Embargos Culturais

"A Transação Tributária, de Renata Gontijo D'Ambrosio

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de junho de 2023, 8h00

A ideia de uma justiça tributária consensual no Brasil provocou acirradas críticas e reações destemperadas. Muito barulho. Com previsão no artigo 171 do Código Tributário Nacional a transação tributária é modalidade de extinção do crédito fiscal, marcada por concessões mútuas. Meio século à espera de regulamentação. A hora chegou (finalmente).

A multiplicação da litigiosidade tributária exige enfrentamento, com mecanismos que reduzam tensão permanente que opõe Fisco e contribuinte. Talvez, para início de conversa, poderíamos pensar em chamar o contribuinte de cidadão, ainda que aquela denominação esteja no Código Tributário Nacional. Esta última está na Constituição, onde aparece 14 vezes. E o Fisco, por outro lado, é a agência que busca recursos para realizar políticas públicas.

No caso de uma imaginária justiça tributária consensual esbarrava-se em escudo supostamente intransponível, marcado pelo dogma da indisponibilidade do crédito tributário, como decorrência da impossibilidade de se transigir com o interesse público. Há alternativas?

Deve-se também confrontar a doutrina do direito público brasileiro, marcada no passado por autores influenciados por fortíssimo autoritarismo. Havia juristas de plantão para os poderosos do dia, tema de fascinante capítulo de nosso direito (ainda não escrito) sobre as relações entre os intelectuais (sobremodo os juristas) e o poder. Todo Vargas tem seu Chico Ciência. Todo Salazar tinha seu Marcelo Caetano.

Quanto à transação tributária, um grande colega, Rodrigo Pereira de Mello (hoje renomado advogado tributarista em Brasília) é um dos pais fundadores da ideia, em texto então mimeografo, sobre a transação e a arbitragem no direito tributário. Luís Inácio Adams, quando Procurador-Geral da Fazenda Nacional, encampou o projeto, luta à qual aderi, junto com Agostinho do Nascimento Netto, em uma cruzada nacional pela causa[2].

Advogados de nome e burocratas conhecidos histericamente motejaram do esforço, sob o mote de que a Receita se transformaria em um balcão de negócios. Alguns ironizavam, cabalisticamente comparando o artigo 171 do CTN, com o artigo 171 do Código Penal, que dispõe sobre estelionato…

Erraram feio. A transação trinfou; hoje é lei. Resolve problemas. Retoma rumos. É uma luz no fim do túnel. Na primeira medida, José Levi Mello do Amaral. Na reta final, junto à PGFN, Ricardo Soriano Alencar, João Henrique Grognet, Rogério Campos, Manoel Tavares, Adriana de Paula Rocha, Daniel Saboia Xavier, Theo Lucas de Lima Borges, Sara Mendes Carcará e outros que arregaçaram as mangas e fizeram o modelo funcionar.

Spacca
Há também uma expressiva produção acadêmica (inclusive na PGFN), com o livro seminal de Phelippe Toledo Pires de Oliveira. Nesse grupo que teorizou o modelo, Geila Diniz, Yuri Excalibur, Carlos Torres, Fernanda Villares, Cláudia Owada, Clóvis Silva Neto, Paulo Mendes de Oliveira, Cristiano Neuwnschwander, Igor Montaroyos, Francianna Araújo, Miquerlam Cavalcante, Moisés Pereira, Hylin Hueb, Renata Barroso, Vicente Férrer de Albuquerque Júnior, entre outros que minha memória não alcança. Cláudio Seefelder e Oswaldo Othon organizaram obras coletivas.

Fora da PGFN, autores de qualidade escreveram sobre o assunto, a exemplo de Heleno Torres (um dos pioneiros), Fernando Scaff (que escreveu sobre o uso de precatórios na transação), de Onofre Alves Batista Júnior (da UFMG), de Tarsila Ribeiro Fernandes, de Marcos Aurélio Valadão (que foi da Receita e do Carf, e que orientou Tarsila no mestrado), Paulo Conrado, entre tantos outros.

Quanto à transação, especificamente, dispôs-se que lei, geral ou específica, poderia facultar, sob condições, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária, celebrar acordo que resulte em composição de conflito ou de litígio, visando a extinção de crédito tributário. A transação tributária não é fato tão inusitado quanto queria se acreditar.

