Opinião

Convenções sobre controle de drogas e o Poder Judiciário

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14 de junho de 2023, 9h15

O plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) tem na pauta deste mês o julgamento do RE 635.659/SP, com repercussão geral reconhecida, cuja questão de fundo trata da alegada inconstitucionalidade da tipicidade penal do porte de drogas para uso pessoal, nos termos do que dispõe o artigo 28 da Lei 11.343/2006, a denominada "Lei de Drogas".

Em prol da inconstitucionalidade, argumenta-se ofensa aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e pluralidade, bem como aos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade. Alega-se, também, que a conduta de portar drogas para uso próprio não resulta em lesividade à saúde pública (bem jurídico tutelado pelo delito de tráfico de drogas), mas apenas eventual dano à saúde do próprio usuário.

O STF reconheceu a legitimidade do debate público sobre a alteração da legislação penal sobre drogas e firmou precedente no sentido da constitucionalidade da mobilização social denominada "Marcha da Maconha" (ADPF 187). O evento foi considerado manifestação legítima do direito de reunião e livre expressão do pensamento no sentido de legalizar o uso do mencionado entorpecente. Apesar de sua crescente popularidade, a tese da legalização judicial do uso de drogas sob controle internacional (que não se confunde com a descriminalização) encontra óbice na ausência de legitimidade constitucional do Poder Judiciário para denunciar tratado multilateral do qual o Brasil é signatário, como passo a expor.

O marco legal internacional do regime de controle de drogas consiste em três tratados internacionais das Nações Unidas (ONU): 1) a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 (emendada pelo Protocolo de 1972); 2) a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971; e 3) a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988.

As três referidas convenções sistematizam, de forma complementar, as principais medidas de controle global de drogas ora vigentes. Os Estados membros aderentes se comprometem a proibir o abuso das substâncias sob controle internacional constantes dos anexos das convenções, combater a sua distribuição por meios ilícitos e garantir a sua disponibilidade para o uso médico e científico, bem como para o uso industrial legítimo, na hipótese de precursores químicos e congêneres.

A adição, transferência ou retirada de substâncias das listas de controle internacional anexadas às convenções, o denominado scheduling process (processo de enquadramento), são efetuadas após votação na Comissão sobre Drogas Narcóticas (CND), principal órgão de controle de drogas no sistema das Nações Unidas, responsável pela governança e harmonização das políticas públicas dos Estados membros signatários sobre redução da oferta e demanda de drogas ilícitas.

A votação na CND considera recomendações sobre o potencial de abuso, dependência química e danos à saúde expedidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo International Narcotics Control Board – INCB, órgão técnico especializado, independente e influente no sistema global de controle de drogas. Além de participar do enquadramento de substâncias sob regime de controle internacional, o INCB monitora e auxilia Estados membros na implementação das convenções internacionais sobre controle de drogas e elabora relatório anual com recomendações. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) também monitora e oferece assistência aos Estados signatários na implementação das três aludidas convenções internacionais sobre drogas, e publica, anualmente, o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU.

Em suma: a CND é o órgão internacional competente para decidir sobre o escopo do controle de substâncias, através de seu enquadramento em listas anexadas às convenções internacionais de controle de drogas. A CND toma suas decisões de enquadramento uma vez por ano, com base nas recomendações da OMS, e considerações do INCB e dos Estados signatários. A inclusão em uma lista específica é determinada de acordo com o risco potencial de abuso e determina as medidas de controle que os Estados membros são obrigados a aplicar às respectivas substâncias.

Em 2 de dezembro de 2020, a CND, em sua 63ª sessão, com base em recomendação da OMS e intensas considerações, deliberou no sentido de excluir a cannabis e a resina dela extraída do Anexo IV da Convenção de 1961, que reúne os entorpecentes mais perigosos, como a heroína e a cocaína, de modo a promover a investigação científica de suas propriedades medicinais. Apesar do reenquadramento, a cannabis e seus derivados permanecem no Anexo I da Convenção de 1961, reservado a substâncias utilizadas em medicamentos, como a morfina e a oxicodona, sujeitas a estrito controle internacional. A mudança de status da cannabis, portanto, não autoriza o seu uso não medicinal, nem a promoção de sua legalização pelos Estados membros.

Participaram da votação que reconheceu o valor medicinal da cannabis 53 países membros da CND. O placar foi apertado (27 votos a 25, e uma abstenção) e a decisão se aplica a todos os signatários da referida convenção, inclusive o Brasil, que se manifestou de forma contrária à reclassificação [1]. Transcrevemos, a seguir, trecho do pronunciamento oficial do governo brasileiro, que foi categórico contra a retirada da maconha e derivados do Anexo IV: "O Brasil está decepcionado com a decisão de remover a planta e a resina de "cannabis" do mais estrito Anexo IV da Convenção de 1961. O resultado da votação mostra claramente que um número significativo de membros da Comissão não está convencido da existência de razões para a mudança proposta. No entanto, não deve haver dúvidas sobre as consequências desta decisão. Planta e resina de 'cannabis' permanecerão incluídas no Anexo I da convenção de 1961, com estrito nível de controle. A legalização da 'cannabis' é contrária às convenções e não é tolerada pela Comissão. (…) O Brasil acredita firmemente que o sistema internacional de controle de drogas é fundamental para nos capacitar no enfrentamento da produção ilícita e do tráfico internacional de substâncias controladas e, neste caso específico, 'cannabis' e substâncias relacionadas. As decisões sobre a reenquadramento de substâncias devem ser fundamentadas por benefícios claros para o sistema de controle. A cooperação internacional depende de padrões e procedimentos comuns adotados por todos os Estados Membros nas legislações nacionais, portanto, revisões não podem e não devem ser consideradas levianamente. O Brasil, assim como várias outras delegações, levantaram sérias preocupações sobre as alterações de enquadramento propostas, em várias dimensões. A 'cannabis' e substâncias relacionadas são pelo menos tão prejudiciais à saúde quanto quando as convenções internacionais de controle foram adotadas. A maconha continua sendo a droga mais consumida no mundo e são cada vez mais comuns produtos de 'cannabis' muito mais prejudiciais à saúde, com alto teor de THC.

