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Tributação e risco: a dedução de despesas em casos de danos ambientais

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

8 de fevereiro de 2023, 20h25

O dever de reparar abriga diversas consequências no mundo jurídico, inclusive de ordem tributária. Por isso, tema de notável expressão, mas ainda pouco debatido com franqueza acadêmica tem sido aquele da legalidade da dedução, na base de cálculo do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), de despesas relacionadas ao dever de responsabilidade objetiva, notadamente no caso das reparações ambientais.

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Os parâmetros de dedutibilidade de despesas estão previstos na legislação desde anos anteriores à Constituição de 1988, e nunca foram revistos à luz da legislação mais atual e da doutrina de direito privado após a edição do novo Código Civil, de 2002. Não refletem, portanto, a contemporânea sociedade de risco em que vivemos, o que deu ensejo a diversas modalidades de responsabilidade objetiva por danos das atividades.

Como regra geral, na presença do dolo, temos a responsabilidade subjetiva, identificada a partir da materialização de dano (1), culpa ou dolo do agente (2) e nexo de causalidade (iii). A responsabilidade objetiva, de sua banda, assume a presunção do dever de reparar independentemente de dolo ou culpa.

Conforme a atual redação do artigo 927 do Código Civil de 2002, verbis:

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." (grifos nossos)

Ora, segundo o caput do artigo 927, do Código Civil de 2002, os pressupostos basilares do dever de indenizar são ato ilícito, dano e nexo de causalidade, mas seu parágrafo único consagra a responsabilidade civil, que prescinde da culpa, para ser configurada desde que: a uma, seja uma hipótese prevista em lei; ou, a duas, quando a atividade desenvolvida for de risco.

O legislador criou obrigação de indenizar ampla, no fito de salvaguardar a esfera de direitos do lesado. No artigo 927, parágrafo único, segunda parte, deixou cristalino que a interpretação sobre o dano desvinculado de culpa recairá apenas sobre o que constitua atividade que "implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

Quando a atividade implica riscos a terceiros, que se traduzem em dano, todos os agentes potenciais devem ser responsabilizados, sem aferição de sua ilicitude ou licitude. Basta a lesão ao alter para exsurgir o dever de ressarcimento de todos os prejuízos.

Por conseguinte, impõe-se uma revisão do modelo jurídico da dedução das despesas incorridas em caso de danos objetivos, a exemplo da reparação de danos ambientais, inerentes ao risco da atividade econômica desenvolvida ou que são inerentes, normais e usuais ao tipo de atividade realizada por determinadas empresas.

Por mais cautelosa e habilitada seja a empresa, podem ocorrer gastos com eventuais danos ambientais, na forma de responsabilidade objetiva, sem qualquer culpa ou dolo. Portanto, podem ser próprios à atividade de risco desempenhada pela empresa, o que os convertem em necessários. Logo, estes gastos indenizatórios, respeitados os parâmetros de necessidade e usualidade das despesas operacionais, podem ser igualmente dedutíveis na apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Tudo a ser apurado em cada caso, conforme o tipo de atividade desempenhada e legislação de regência.

Como demarcado pelo art. 153, III, da Constituição Federal de 1988, o conceito de "renda tributável" deve ser sempre compreendido como acréscimo patrimonial da pessoa física ou jurídica, sem o qual não há fato gerador do imposto [1]. Por isso, em termos de demarcação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, o exame de despesas dedutíveis deve guardar necessária observância à opção conceitual do constituinte de 1988 pela inerência ao conceito de acréscimo patrimonial.

Consoante o regime da Política Nacional do Meio Ambiente, o artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/1981, não se furta em afirmar que a responsabilidade civil por dano ambiental é mais abrangente do que a responsabilidade penal, pois admite que terceiros respondam objetivamente por ofensas praticadas por outrem, independentemente de dolo ou de culpabilidade.

Dessa feita, danos ambientais são englobados pela teoria do risco integral, como o STJ tem reiterado em sucessivos julgados, verbis:

"[C]onforme disposto no artigo 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981, a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, tendo por pressuposto a existência de atividade que implique riscos para a saúde e para o meio ambiente, (…), de modo que aquele que explora a ‘atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão sempre vinculados a ela’; por isso, descabe a invocação, pelo responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil" [2].

O artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/1981 somente poderia ser recepcionado pela nova ordem constitucional em virtude da objetividade e da teoria do risco integral, pela compatibilidade com o artigo 225, §§ 2º e 3º, da CF, que prevê a obrigatoriedade de recuperação do meio ambiente degradado pela exploração de atividades ("independentemente da obrigação de reparar os danos causados").

A manifestação da teoria do risco na responsabilidade civil objetiva, assim, distancia-se completamente das sanções por estabelecer gastos a serem incorridos pelo agente por força de lei; não ocorre, todavia, em virtude da aferição de sua culpa ou dolo que vige na Lei de Crimes Ambientais. Em vista disso, o artigo 15 do Decreto nº 6.514/2008, com redação dada pelo Decreto nº 9.179/2017, proíbe a conversão de multa para reparação de danos decorrentes das infrações.

O próprio legislador reconheceu que o autuado jamais poderá, ao converter a multa, incluir no valor total da infração o custo indenizatório utilizado. De se ver, das multas da Lei de Crimes Ambientais emanam responsabilidade administrativa subjetiva, ao passo que a indenização pelo dano é estritamente civil e objetiva.

Em diversos casos de responsabilidades por danos ambientais, os gastos são decorrentes da implementação dos programas socioeconômicos e socioambientais destinados à reparação dos danos, ou mesmo despesas relacionadas à reparação, são empregadas por conta da sua responsabilidade objetiva, pelos danos advindos da atividade de risco que desempenha.

Esta responsabilidade objetiva e subsidiária encontra fundamento no artigo 4º da Lei nº 9.605/1998 [3], além de em outras normas da legislação brasileira. Conforme esta regra, as despesas são suportadas independentemente de dolo ou culpa, por sua responsabilidade objetiva inerente à posição de agente econômico no desempenho da atividade causadora, ainda que potencial, do eventual dano.

E isto quem o diz são as legislações civil, ambiental, administrativa e regulatória, que impõem à pessoa jurídica prestadora de atividade econômica de risco o dever de reparar os danos causados independentemente da apuração de culpabilidade.

Como bem esclarece Gilmar Ferreira Mendes, quanto aos danos provocados por atividades nucleares (artigo 21, XIII, "d", da CF) [4], verbis:

"Todas as vezes que a Constituição Federal quis determinar a incidência da responsabilidade subjetiva, ela foi expressa em referenciar o 'dolo' ou a 'culpa', assim como quis em relação à responsabilidade objetiva, tal como constante no art. 21, XXIII, 'd'" [5].

Pode-se afirmar, então que a regra da responsabilidade sempre é subjetiva, mas pode ser objetiva quando houver expressa previsão legal ou pela natureza da atividade que provoque risco a outrem [6].

Desse modo, os gastos suportados por força legal, por serem necessários e inerentes à continuidade da atividade econômica, devem ser levados ao exame da possibilidade de dedução, na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, das despesas suportadas em razão do dever legal de reparar, neste caso.

Apenas as "rendas tributáveis" podem convergir para a composição da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. A exclusão de valores que não representam acréscimo patrimonial, na apuração da base de cálculo, é decorrência da própria conformação da materialidade de tais tributos, cingidos que são à noção de renda.

A dedutibilidade das despesas, assim, deve ser analisada de acordo com a causa jurídica que justificará a necessidade, usualidade e normalidade da despesa incorrida. Não por outro motivo, o artigo 47 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, prescreve a possibilidade de dedução de despesas necessárias à atividade da empresa e à manutenção da respectiva fonte produtora, desde que documentada, com causa justificada e beneficiário identificado.

Como sabido, é amplo o conceito de devedor em matéria ambiental, a ponto de o Superior Tribunal de Justiça assentar que a responsabilidade ambiental, informada pela teoria do risco integral, de fulcro no artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/1981 deve abranger todos os agentes que obtiveram proveito da atividade que resultou no dano ambiental [7]. A Corte evidencia que todos aqueles que, direta ou indiretamente, concorreram ou guardarem um mínimo de nexo causal com o dano ambiental poderão ser acionados a responderem de forma concorrente [8].

O Fisco, para glosar a dedução, nas bases do IRPJ e da CSLL, das despesas de cunho indenizatório incorridas pela empresa, necessita provar que essa indedutibilidade não se encontra justificada pelo fundamento típico da causa da despesa, examinada pela sua inerência (necessária vinculação com o motivo determinante da sua realização) e pela efetiva comprovação da sua ocorrência.

