Opinião

Análise da decisão do ministro Gilmar Mendes no ARE 1.346.594

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22 de julho de 2023, 15h27

O acórdão do STF (Supremo Tribunal Federal) no julgamento do Tema 1.199 não afastou a retroatividade da nova LIA (Lei de Improbidade Administrativa) aos atos dolosos, em especial no tocante à denominada atipicidade superveniente.

Esse foi o entendimento que sustentou a decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, prolatada em 25/5/2023 no Recurso Extraordinário com Agravo 1.346.594–SP.

De fato, considerando que o leading case do referido tema era um recurso extraordinário [1] que tinha por objeto a acusação da prática de um ato culposo ocorrida antes da entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021 (nova LIA), não poderia o STF se manifestar acerca de atos da espécie dolosa, pois aquele tipo de recurso é de fundamentação vinculada e limitado aos limites objetivos da causa de pedir. Vejamos as palavras do relator:

"O senhor ministro Alexandre de Moraes (relator) — senhor presidente, vou resumir a posição vencedora. Nos termos do voto do relator, pela irretroatividade do ato culposo com condenação transitada em julgado, seis votos: o relator, o ministro Edson Fachin, o ministro Roberto Barroso, a ministra Rosa Weber, a ministra Cármen Lúcia e o presidente, Mministro Luiz Fux.
Pela, no meu caso, não ultraatividade ou retroatividade do ato culposo sem condenação transitada em julgado, sete votos: o relator, o ministro André Mendonça, o ministro Nunes Marques, o ministro Dias Toffoli, o ministro Ricardo Lewandowski, o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux."

Ou seja, no caso, o STF julgou somente o tipo culposo porque o ARE possuía um objeto limitado pelas circunstâncias da causa de pedir e por isso não era dado à corte estender o debate para a área do dolo.

Em português claro, o STF decidiu que a Lei nº 14.230/2021 (nova LIA) se aplica aos atos culposos, porém não afastou a sua aplicação aos atos dolosos no tocante, por exemplo, à atipicidade superveniente! Isso porque dizer que uma norma legal incide sobre determinado fato da vida não significa afirmar que se aplica apenas a ele.

Assim, o acórdão do Tema 1.199 não declarou, no tocante à atipicidade superveniente e outras questões, que a atipicidade da nova LIA incide exclusivamente sobre os atos culposos. Prova disso é que, após o julgamento do referido tema, a 2ª Turma do STF, no ARE 1.275.059 AgR (DJe 09/02/2023) declarou que os atos de improbidade dolosos não foram abrangidos pelo julgamento do Tema 1.199 da Corte, pois este se limitou a tratar dos atos culposos.

Lado outro, o posicionamento dos tribunais após o julgamento do Tema 1.199 é no sentido da obrigatória aplicação retroativa de Lei nº 14.230/2021 aos atos dolosos, desde que os processos estejam pendentes de decisão definitiva. Isso porque o supremo, ao julgar o Tema 1.199, embora não tenha se debruçado sobre os atos dolosos, estabeleceu a seguinte regra geral: como o tipo sancionador baseado na culpa não existe mais no momento da decisão judicial, estamos diante de superveniência de atipicidade e por isso a condenação se torna uma impossibilidade jurídica.

Ora, esse fundamento jurídico vale para qualquer fato, seja culposo ou doloso! Isso porque a tese vencedora no STF não levou em consideração o elemento anímico do ato, mas sim a existência do tipo [2].

Tanto isso é verdade que no tocante à atipicidade superveniente em relação a atos dolosos, em especial quando relacionada à revogação dos tipos dolosos genéricos que existiam no antigo artigo 11 da Lei de Improbidade, a decisão do ministro Gilmar em tela sinaliza que a Corte Suprema caminha no sentido de que a mesma razão de decidir que fundamentou o acórdão do Tema 1.199 se aplica aos processos em que a acusação se sustenta em um tipo revogado.

Com efeito, veja-se a decisão monocrática do ministro Gilmar em 25/5/2023 no Recurso Extraordinário com Agravo 1.346.594–SP:

"Nesse cenário, considerada a aplicabilidade imediata da Lei 14.230/2021 ao caso concreto e a abolição, pela nova legislação, do ato de improbidade administrativa por mera violação dos princípios da Administração Pública com fundamento exclusivamente no caput do artigo 11 da Lei 8.429/1992 (única imputação efetivamente veiculada pelo Ministério Público de São Paulo na petição de ingresso da ação civil pública), constata-se a impossibilidade jurídica de manutenção da condenação ratificada pelo acórdão recorrido, impondo-se a sua reforma.
Ante o exposto, reconsidero a decisão que houvera negado seguimento ao recurso extraordinário com agravo (eDOC 70) para, na forma do §1º do artigo 21 do RISTF, dar provimento ao recurso extraordinário com agravo a fim de reformar o acórdão recorrido (eDOC 18, p. 82-91) e julgar improcedente a ação civil pública de responsabilidade por ato de improbidade administrativa."