O governo do Brasil não está convencido de que o potencial uso terapêutico de preparações farmacêuticas específicas à base de 'cannabis', bem como pesquisas científicas são prejudicadas pelo enquadramento atual, que proporciona flexibilidade suficiente para permitir o acesso adequado a essas substâncias para fins médicos e científicos".

A manifestação do governo brasileiro na CND está alinhada com as evidências constantes do Relatório Mundial sobre Drogas 2022, das Nações Unidas [2].  Segundo o documento, a maconha continua a ser a droga mais usada em todo o mundo. Conquanto a cannabis seja raramente associada à mortalidade direta em razão de seu uso, representa uma parcela substancial de danos relacionados ao abuso de drogas, principalmente em decorrência da elevação da potência do princípio ativo da planta, responsável por seus efeitos alucinógenos, o THC (tetra hidrocarbinol), que atingiu a marca de 60%, em alguns mercados.

De acordo com o aludido relatório da ONU, mais de 4% da população mundial na faixa etária de 15-64 anos (209 milhões de pessoas) usaram cannabis em 2020. A iniciação precoce e o uso frequente impactam o desenvolvimento do cérebro de adolescentes e estão associados a maior probabilidade de transtornos depressivos graves, como pensamentos e comportamentos suicidas. A legalização da cannabis, em algumas partes do mundo, resultou no aumento do uso e dos impactos relacionados à comorbidades psiquiátricas e outros transtornos associados, que sobrecarregam os sistemas de saúde pública.

Em um cenário de responsabilidade compartilhada e harmonização multilateral de estratégias para enfrentar o uso problemático de drogas e o narcotráfico global, o Poder Judiciário tem o dever de autocontenção na invalidação de normas jurídicas que parametrizam compromissos vinculantes assumidos pelo Brasil na arena externa, o que se equipararia à denúncia de convenção internacional sem respaldo no texto constitucional, e afrontaria a efetividade do sistema global de controle de drogas.

O Brasil articula políticas sobre drogas junto aos organismos internacionais através da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), que faz parte do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad), instituído pela Lei nº 11.343/2006. Em sintonia com as políticas de redução de danos e prevenção de riscos difundidas no plano internacional, o Título III da Lei de Drogas trata das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Apesar das boas intenções, as referidas prescrições legais apresentam lamentável déficit de implementação.

A Lei de Drogas brasileira estabelece sanções brandas para a posse de drogas e o plantio de plantas tóxicas para o consumo pessoal.  O usuário é tratado como infrator de menor potencial ofensivo sui generis, sujeito às penalidades de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida pedagógica de comparecimento a programa educativo. O descumprimento injustificado das aludidas medidas pode resultar, sucessivamente, em admoestação verbal e multa.

Em 2021, foram registradas 164.879 ocorrências de posse e uso de entorpecentes no País, um aumento de 11,9% em relação ao ano anterior [3]. O ponto problemático consiste na ausência de parâmetro objetivo para a autoridade policial efetuar a distinção imediata, da pessoa encontrada com drogas, entre consumo pessoal ou tráfico. Não há critérios legais claros e objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes, o que gera insegurança jurídica, excessiva discricionariedade e intolerável seletividade na interpretação dos fatos e construção da narrativa que respaldará o enquadramento jurídico do agente.

Respeitadas as balizas normativas das convenções internacionais sobre drogas a que o Brasil aderiu,  o Poder Judiciário tem legitimidade para atuar, com assertividade, no enfrentamento das notórias disfuncionalidades na atuação antecipada do Estado na prevenção e redução de danos causados pelo abuso de drogas, que comprometem a eficácia de direitos fundamentais, bem como no estabelecimento de critérios razoáveis e proporcionais a serem observados na repressão estatal, em sintonia com os objetivos declarados da política nacional de drogas.

Neste sentido, deve ser destacado que no âmbito de atuação do Poder Executivo, foi aprovada Política Nacional sobre Drogas (PNAD) (Decreto nº 9.761/2019) com notável integração com as estratégias de enfrentamento da problemática das drogas implementadas pelos parceiros do Brasil, na esfera internacional. Dentre os seus pressupostos, destacamos o de atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilícitas e da dependência de tais substâncias (artigo 2.1.), bem como tratar pessoas usuárias e dependentes sem discriminação (artigo 2.5.).

Por fim, a necessária autocontenção judicial na legalização de substâncias sob controle internacional também tem respaldo nos princípios da legitimidade democrática e soberania popular. Neste sentido, o artigo 2.2. da PNAD é categórico ao afirmar que "A orientação central da Política Nacional sobre Drogas considera aspectos legais, culturais e científicos, especialmente, a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto às iniciativas de legalização de drogas".

 


[1] Commission on Narcotic Drugs. Reconvened sixty-third session. Statements following the voting on the WHO scheduling recommendations on cannabis and cannabis-related substances. fl. 8/38. Tradução livre. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/commissions/CND/CND_Sessions/CND_63Reconvened/ECN72020_CRP24_V2007524.pdf Acesso em 04/06/2023.

[2] United Nations. World Drug Report 2022. Disponível em:  https://www.unodc.org/unodc/data-and-analysis/world-drug-report-2022.html Acesso em 04/06/2023.

[3] Anuário Brasileiro de Segurança Pública. fl. 122. Disponível em:  https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=15 . Acesso em 03/06/2023.

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