estratégias para o próximo decênio."

[2] CAMPANHA Nacional pelo Direito à Educação. Balanço Nacional do Plano Nacional de Educação 2022. Cartilha eletrônica. 2022, p. 29. Disponível em https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/00_BalancoPNE_Cartelas2022_ok_1.pdf (acesso em 19/4/2023).

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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