Julgo prejudicado o agravo regimental
Tratava-se de caso em que a 2ª Instância (TJ-SP) havia declarado expressamente que os atos, datados de 2008, eram dolosos; porém, o ministro Gilmar Mendes considerou que faltava o elemento tipo para a manutenção da condenação, uma vez que:

"Em suma, após as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, para que haja condenação por ato de improbidade administrativa, com fundamento no artigo 11 da Lei nº 8.429/1992 (ofensa a princípios da Administração Pública), há que se demonstrar a prática dolosa de alguma das condutas descritas nos incisos do dispositivo mencionado e que essa conduta seja lesiva ao bem jurídico tutelado."

Ponderou o ministro Gilmar que, tendo deixado de existir a conduta (tipo) genérica da violação a princípio, sobreveio a atipicidade superveniente, a qual acarreta a improcedência da pretensão do órgão estatal acusador no processo em curso, uma vez que deixa de subsistir no ordenamento o fundamento jurídico para sustentação da causa de pedir.

Essa conclusão tem encontrado guarida também no STJ, em decisões recentes dos ministros Herman Benjamin no Agint no Agravo em Recurso Especial nº 2185370 – RJ e Humberto Martins no Agravo em Recurso Especial nº 2003049 – MG.

No mesmo sentido, o Parecer da Subprocuradoria Geral da República no Agravo em Recurso Especial nº 2.197.290/SP [3] e a Advocacia Geral da União no Parecer nº 00005/2022/CNPAD/CGU/AGU, aprovado pelo presidente da República [4].

Aliás, no tocante à obrigatoriedade da retroatividade da lei nova benéfica ao réu em matéria de direito sancionador, destaca-se o recente acórdão da 1ª Turma do STJ, sob a relatoria da ministra Regina Helena Costa, no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2024133- ES: "II – O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedentes" [5].

Importante acrescentar que o Superior Tribunal de Justiça, no Tema Repetitivo 1.108, decidiu que nos tipos sancionadores é imprescindível o elemento dolo específico trazido pela Lei nº 14.230/2021, dispositivo legal que se aplica a fatos anteriores a ela, conclusão a que se chega facilmente porque os atos dos réus haviam sido praticados antes de 2016:

"4. O afastamento do elemento subjetivo de tal conduta dá-se em razão da dificuldade de identificar o dolo genérico, situação que foi alterada com a edição da Lei n. 14.230/2021, que conferiu tratamento mais rigoroso para o reconhecimento da improbidade, ao estabelecer não mais o dolo genérico, mas o dolo específico como requisito para a caracterização do ato de improbidade administrativa, ex vi do artigo 1º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.429/1992, em que é necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado."

Ou seja, de acordo com a 1ª Seção, como no momento do acórdão o tipo fundado em dolo genérico não existia mais, pois fora revogado pela Lei nº 14.230/2021, a condenação deixara de ter sustentação jurídica, vindo a desabar, o que significa plena aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021 a atos dolosos.

Portanto, não é correto sob o ponto de vista gramatical, tampouco a partir da ótica jurídica, afirmar que o STF definiu no Tema 1.199 que a nova LIA se aplica exclusivamente aos tipos culposos [6]; ela se aplica também a eles, mas não apenas a eles.

 

 

[1] ARE 843989.

[2] Ubi eadem ratio ibi idem legis dispositivo.

[3] AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONDENAÇÃO NO TIPO ISOLADO DO ARTIGO 11, CAPUT, DA LIA. ASSÉDIO MORAL. ALTERAÇÃO DOS ELEMENTOS DO TIPO PELA SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 14.230/2021. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA PARA AS AÇÕES DE CONHECIMENTO EM ANDAMENTO, RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM REPERCUSSÃO GERAL (ARE Nº 843.989/PR – TEMA 1.199). TESE QUE, POR SIMETRIA, DEVE SER APLICADA TAMBÉM AOS CASOS DE CONDENAÇÃO POR CONDUTA QUE DEIXOU DE SER TIPIFICADA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE QUE SE IMPÕE. PREJUDICADO O EXAME DO AGRAVO.

[5] Acórdão em completa harmonia com a jurisprudência da Corte Americana dos Direitos Humanos: Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panamá, parágrafo 103, São José da Costa Rica, 2 de fevereiro de 2001; Caso del Tribunal Constitucional Vs. Perú, parágrafo 68, São José da Costa Rica, 31 de janeiro de 2001; Caso Maldonado Ordoñez vs. Guatemala, parágrafo 89, São José da Costa Rica, 3 de maio de 2001. No mesmo sentido, a CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, Plenário, Caso Örtürk vs Germany, Application nº 8544/79, Strasbourg, 21 de fevereiro de 1984.

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