A Lei nº 1.341, de 31 de janeiro de 1951, que regulava a Procuradoria da República, que então detinha competência para a cobrança da dívida ativa da União, permitia que procuradores da República, devidamente autorizados, em cada caso concreto e específico, pudessem transigir com o sujeito passivo, com o objetivo de se encerrarem as causas fiscais ajuizadas e pendentes de julgamento.

A transação é conceito que radica no Direito Privado. Ordinariamente, tinha como objeto principal decisão de conteúdo convencional que dirimisse direitos incertos e duvidosos. Reportava-se à glosa de Cujácio, para quem a transação decorria de pacto pelo qual se resolvia sobre direito incerto; o acordo substancializava-se como uma sentença. Na dicção clássica: pactio qua lis vel controversia et res aliqua dubia, perinde ac judicato dirimitur. A transação, nesse sentido histórico, teria por objeto dirimir a lide pendente, bem como previnir a lide provável. Transitava entre o não resolvido e o provavelmente discutível.

É nesse tema apaixonante e cheio de impactos na vida negocial que nessa semana faço referência e comento a dissertação de mestrado de Renata Gontijo D'Ambrosio, "Transação Tributária na Atividade de Realização da Dívida Ativa da União", que tive a honra de orientar, e com quem tanto aprendi. Trata-se de um dos primeiros trabalhos acadêmicos que surgiram ao ensejo da Lei n. 13.988, de 14 de abril de 2020, resultado da conversão da Medida Provisória n. 899, de 14 de abril de 2020, conhecida como a MP do Contribuinte Legal.

A autora, que é procuradora da Fazenda Nacional, tem como pano de fundo da dissertação o "leitmotiv" da cidadania fiscal, com a consequente legitimidade social da tributação. Explorou a Exposição de Motivos da mencionada MP, cujo propósito central era a redução dos custos (de Administração e de aquiescência), a par do correto tratamento ao cidadão que paga tributos. A redução da litigiosidade e o ataque ao gargalo do contencioso (também administrativo, na DRJ e no Carf) também fomentaram esse movimento normativo, que Renata explica com muita objetividade.

Renata explora os aspectos gerais da transação tributária, a partir do CTN. Identifica a natureza jurídica da transação, bem como enfatiza e discorre sobre seus elementos centrais: a lei, o litígio e espinhoso tema das concessões mútuas. Nesse ponto é que a transação no direito público se afasta da tipologia da transação no direito privado.

A parte mais importante da dissertação (que espero logo ver em livro) alavanca e enfrenta três grandes problemas postos pela lei de transação: a renúncia de receita (artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal), a compensação com precatórios e os vários tratamentos especiais que a norma suscita.

Renata argumentou e concluiu que a transação não resulta em renúncia de receita, especialmente porque a lei alcança créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Não há dispensa ou renúncia, simplesmente porque não se cuida de receita fática. Tem-se uma mera presunção. Além do que, a autora argumentou com o artigo 3º da Lei Complementar n. 174, de 5 de agosto de 2020 (referente ao Simples Nacional), que autoriza a extinção de créditos, mediante celebração de transação.

Explicou também a questão do uso dos precatórios, indicando a legislação aplicável, especialmente no contexto da Portaria PGFN n. 14.402, de 11 de março de 2021. No fim do texto problematizou o conceito de "devedor contumaz", no contexto do PL 1646/19 (vale a pena ver no assunto o debate na Câmara, conduzido por Tadeu Alencar, então deputado pelo Pernambuco, e na origem procurador da Fazenda Nacional).

"Transação Tributária na Atividade de Realização da Dívida Ativa da União", de Renata Gontijo D’Ambrosio, comprova-nos que ao descrevermos nossa aldeia nos tornamos universais. Era a impressão de Leon Tolstoi. Renata escreveu sobre o que trabalha, teorizou sobre os problemas que enfrenta na prática, circulou por vários campos, acadêmicos e operacionais, colaborando para o debate de um tema que é o divisor de águas do direito tributário brasileiro.

 


[1] Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

[2] Publiquei então Transação Tributária: Introdução à Justiça Fiscal Consensual pela Fórum, de Belo Horizonte.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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