Direitos Fundamentais

Dever de homologação dos pareceres do CNE pelo ministro da Educação

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9 de junho de 2023, 8h00

A controvérsia em torno do controle judicial dos atos administrativos convencionalmente classificados como discricionários, embora muito antiga e objeto de incontáveis publicações científicas e outras tantas decisões judiciais — e isso nos mantendo nos limites do que se passa na ordem jurídica brasileira — segue, contudo, de extrema atualidade e relevância, ademais de estar longe de um adequado equacionamento.

Um dos casos polêmicos dignos de nota, objeto, aliás, de recente e, em certo sentido, paradigmático julgamento (Apelação nº 1002633-28.2021.4.01.3310) — no qual os autores [1], juntamente com outros colegas, tiveram a ocasião de atuar como advogados em favor da parte vencedora — do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), ocorrido em 17/5/23, envolveu a querela em torno da obrigatoriedade, ou não, da homologação por parte do ministro da Educação, dos pareceres do CNE (Conselho Nacional de Educação). Para que se possa, todavia, adentrar a questão de fundo, calha apresentar uma breve síntese do caso concreto e da decisão proferida pelo TRF-1 e sede de apelação.

A ação promovida no 1º Grau de Jurisdição tinha como finalidade obter provimento jurisdicional determinando ao Ministério da Educação a homologação de pareceres do CNE, exarados em sede de recurso administrativo e favoráveis à demandante, no sentido da reversão de decisão da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC (Seres), que, desconsiderando a avaliação de mérito positiva e com nota máxima realizada pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) e pelo CNS (Conselho Nacional de Saúde), de pedido de abertura de curso de graduação em medicina em município situado no sul da Bahia, para funcionamento com oferta de 120 vagas anuais, expediu Portaria autorizando a abertura do curso com apenas 37 vagas.

Detalhando um pouco mais o caso, importa destacar alguns pontos particularmente relevantes para o resultado do julgamento no 2º grau de jurisdição:

1 – O processamento do pedido de autorização de abertura do curso de Medicina se deu pelo rito e com base nos critérios praticados antes da entrada em vigor da Lei nº 12.871/2013, a assim chamada Lei dos Mais Médicos (LMM), de modo que a demandante teve — diferentemente do procedimento adotado pela LMM — comprovar a existência prévia da infraestrutura indispensável ao funcionamento do curso com o número de vagas anuais pleiteado, independentemente do resultado da avaliação do mérito pelo MEC.

2 – Os órgãos técnicos principais responsáveis pela análise do mérito, designadamente os já referidos Inep e CNS, autorizaram o funcionamento, atribuindo conceito máximo à proposta, com as 120 vagas pleiteadas desde o início.

3 – A Seres, contrariando tal resultado, com base em regramento veiculado na Portaria nº 02/2013 do MEC, já obsoleta antes do protocolo do pedido de abertura do curso, ocorrido em agosto do mesmo ano, reduziu o número de vagas anuais para 37.

4 – Em sede de recurso administrativo, a demandante teve o seu pleito de 120 vagas anuais deferido pelo CNE, mediante parecer aprovado à unanimidade pelo colegiado de mais alta hierarquia no âmbito do MEC.

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5 – Submetido ao crivo do Ministro da Educação, o parecer não foi homologado e devolvido ao CNE para reapreciação, tendo o colegiado ratificado, novamente por unanimidade, o primeiro parecer, sem agregar novos argumentos.

6 – Mesmo à vista de nova manifestação favorável à demandante por parte do CNE, que, no caso, chancelou a análise técnica do mérito da proposta de funcionamento do curso com 120 vagas realizada pelo Inep e CNS, o ministro da Educação novamente deixou de homologar o parecer, de tal sorte que à demandante não restou outro caminho, senão a de buscar a solução do problema no Poder Judiciário.

7 – O pedido de provimento liminar formulado no 1º grau pela demandante foi negado, mas, em sede de agravo, o relator do recurso interposto no TRF-1, o ilustre desembargador federal Carlos Augusto Pires Brandão, determinou ao MEC a expedição de nova portaria autorizando o funcionamento do curso com 120 vagas. 

8 – A despeito disso, sobreveio sentença de improcedência do processo, argumentando, em síntese, que não caberia ao Poder Judiciário adentrar o mérito administrativo da decisão do Ministro da Educação e que o ato de não-homologação, da competência exclusiva e discricionária do titular do Ministério, havia sido fundamentado, o que bastaria para impedir a sua revisão judicial, além de invocar o caráter meramente opinativo dos pareceres do CNE.

9 – Em face do resultado no 1º grau, a então demandante apelou da sentença para o TRF-1, que, como já noticiado, à unanimidade deu provimento ao recurso, acolhendo as teses esgrimidas pela apelante.

Dentre os argumentos submetidos ao crivo dos eminentes magistrados participantes do julgamento, desembargadores federais Souza Prudente (presidente da Turma) e Carlos A. P. Brandão (relator), e o juiz federal convocado, Pablo Zuniga Dourado, vale enfatizar os que seguem:

1 – Que ao julgar procedente o pleito, não estaria o Poder Judiciário adentrado propriamente o mérito administrativo relativo ao pedido de abertura do curso de medicina, visto que apenas se estava requerendo fossem acatadas as avaliações e pareceres, inclusive por duas vezes em sede recursal, dos órgãos técnicos que desde o início autorizaram o funcionamento do curso com 120 vagas anuais.

2 – Que de acordo com o disposto no artigo 2º, da Lei nº 9.131/1995, as deliberações e pronunciamentos do Conselho Pleno e das Câmaras devem ser homologados pelo ministro de da Educação e do Desporto.