A qualificação de despesas como necessárias, usuais e normais e a consequente dedutibilidade deve ser analisada, pois, com o devido enfoque da atividade econômica, bem como da causa jurídica do pagamento eventualmente devido.

Ocorre que, nas hipóteses de indenizações por danos ambientais não se trata de despesa decorrente de ilícito, já que a responsabilidade assumida é objetiva e, portanto, independente da apuração de dolo ou culpa.

E o fato de se tratar de responsabilidade objetiva já revela serem tais despesas decorrentes do exercício do próprio objeto social da empresa. Ou seja, são despesas inerentes à atividade econômica que, sobretudo por se tratar de atividade de risco, está sujeita, com maior intensidade e regularidade, a que dela emerjam prejuízos e danos.

Precedentes do Carf reconhecem que o risco faz parte do negócio, de modo que as despesas com contingências (indenizatórias, reparatórias, sancionatórias, etc.) [9] dele decorrentes devem ser deduzidas na apuração do IRPJ e da CSLL, por se subsumirem aos parâmetros legais de dedução das despesas. Vejamos in verbis:

"(…). vivemos numa sociedade de risco. É da natureza da prática empresarial submeter­se ao imponderável, inclusive no âmbito dos deveres jurídicos. Para o exercício de atividades econômicas, é absolutamente necessário atirar­se num vasto campo do imprevisível e suportar as suas conseqüências, inclusive aquelas de índole punitiva. Na verdade, podemos dizer com a mais absoluta segurança que é praticamente impossível, em muitos setores econômicos, conseguir guiar um empreendimento sem arcar com multas impostas pela administração pública.

O risco faz parte do negócio, e suas conseqüências também, inclusive aquelas de cunho pecuniário punitivo. Do contrário, deveriam também ser considerados indedutíveis os prêmios de seguro; afinal, não é estritamente necessário o contrato de seguro para o desempenho de atividades empresariais, nem para obter receitas" [10]. (g.n.)

Destarte, gastos indenizatórios em matéria ambiental podem se constituir como despesa obrigatória, quando decorrentes da imputação de responsabilidade objetiva, bem como despesa necessária, pois vinculada à atuação da entidade no seu setor econômico de riscos. Tudo a ser avaliado a partir da atividade econômica e do tipo de risco.

A causa jurídica realça as características das despesas como usuais, normais e necessárias à atividade. A vedação à dedutibilidade das despesas com danos ambientais submetidos à responsabilidade objetiva findaria por converter evidente despesa operacional dedutível em renda tributável, quando a Constituição obsta a tributação, pelo Imposto sobre a Renda, de tudo aquilo que não represente acréscimo patrimonial.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE 117.887-6/SP, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 11.02.1993, p. 23.04.1993.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. REsp 1.354.536/SE. Recurso Repetitivo. Relator ministro Luís Felipe Salomão, 2ª Seção, j. 26/03/2014, DJe 05/05/2014.

[3] "Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente."

[4] Art. 21, XIII, 'd', da CF/88: "[A] responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;"

[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Espécies de Responsabilidade Civil e o Papel do Supremo Tribunal Federa: Responsabilidade do Empregador em Acidentes de Trabalho. In: SIMÃO, José Fernando; PAVINATTO, Tiago (Coord.). Liber Amicorum Teresa Ancona Lopez: Estudos sobre Responsabilidade Civil. São Paulo: Almedina, 2021, p.330.

[6] Para Eneas de Oliveira Matos, "a interpretação que cabe é única: a regra geral de responsabilidade civil é a subjetiva, cabendo, por exceção, aos casos previstos em lei, ou quando proveniente o dano de atividade perigosa do ofensor, a responsabilidade objetiva" (MATOS, Eneas de Oliveira. Dano Moral e Dano Estético. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 315).

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no AREsp 277.167/MG, rel. Ministro Og Fernandes, 2ª Turma, julgado em 14/3/2017, DJe 20/3/2017.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 650.728/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 23/10/2007, DJe 2/12/2009.

[9] Veja-se: BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Acórdão nº 1401-002.031, Cons. rel. Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, 1ª Seção de Julgamento, julgado em 15/08/2017.

[10] BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão nº 1401-001.793, Cons. rel. Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, 1ª Seção de Julgamento, julgado em 15/2/2017.

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