Entraves legais, regimentais e práticos tornam IRDR pouco atrativo para tribunais
21 de junho de 2023, 8h48
Apesar de ser uma das ferramentas de uniformização mais poderosas criadas pelo Código de Processo Civil de 2015, o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) tem sido pouco utilizado pelos tribunais de segundo grau por causa de entraves legais, regimentais e práticos.
Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que, em sete anos de vigência do CPC, os 27 Tribunais de Justiça estaduais e os cinco Tribunais Regionais Federais julgaram apenas 360 IRDRs. A média é de 1,6 IRDR resolvido no mérito por ano para cada uma das 32 cortes de apelação.
É pouco quando se considera um Poder Judiciário com mais de 76 milhões de processos em tramitação, entre os quais 67 milhões estão na Justiça estadual. O tema foi levantado pela ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal de Justiça, no I Congresso Sistema Brasileiro de Precedentes, promovido pelo STJ na semana passada.
Na análise dela, o IRDR tem sido usado de maneira tímida pelos tribunais, que precisam abraçar a cultura de formação de precedentes. "É preciso que invistam mais no que diz respeito à admissão e ao julgamento de IRDR. Só assim podemos chegar à meta que todos desejamos, que é a melhoria e eficiência do Judiciário brasileiro."
Entre as cortes de segunda instância, a que mais abraçou a nova ferramenta foi o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (veja abaixo a tabela). Foram 91 IRDRs admitidos, com 66 julgados (média de 9,4 julgados por ano). Por outro lado, chama a atenção a aversão dos TRFs a esse tipo de incidente. Foram apenas 31 julgados desde a entrada em vigor do novo CPC.
Cabe ou não cabe?
O IRDR está disciplinado no Capítulo VIII do CPC de 2015. O artigo 976 diz que ele é cabível "quando houver a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito ou risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica".
Esse critério representa o primeiro entrave, na visão da juíza Márcia Correa Hollanda, que atua na 3ª Vice-Presidência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ela aponta que não se sabe exatamente o que é "risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica".
Ranking do IRDR nos tribunais | ||
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Tribunal | Admitidos | Julgados |
1) TJ-MG | 91 | 66 |
2) TJ-SP | 50 | 17 |
3) TJ-PR | 42 | 22 |
4) TJ-GO | 37 | 29 |
5) TJ-RS | 31 | 27 |
Como o pedido de instauração de IRDR pode ser feito pelo juiz ou relator, pelo Ministério Público ou Defensoria Pública e até pelas partes, essa definição pode não coincidir e gerar propostas que não são admitidas, ou sequer são conhecidas.
Outro problema antigo diz respeito à forma de tramitação. O artigo 980 do CPC diz que o IRDR deve ser julgado no prazo de um ano. E o artigo 983 prevê a oitiva das partes e também de pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, além de diligências para a elucidação da questão de direito controvertida.
O longo tempo de tramitação e esse amplo rito torna o IRDR menos atrativo para os tribunais de segundo grau, que, curiosamente, ao longo dos anos se tornaram grandes parceiros do STJ na identificação e afetação de temas para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos.
Também não ajuda o fato de os regimentos internos de muitas cortes de apelação não terem regulamentos próprios para orientar a tramitação do IRDR. Por fim, outro grande entrave envolve a impossibilidade de instaurar esse incidente nas demandas que tramitam nos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
Criados pela Lei 12.153/2009, esses Juizados estão instalados apenas em determinadas comarcas, em regra as maiores nos estados. Isso faz com que a mesma demanda possa ser julgada por um Juizado Fazendário ou por uma Vara da Fazenda Pública. Isso implica ritos e consequências diferentes.
Um recurso contra a decisão do Juizado vai para a Turma Recursal. Já o recurso contra a sentença da Vara Fazendária será julgada pelo Tribunal de Justiça. "Há esse risco de colisão entre essas duas instâncias. Não há uma ferramenta, um mecanismo que possa consolidar esses dois entendimentos", disse a juíza Márcia Hollanda.
Retratação e recurso
Há outros dois fatores graves relacionados ao trâmite do IRDR. O primeiro é não haver previsão do juízo de retratação. Isso significa que, uma vez fixada a tese, que deveria ser obrigatoriamente seguida, qualquer desobediência em segundo grau não pode ser barrada pelo próprio tribunal.
"Não existe um mecanismo para forçar a retratação. Somos obrigados a admitir esse recurso e submeter ao STJ, quando eu poderia resolver essa questão dentro do meu tribunal", explicou a magistrada, que atua na admissibilidade de recursos especiais no TJ-RJ.
A corte fluminense, que envia por mês cerca de sete mil processos ao STJ, afetou ate hoje 205 IRDRs e tem apenas 16 deles transitados em julgado. "É inadmissível que tenha tão pouco IRDR afetado", criticou a juíza Márcia Hollanda.
O outro fator foi levantado na palestra da advogada Sofia Temer, autora de um livro sobre o tema, e reside no fato de o STJ não admitir recurso especial contra o IRDR que fixa tese jurídica em abstrato — ou seja, sem efetivamente resolver um caso concreto.
Esse cenário é possível porque, no intuito de promover a pacificação dos litígios, o parágrafo 1º do artigo 976 do CPC de 2015 diz que o tribunal poderá examinar o mérito da questão mesmo se houver a desistência ou o abandono do processo pelas partes — conduta definida como manipulação da pauta.
O problema é que o artigo 105 da Constituição Federal, que traz as hipóteses de atuação do STJ, inclui no inciso III que compete "julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância" pelos tribunais de segunda instância.
O entendimento da Corte Especial do STJ é de que o simples fato de existir acórdão de mérito proferido em IRDR não significa dizer que cabe recurso especial. Se um IRDR não gerou causa decidida, não poderá ser analisado pelo tribunal de uniformização da legislação federal.
Para Sofia Temer, isso é um enorme problema. "Ou não é possível firmar tese vinculante sem caso concreto ou, se possível, deve ser passível de análise por essa corte e de uniformização em âmbito nacional", destacou ela durante a palestra no congresso promovido pelo STJ.
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