3 – Que considerando o fato de o CNE, por duas vezes e por votação unânime, ter chancelado o pleito de 120 vagas, tal dever legal restava ainda mais fortalecido.

4 – A própria Consultoria Jurídica do MEC, em caso similar, emitiu o Parecer nº 00478/2019/Conjur-MEC/CGU/AGU, sustentando que o referido ato é vinculado e possui natureza meramente instrumental.

5 – A apelante teve o curso aprovado mediante procedimento mais rigoroso do que o exigido pela LMM, que, diferentemente do que se deu com a apelante, que já tinha efetuado investimento milionário prévio em termos de infraestrutura, reclama análise apenas documental para a autorização. Com isso, a redução para 37 vagas anuais, que se buscou (e conseguiu) reverter em sede de apelação, implicaria praticamente a inviabilidade de funcionamento do curso por ausência de sustentabilidade financeira.

6 – A apelante teve o pedido de 120 vagas anuais deferido pelos órgãos técnicos justamente em face da existência de leitos e equipamentos públicos de saúde em quantidade suficiente relativamente ao volume de vagas pleiteado e da existência de falta de médicos suficientes para o atendimento da população na região.

7 – O quadro relativo à carência de médicos na região existente quando da aprovação do curso, ainda é atual e grave. Na época da avaliação e do relatório do Inep, a média de médicos por mil habitantes na macrorregião de saúde do extremo sul da Bahia era de 0,96, ao passo que atualmente segue sendo de apenas 1,14, abaixo da meta estabelecida para 2026 pela LMM (2,7) e da média nacional prevista pela OCDE para 2023, que é de 3,5 médicos por mil habitantes.

8 – Mesmo somando-se as 120 vagas devidas à apelante às vagas deferidas a outras duas IES na região, a macrorregião de saúde, conforme dados do IBGE, ainda comportaria mais 348 vagas.

9 – O provimento da apelação se revelava imperativo, porquanto uma redução de vagas, dadas as circunstâncias narradas, impediria que o curso de medicina da apelante pudesse cumprir a sua função social, acarretaria um grave retrocesso em relação ao (mesmo com as 120 vagas) ao já em muito deficitário número de médicos na macrorregião de saúde, violando com isso os fins da própria LMM e o direito fundamental à proteção da saúde, mais uma vez atingindo de forma mais brutal a população mais desfavorecida.

À vista desse elenco de argumentos, que, em parte, já haviam sido considerados pelo ilustre relator da apelação quando da concessão da liminar em sede de agravo, a colenda Turma do TRF-1 julgou procedente a apelação, não somente acolhendo as teses esgrimidas pela apelante, mas aprofundando-as e agregando expressivo valor argumentativo. Dado o limitado espaço desta coluna, serão aqui sumariamente apresentadas as principais e preciosas razões complementares deduzidas pelos julgadores, a começar pelo voto do ilustre relator.

Em seu voto, o desembargador relator, Carlos Augusto Pires Brandão, além de destacar a prevalência do direito fundamental à saúde, a carência de médicos na região, a função social do curso de medicina, consignou que tais elementos, somados ao fato de que o curso foi aprovado com 120 vagas por todos os órgãos técnicos, inclusive por duas vezes pelo CNE, relativiza necessariamente o entendimento que impede qualquer controle judicial do ato de não-homologação do ministro da Educação, já que inexiste ato completamente discricionário e desvinculado do dever estatal de proteção e promoção dos direitos fundamentais.

Além disso, o ilustre relator destacou que, no caso, não se tratou de uma revisão judicial do mérito propriamente dito do ato administrativo, mas sim, do "controle de sua legitimidade, mediante interpretação razoável da legislação de regência, que conferiu ao Conselho Nacional de Educação a competência para a apreciação do pedido, não sendo possível ao ministro de Educação apenas substituir a autoridade técnica competente".

Acompanhando o voto do relator, o eminente juiz federal Pablo Zuniga Dourado invocou, com base na mais atual e expressiva doutrina[2] de um direito administrativo constitucionalizado, a existência de diferentes níveis de controle jurisdicional dos atos administrativos, tendo em conta uma diversidade de graus de vinculação de tais atos, ainda que discricionários, com base no ordenamento jurídico-constitucional.

Com base na sumária apresentação do caso e das razões que levaram à procedência da apelação, é possível, mais uma vez em apertada síntese, afirmar que os eminentes julgadores do TRF-1 deram mais um passo no sentido da consolidação de uma moderna e constitucionalmente adequada concepção — que vem sendo construída há tempo, mas gradualmente desenvolvida, pela doutrina e pelo Poder Judiciário, do controle da judicial da legitimidade jurídico-constitucional dos atos administrativos, demonstrando — desta feita no que diz respeito à homologação (ou não) de pareceres dos órgãos técnicos do MEC pelo ministro da Educação — que a discricionaridade administrativa (que, como tal e nos casos cabíveis, evidentemente não é contestada) não pode servir, ao fim e ao cabo, como "cheque em branco" ou autorização constitucional e legal para o arbítrio.


[1] O autor Ingo W. Sarlet atuou no processo na confecção dos memoriais aportados aos autos para o julgamento, bem como efetuou a sustentação oral. O autor Etides, juntamente com as advogadas Juliana Dias Guerra N.F. Cruz e Daniela Rosa Coelho, representou a demandante e apelante ao longo do processo.

[2] No voto houve citação da merecidamente prestigiada e influente obra de Gustavo Binembojm sobre o tema, à qual poderiam ser somados os igualmente importantes contributos de autores como Juarez Freitas, Daniel Sarmento, Carlos Ari Sundfeld, entre outros expoentes do direito administrativo e constitucional.

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