Fintech & Crypto

Depois do inverno, o apocalipse?
SEC versus criptoeconomia

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

14 de junho de 2023, 8h00

Desde 2017, a Securities and Exchange Commission (SEC), regulador norte-americano do mercado de capitais, tem atuado para reprimir a oferta pública de tokens que geram expectativa de benefício econômico em seus adquirentes e cujo retorno dependa dos esforços de terceiros. Ou seja, sendo juíza de sua própria competência, a SEC avalia quais tokens são valores mobiliários (securities) e, caso tenham sido ofertados sem registro prévio, toma as medidas cabíveis.

Após o "inverno cripto" de 2022, quando as cotações da maioria dos criptoativos desabaram em conjunto com a insolvência de diversas empresas do setor e a descoberta de fraudes (casos como Terra/Luna, Celsius, BlockFi, 3AC e FTX, dentre outros), as iniciativas de legislação da criptoeconomia nos Estados Unidos foram ofuscadas pela regulação por enforcement. Em outros termos, em vez de avaliar os riscos específicos do setor e os eventuais benefícios da inovação para adaptar a regulação, a SEC limitou-se a aplicar as normas vigentes por meio da instauração de processos.

Assim, temos visto diversas declarações de Gary Gensler, presidente da SEC, no sentido de que a quase totalidade dos tokens negociados em exchanges mundo afora seriam securities ofertadas sem registro e, portanto, seus emissores e os ambientes de negociação seriam passíveis de punições por violações à regulação do mercado de capitais. Os casos mais recentes envolvem a Binance, considerada a maior exchange do mundo (e sua subsidiária norte-americana Binance.US), e a Coinbase, exchange que tem suas ações listadas na Nasdaq e que sempre adotou um discurso de conformidade.

A SEC e o futuro da criptoeconomia
A atuação da SEC tem um impacto relevante no futuro da criptoeconomia em todo o mundo, afinal, o mercado norte-americano ainda é um dos mais relevantes para o setor. Ao considerar os tokens Solana (SOL), Cardano (ADA), Polygon (Matic), Filecoin (FIL), Cosmos (Atom), Sandbox (Sand), Decentraland (Mana), Algorand (Algo), Axie Infinity (AXS), Coti (Coti) e, ainda, os tokens BNB (emitidos pela Binance) e XRP (emitidos pela Ripple) como securities, a consequência prática é a de que nenhuma exchange poderá listá-los de modo a permitir sua negociação por investidores norte-americanos. Esse entendimento, ao menos em teoria, pode levar outros reguladores a adotar a mesma restrição, o que, na prática, comprometeria a liquidez dos principais tokens negociados no mercado.

Desse modo, a atuação da SEC e de outros reguladores que seguirem seu exemplo pode relegar à marginalidade o uso de tokens com a finalidade de investimento (ou mera especulação), dificultando ou mesmo impedindo seu acesso, estacando o crescimento do número de investidores e do volume financeiro que tem sido observado nos últimos anos.

Outra consequência importante do "apocalipse cripto" diz respeito ao interesse das instituições financeiras tradicionais no setor. Muitos bancos, gestoras e empresas do setor de pagamentos têm desenvolvido projetos visando explorar o potencial das tecnologias descentralizadas. A imposição de restrições e penalidades pode influenciar a avaliação, por essas instituições, do risco de investir nesse mercado, desacelerando a convergência entre finanças tradicionais e finanças descentralizadas.

Spacca
Um exemplo disso é o encerramento de transações com dólares pela Binance.US, pois as instituições responsáveis pela sua conexão com o sistema de pagamentos norte-americano, ao que tudo indica, não se sentiram confortáveis em continuar a prestar esse serviço. Com isso, investidores menos familiarizados com carteiras cripto podem ter dificuldades na sua experiência na plataforma.

Desse modo, o risco para as exchanges e demais empresas de setor é elevado em termos de reputação e de capacidade para atrair investimentos no futuro próximo, se a SEC seguir em sua investida anti-cripto (ou pró-regulação, como preferir).

Efeito dominó
Outra preocupação imediata é a possibilidade de, diante da percepção de aumento de risco pelos investidores, ocorrer uma “corrida de saques”, levando as exchanges e empresas que nela depositaram seus recursos à insolvência. Diante da falta de transparência acerca da proteção aos recursos depositados pelos seus clientes — e sua devida segregação dos recursos da própria exchange — e dos volumes de saques, não há como se antecipar a esse risco. Só saberemos a verdade tarde demais, quando alguma empresa se negar a honrar os pedidos de resgates (como ocorreu com Celsius e FTX).

Enquanto isso, as empresas alegarão que os discursos destinados a incitar medo, incerteza e dúvida não condizem com o volume divulgado de saques. Ao mesmo tempo, essas empresas têm interesse ou incentivos para divulgar valores inferiores ao real, para prevenir pânico. Dada a ausência de uma regulação prudencial, não há como intervir para aliviar essa tensão.

Portanto, é importante lembrar que a única forma de ter certeza de que seus recursos estão seguros é o uso de carteiras nas quais você tem o controle pleno e a chave privada. Se os criptoativos estiverem em uma exchange ou em outro prestador de serviço de ativo virtual, não há segurança jurídica sobre sua condição de proprietário desses ativos ou mero credor quirografário.

Repercussão no mercado brasileiro
Apesar de haver semelhança na discussão sobre a qualificação de tokens como valores mobiliários, a CVM tem mostrado uma postura diferente em nosso país, mais conciliadora e disposta a compreender o mercado cripto. Apesar da edição de um Ofício Circular no sentido de que tokens de renda fixa e de recebíveis muito provavelmente são valores mobiliários, em vez de distribuir stop orders ou processos sancionadores, a CVM tem dialogado com participantes do mercado para encontrar uma solução. Uma possibilidade que tem sido considerada é a adaptação da Resolução CVM nº 88/2022, que disciplina as plataformas de crowdfunding, para permitir a emissão de tokens com alguma possibilidade de negociação subsequente dentro do guarda-chuva regulatório.

Ainda, ao contrário do que ocorreu nos EUA, em 2021, a CVM permitiu a criação de exchange traded funds (ETFs) referenciados em índices de criptoativos, viabilizando o surgimento de um novo e bem-sucedido produto (em termos de volume captado e número de investidores) e, posteriormente, permitiu a aplicação direta em criptoativos na carteira de fundos brasileiros, nos limites previstos na Resolução CVM nº 175/2022.

Diante da dificuldade de fomentar a liquidez no país, as exchanges nacionais e tokenizadoras focaram em utilizar as tecnologias de registro distribuído (distributed ledger technologies — DLT) para reduzir os custos de emissão e eliminar intermediários em produtos financeiros, facilitando a circulação de recebíveis. Assim, em teoria, ganham aqueles que desejam diminuir o custo de captação, de um lado, e os investidores, que passam a ter opções de investimentos alternativos, desde que disponham de informações verdadeiras, suficientes, claras e adequadas para tomar suas decisões.

Logo, uma hipótese que pode ser formulada é a de que, enquanto o "apocalipse cripto" afeta o mercado secundário (negociação) de tokens em escala global, ainda há espaço para ativos virtuais que tenham fundamento econômico em fluxos financeiros futuros (juros ou dividendos) e não sejam meras "fichas de cassino".

Obviamente, contudo, a mancha na credibilidade do setor e a diminuição de investimentos em decorrência da cruzada regulatória da SEC têm impacto negativo no interesse de instituições tradicionais e do público em geral na criptoeconomia em nosso país.

Influência na regulamentação da Lei nº 14.478/2022
A lei de ativos virtuais no Brasil começará a viger no final deste mês, enquanto aguardamos a designação de um regulador no país mediante decreto do Poder Executivo. Provavelmente caberá ao Banco Central o estabelecimento de um regime de autorização prévia para o exercício da atividade de prestação de serviços de ativos virtuais, bem como os esforços de fiscalização e a competência para a aplicação de penalidades.

Contudo, todo o debate que pauta a atuação da SEC diz respeito aos ativos virtuais enquanto valores mobiliários. E a Lei nº 14.478/2022 traz, infelizmente, uma exceção ao seu regime quando um dado token for considerado valor mobiliário. Nessa hipótese, aplicam-se as regras da CVM, que não tem sua competência alterada.

Ou seja, toda a regulação que virá a ser editada por meio de Resoluções do Banco Central provavelmente tratará de temas como tipo societário, patrimônio mínimo, comunicação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, controles internos, informações periódicas etc. mas, se os principais tokens negociados no mercado forem valores mobiliários, essas empresas só poderão listar esses tokens se obtiverem registro específico na CVM (como mercado de bolsa ou de balcão) e sua intermediação só poderá se dar via corretoras ou distribuidoras autorizadas.

Em síntese, há uma questão prévia a ser respondida antes da aplicação do regime da Lei nº 14.478/2022: se um token for valor mobiliário, ela não se aplica.

Como resolver esse impasse?
Não há soluções simples para problemas difíceis. Apesar das críticas à SEC, a preocupação essencial é o fato de as pessoas estarem sendo induzidas a erro ou investindo em ativos que não compreendem exatamente e cujo risco é incompatível com seu conhecimento, experiência ou patrimônio. Essa intervenção pode ser taxada de paternalista ou desproporcional, mas estamos diante de um problema central e recorrente no mercado financeiro, que é o surgimento de bolhas e manias, fomentadas por pessoas inescrupulosas que se aproveitam de assimetrias de informação e causam ou potencializam desastres como as crises documentadas em diversos livros.

Muitas empresas da criptoeconomia apostaram na criação de narrativas para fugir da regulação tradicional, sustentando que seus tokens teriam uma utilidade diversa de pagamento ou investimento. Isso levou à própria excrescência que é o conceito de ativo virtual, na minha opinião, uma definição infeliz e sem sentido, pois a maior parte dos tokens emitidos é um "envelope digital" de um instrumento financeiro, seja ele um título de crédito ou valor mobiliário.

Portanto, se há um problema a ser resolvido, não é o da qualificação de tokens como valores mobiliários ou não, mas algo mais essencial: como adaptar a regulação vigente do mercado de capitais para lidar com uma inovação capaz de reduzir intermediários, diminuir custos de emissão e negociação de valores mobiliários (e, com isso, a receita de algumas empresas tradicionais) e democratizar o mercado de capitais para pequenas e médias empresas, de um lado, e investidores de varejo, de outro, se estabelecidas as devidas salvaguardas de risco.

Gary Gensler repete o ditado "empresas legítimas não precisam ter medo da SEC", o que é verdade. Porém, há um dado adicional: empresas legítimas gostariam de uma regulação menos onerosa, com menos formulários e burocracia, maior competição entre intermediários e ambientes de negociação e, com isso, menor custo de capital. Enquanto os reguladores acreditarem que as normas vigentes são as melhores possíveis e não precisam ser reavaliadas, a inovação financeira será tolhida.

Autores

  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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